Cláudio Aquati, tradutor do Satíricon.

O Satíricon é um dos textos em latim mais difíceis de traduzir. Existem muitas razões para isso. Quando aprendemos latim, o que se ensina na prática é o latim clássico, ou seja, o latim das obras produzidas num período que vai do fim da República até a morte do imperador Augusto. Mais especificamente, estudamos algumas obras desse período, por exemplo a Eneida de Virgílio, os discursos de Cícero ou as odes de Horácio. Mas ainda existe muito a ser estudado, e não precisamos nem mesmo sair do período clássico para perceber isso. As cartas de Cícero ou as sátiras de Horácio são todo um universo a ser desbravado, no sentido simples de que apontam para um latim muito diferente daquela língua elaborada e austera que vemos nos grandes poemas e discursos.

Além disso, o Satíricon está cheio de palavras muito específicas, algumas das quais só aparecem uma única vez em todo o conjunto de obras que chegaram até a gente. Vemos disso aos montes numa passagem que a crítica batizou de o banquete de Trimalquião, um personagem que era uma espécie de rei do camarote daquele tempo. Ali você encontra palavras designando coisas muito exatas, por exemplo a menção a um "garum piperatum" em 36.3, um condimento apimentado que, segundo explica Cláudio Aquati em nota, era feito a partir de vísceras de diversos peixes temperadas com orégano, salsinha, arruda e por aí vai. Mas também encontrará personagens falando todo tipo de latim que se possa imaginar, do pretensamente erudito até a linguagem chula de muitos escravos e serviçais.

Para nossa sorte, temos boas traduções do Satíricon disponíveis para o leitor. Até então eu conhecia duas: a da professora Sandra Bianchet, muito apurada ao detectar e recriar as variações linguísticas presentes no texto, e a do poeta Paulo Leminski, que, para ser bem conciso, simplesmente precisava ter acontecido. A de Cláudio Aquati, porém, eu nunca tinha conseguido ler, pelo menos não até a editora 34 reeditá-la com todas as glórias e um projeto gráfico arejado e gostoso de ler. Como meu objetivo aqui não é o de elaborar um comentário longo sobre o porquê esta é uma baita tradução, quero apenas pincelar um exemplo muito pontual, que, creio, será o bastante para que você se convença da minúcia do tradutor:

[47.13] E o cozinheiro então, ciente do poder do patrão, a comida o levou de volta à cozinha.
Et cocum quidem potentiae admonitum in culinam obsonium duxit.

É a princípio uma frase muito simples de ser traduzida. Você começa a análise do verbo, "duxit", e aí encontra o sujeito, "obsonium", depois o complemento verbal, "cocum admonitum potentiae", e o restante dos adjuntos, "in culinam". O tradutor precisou explicar pra gente a ideia por trás de "admonitum potentiae", que seria literalmente algo como "tendo sido advertido do poder", com a menção ao patrão do cozinheiro meio implícita nessa história. Mas não há problema nenhum em esclarecer. Sandra Bianchet também faz isso um pouco com "advertindo-o de sua força" e Leminski se sai muito bem com "ouvindo a voz da autoridade".

O que quero que perceba é a ordem das palavras. Caso você nunca tenha estudado latim, uma das coisas mais fascinantes da língua é sua versatilidade ao espalhar as palavras numa frase e criar uma espécie de quebra-cabeças delicioso de montar. O que para a maioria dos falantes costuma ser o arroz com feijão de um sujeito seguido de verbo e complemento, pode virar, em latim, uma ginástica mental de apresentar primeiro um pedaço do complemento, depois o verbo, depois outro pedaço do complemento e só lá no fim o sujeito. Ou então o contrário disso. Na frase de Petrônio, o complemento verbal, "cocum ... potentiae admonitum", aparece antes do verbo e também do sujeito, de modo que a sequência é: complemento + sujeito + verbo.

Mas toda essa versatilidade não quer dizer que a escolha por uma das opções no cardápio seja aleatória, algo como os falantes jogando as palavras no liquidificador, batendo por alguns milissegundos e depois despejando na frase. Na verdade, apesar da liberdade na ordem das palavras em latim ser consideravelmente maior que o português, os falantes sentiam quando algumas mudanças eram realizadas. É o caso da frase acima. A ordem mais comum em latim seria sujeito + complemento + verbo. Se algum desses termos for mudado por exemplo lá para o início da frase, antes mesmo do sujeito, isso geralmente se dá por razões de ênfase. Cláudio Aquati soube pegar isso direitinho, e por isso utilizou aquilo que a linguística chama de estrutura de tópico. A frase, originalmente, seria algo como:

a comida levou o cozinheiro de volta à cozinha

O complemento verbal, "o cozinheiro", é deslocado para a esquerda, ganhando ênfase e ocupando a posição de tópico, ou seja, ele passa a ser o assunto da frase. Temos então:

o cozinheiro, a comida levou _ de volta à cozinha

Veja que ficou um espaço em branco. O português falado pode deixar assim mesmo, em branco, mas existe uma outra opção que é a de você colocar uma espécie de tapa-buraco no lugar, o que explica o pronome "o" na tradução:

o cozinheiro, a comida o levou de volta à cozinha

Esse exemplo simples ensina algumas coisas para a gente. A primeira delas é que Cláudio Aquati está atento a minúcias muito, com o perdão do pleonasmo, minuciosas do texto. A segunda é que, apesar do latim ser mais versátil que o português, nem por isso a última flor do Lácio tem as pétalas petrificadas e rígidas. Na verdade, só de voltar ao soneto de Bilac e encontrar, ali perto do final, um "da voz materna ouvi" no lugar de "ouvi da voz materna", já perceberá que o português pode fazer umas ginásticas bem mirabolantes. Essa mesma ordem de palavras no original latino, se aparecesse num poema épico, poderia ser traduzida com o apoio de um objeto direto preposicionado, por exemplo.