O Livro de Catulo.

A nova edição de O Livro de Catulo, com traduções de João Angelo Oliva Neto para o mais interessante dos poetas romanos, é sem dúvidas um dos lançamentos mais aguardados do ano. 28 anos depois de sua primeira edição, a obra reafirma sua posição de excelência na história das letras clássicas brasileiras como uma verdadeira aula de como publicar literatura antiga.

Com o perdão do pleonasmo — que nem sempre pleonasmo é —, a introdução introduz bem o leitor comum nos meandros da poesia antiga, equipando-o com boa parte do instrumental necessário para  desbastar a mata fechada de versos escritos milênios atrás. Em vez de se limitar a delinear o que quer que tenha sido a biografia de Caio Valério Catulo e preparar nosso ânimo, em breves parágrafos corridos, para o que vem por aí, João Angelo faz por bem recuar uns bons passos e apresentar em detalhes o que foi a poesia grega do período imediatamente posterior à morte de Alexandre — o chamado período helenístico — para, somente então, abordar a obra de um autor romano que claramente se embebedou da fonte. Isso explica por que a introdução se ocupa de comentar com cuidado formas poéticas antigas como o iambo ou a elegia — uma e outra muito praticadas por Catulo —, ou, ainda, discutir, com brilhantismo e ponderação, a relação espinhosa entre sinceridade e fingimento poético. 

É bom que seja assim, já que, como dito pelo autor, “O livro destina-se primeiro ao leitor não especialista em letras antigas” (p. 15), e justamente por isso não seria razoável deixar esse leitor à própria sorte, munido, se muito, de preconceitos modernos vindos de fábrica: “a maneira de ler textos modernos nem sempre pode ser apenas transferida a textos antigos” (p. 16). Essa mesma paciência em esclarecer e ambientar também se aplica aos comentários a cada um dos poemas do livro. Em suas notas, João Angelo toma o cuidado de, por exemplo, sempre fornecer boas traduções literárias — suas ou, sempre que possível, alheias — para cada um dos trechos gregos e latinos citados, o que se revela fundamental para que o próprio leitor entenda de forma mais viva quais as prováveis fontes de inspiração de Catulo, tratando-as como poemas e não um mero academicismo gratuito, e, quem sabe, para que ele próprio se interesse por algum daqueles nomes também. Dificilmente passará batida aos olhos de leitores atentos a elegância com que Calímaco é vertido: “Ubíqua não ofertam água a Deo abelhas, / mas a que pura imaculada estila em fonte / santa, pequena gota, suma quintessência” (Hino 2.110-113, p. 39).

A tradução de João Angelo se tornou, ela mesma, um clássico no melhor sentido da palavra. A união feliz entre erudição acadêmica e uma veia poética forte vem sendo repetida em muitos outros trabalhos acadêmicos de lá pra cá: “Além de possibilitar a sobrevida das obras, é a tradução, pela maior dificuldade de aprender grego e latim, um dos meios que permite a muitos leitores conhecê-las e talvez amá-las como leitores, como pessoas a desfrutar da leitura, mãe de toda curiosidade, nascedouro dos interesses mais genuínos, condição primeira, assim, da qual lhes pode nascer o pendor para a mais excelsa filologia” (p. 112). Mais ainda, algumas soluções métricas, em que pese não tenham sido invenção sua, se popularizaram por suas mãos. É o caso em especial do dístico elegíaco, forma tradicionalíssima na poesia romana que muito se traduz hoje em dia por uma combinação de dodecassílabos e decassílabos que, embora pensada pela primeira vez por Péricles Eugênio da Silva Ramos na década de 60 (ver parágrafo 43 da introdução), só veio a ser usada de forma sistemática justamente em O Livro de Catulo.

Em mais de um momento, a tradução faz jus à arte verbal de Catulo e nos entrega alguns dos versos mais sonoros e bem acabados da poesia brasileira dos últimos anos. Se me for dado citar pelo menos alguns exemplos ao sabor do acaso, o leitor pode tomar como parâmetro trechos como “Minha paúra és tu, e é teu pau” (15.9), “qual diminuta nau, / que insano vento a vir em alto mar surpreende” (25.12-13), “falar contigo, estar contíguo a ti” (50.13), “este que todo atento o tempo todo / contempla e ouve-te” (51.3-4), “A flor que nasce à parte, em horto envolto em sebes” (62.39), “fero, a rútila juba lança ao dorso em músculos” (63.83), “em lesta nau ousaram ir no sal das vagas, / azul varrendo o mar sob os remos de abeto” (64.6-7), “que o ônix me oferende olentes dádivas” (66.83), “e clara minha deusa em passo manso” (68.70), “e que, túmido, a turba queira Antímaco” (95.10), “saliva suja de mijada puta” (99.10), “quando flamas me ardiam na medula insanas” (100.7) ou “Pinto a trepar ao monte de Pimpla se empenha” (105.1), alguns dos quais suspeito serem melhores até que o original.

A tradução é também feliz ao compactar trechos desafiadores do original no espaço exíguo da métrica portuguesa. No fim do poema 68, por exemplo, o verso latino, que literalmente daria algo como “Minha Luz, que, estando viva, viver é doce para mim”, é vertido por João Angelo em “Minha Luz. Viva, é doce meu viver”. Outro exemplo de compactação está no parêntesis “(dizem)” para introduzir a fórmula “dicuntur” no começo do poema 64 — muito mais compacto que, digamos, o “Há fama que” de José Maria da Costa e Silva. Esse mesmo recurso ao parêntesis é empregado com bons resultados em várias outras passagens: “lugar onde este (após) barquinho foi bem antes / selva frondosa” (4.10-11), “amores dos homens testemunham / (furtivos)” (7.8-9) e “a destra, ora a puxar o fio (supinos dedos) / lhe dava forma, ora a torcê-lo (oblíquo pólex) / girava o fuso” (64.312-313). Outros tantos sinais de pontuação são usados com grande eficácia, por exemplo as reticências em “escreve um mau discurso… e me convida!” (44.21) e “que és, Nasão, grande… passivo!” (112.2) ou o ponto final em “Diz. Mas o que a mulher diz ao amante ardente” (70.3) e “Roubaste. Ah!, que cruel veneno em minha vida” (77.5).

A tradução das variações de registro linguístico na poesia de Catulo é uma pedra no sapato de todo tradutor. João Angelo, de um modo geral, se sai bem nesse desafio. O baixo calão da primeira parte do livro está bem representado por opções como “meter no cu” para “irrumo”, “trepada” para “fututio” (ver parágrafo 32 da introdução), “chupador” para “cinaedus” (ver nota a 16.2), “putanheiros dos becos” para “semitarii moechi” (37.16) ou “bodum” para “odor” (71.6), e, na parte solene da poesia de Catulo, termos como “conífero” (64.107), “imêmores” (64.123), “sol nado” (63.67) ou “cerva silvícola ou javardo nemorívago” (68.73) voltam a língua portuguesa aos braços do latim, assim como o fraseado de “é grande, vida afora, / em paga, a dita deste ingrato amor” (76.5-6) lembra a melhor poesia dos clássicos portugueses. Outros exemplos de um linguajar simples, direto e gostoso de ler são a tradução das hipercorreções de Árrio no poema 84, “diz-que-diz do povo” para “populi uana querela” em 67.12 ou “minimonumentos” para “parua … monimenta” em 95.9. Essas diferenças também se fazem notar na sintaxe; o leitor pode, a título de exemplo, comparar o fraseado direto de trechos como “eu — carvalho sequinho, esculpido por rústico / machado” (19.3-4), “Deuses grandes, que toquinho eloquente!” (53.5) ou “tudo bem entre chupadores ímprobos” (57.1) com “Cecrópia eleitos jovens mais a flor das virgens / se habituara a dar, repasto, ao Minotauro” (64.78-79) ou com “os pés sobre alisado umbral luzentes” (68.71). O bom conhecimento da norma padrão e uma erudição sólida também abriram portas que de outro modo, a neófitos menos arregimentados, se encontrariam fechadas; tome como exemplo o adjetivo “fodaz” para “moechatur” (94.1), com abonação em Bocage, o emprego de “porque” como conjunção final em “porque em meus versos viva mesmo após morrer” (68.47) ou o bom uso da próclise em “para as voltas do passo inextricável não-no / lograrem ao sair do enredo labiríntico” (64.114-115), com abonação clássica em, por exemplo, Camões 6.7.3.

Penso, no entanto, que por vezes a parte mais leve da poesia de Catulo perde muito de sua graça na armadura de soluções que soam pesadas demais a ouvidos brasileiros. Um bom exemplo está em “No cu eu vou meter-vos e na boca”, abertura do famoso poema 16, em que o emprego de “vós” para segunda pessoa do plural, consistente, aliás, em todo o livro, estraga muito o tom de ataque do trecho. Compare com a tradução, muito mais direta e vernácula, de Paulo Sérgio de Vasconcellos para a mesma passagem: “Enrabarei vocês, farei que chupem”. Em outros casos, é a inversão sintática quem entorna o caldo, por exemplo “da promessa livrai minha menina” (36.2), em que a ordem direta também caberia na métrica: “livrai minha menina da promessa”. Já em outros tantos, porém, é preciso dar o braço a torcer e reconhecer que a inversão se explica por algum efeito sonoro notável ou por uma dificuldade métrica quase incontornável, a exemplo de “teu Catulo tem / só de teias de aranha cheio o bolso” (13.7-8), em que não é lá muito fácil manter a ordem direta e os decassílabos no lugar.

Uma das diretrizes mais importantes do projeto de João Angelo é tentar manter, tanto quanto possível, a mesma tradução para palavras e expressões recorrentes ao longo do livro. Assim, quem ler “nessa taberna vou grafar grafitos / pois a menina que a meu peito foge, / amada como nenhuma será, / por quem tão grandes guerras já pugnei / senta-se aí” (37.10-14) lá pelas tantas poderá se recordar que de fato leu “amada por nós qual nenhuma será” (8.5) poemas atrás no mesmo livro. No entanto, como era de se esperar, isso nem sempre é cumprido à risca: as diferenças linguísticas e a própria janela fechada de oportunidades da métrica impedem que esse ideal seja aplicado a ferro e fogo. De um modo geral, não é nada de se lamentar, até porque faz parte do jogo, mas em pelo menos um caso penso que isso realmente se traduz em perda: refiro-me ao adjetivo “unanimus”, que aparece em 9.4, 30.1 e 66.80 e é traduzido como “unânimes”, “concordes” e “amorosos”. Se outras recorrências muito menos interessantes como “aqui e ali” (3.9) em poemas amorosos ganham nota, penso que uma para um adjetivo que significa, literalmente, compartilhar o mesmo sentimento ou a mesma alma, seria bem vinda — ainda mais porque, na primeira edição do livro, o adjetivo em 9.4 era traduzido com o parêntesis “(um coração)”, solução, aliás, melhor a meu ver.

Por falar em notas, elas, de um modo geral, cumprem bem seu papel de ambientar o leitor. Um bom exemplo ocorre quando, no poema 85, João Angelo faz por bem traduzir o fragmento de Anacreonte e os epigramas gregos de Meleagro e Eveno que teriam servido de inspiração para Catulo, dando, assim, todos os subsídios para que o leitor entenda melhor alguns dos versos mais famosos da poesia antiga. Outros casos dignos de nota são a nota ao adjetivo “cinaedus” em 16.2, a nota aos exagerados ritos nupciais romanos em 32.11 ou a nota ao costume de escovar os dentes com urina, citado pejorativamente por Catulo em 37.20 e 39.18-19 e ainda hoje mencionado por jornalistas e historiadores desavisados como um costume exótico dos romanos. Há casos em que, não fossem as notas, o leitor dificilmente entenderia o que está se passando no trecho, a exemplo de mitos obscuros, como o da trança de Berenice no poema 66, de utensílios em desuso, como “omento” em 90.6 ou “heléboro” em 99.14, ou mesmo de determinadas expressões vernáculas hoje com significado bem diverso, como “branco ou preto” em 93.2 ou “inimiga dos bons” em 108.3.

Grande professor que é, João Angelo não poderia deixar de aproveitar os minutos finais para nos presentear com mais uma aula: de pesquisa histórica, que ele faz como poucos, mas também de humildade e generosidade. Em um meio acadêmico não raro acometido por uma troca de farpas e pelo ego de tradutores que se acham mais poetas que o rei, o apêndice “Os Outros, o Mesmo: Antologia de Traduções de Catulo” compila com esmero traduções portuguesas e brasileiras elaboradas ao longo de séculos por ilustres classicistas de nossa história. A antologia abre caminhos e nos dá um banho de cultura ao perambular pela obra de nomes importantes da poesia romântica como Almeida Garrett e os irmãos Castilho, de tradutores renomados como Péricles Eugênio da Silva Ramos, os irmãos Campos e Décio Pignatari, indo até a de contemporâneos como Rodrigo Tadeu Gonçalves e Leonardo Antunes. Pincelar ausências em um trabalho assim é uma tarefa ingrata porque cômoda, mas, se me for dado contribuir com algumas sugestões, penso que valeria a pena incluir também as traduções de Érico Nogueira, em especial para o poema 99, e as de Wagner Schadeck para os poemas 11 e 70.

Catulo abre o livro perguntando “A quem dedico a graça de um livrinho / novo, recém-polido a pomes seco?” (1.1-2) Não posso deixar de lamentar que, embora escrito com a erudição e generosidade de quem exerce o magistério e a pesquisa acadêmica de ponta há décadas, a decisão editorial de envelopar o livrinho polido a pomes seco em uma edição de luxo é péssima e, na prática, põe a fina flor da poesia romana nas mãos de um público privilegiado de admiradores de antemão. Infelizmente, os editores não estão sozinhos nessa: apenas a título de exemplo, as tragédias reunidas de Sófocles, traduzidas pelo decano Jaa Torrano, foram recém publicadas pelas editoras Mnēma e Ateliê a um valor total que abocanha um terço do salário mínimo. Noves fora os percalços de publicar literatura antiga em um mercado pouco aquecido como o nosso, um poeta tão interessante como Catulo merecia ir mais longe.