Por que considero Maria Lúcia Alvim uma grande poeta.

Quero expor minhas razões pincelando um poema que tem sido muito citado, e com razão, nas homenagens para a autora, infelizmente falecida nesse início de ano:

1. Manhã sem rusga
2. pequeno depósito de agrura na poça
3. exorbitei de alegria
4. a abóbada celeste não dá vazão
5. silos de silêncio
6. ó ser astral
7. o capim é minha grande reserva interior
8. a esperança
9. desleixo

Das várias habilidades que a autora exibe em seus textos, uma das mais extraordinárias é sua capacidade de extrair o melhor de cada palavra. O poema acima demonstra isso bem, pois ela usa duas palavras relativamente difíceis, "abóbada" e "silos", extraindo bons efeitos sonoros e imagéticos de ambas, e consegue explorar sentidos de ordem etimológica da última, "desleixo".

A respeito disso das palavras difíceis, lembro de imediato de Ricardo Domeneck comentando sobre "minuanos" num lindo soneto. Não tenho lá muita noção de como é o vocabulário geral da autora, mas tenho a plena convicção de que se um pesquisador se pusesse a estudá-lo, chegaria a resultados no mínimo notáveis. Digo pois minha impressão é que Maria Lúcia Alvim gosta de explorar algumas palavras mais difíceis, dessas que precisamos olhar no dicionário, mas sem fazer com que elas se tornem um entrave para a compreensão.

Parece inclusive ser o contrário: ela enfeitiça as palavras de um jeito que se tornam ainda mais encantadoras, já que a palavra rara e precisa incrustada num de seus versos passa a ser matéria de poesia e não simplesmente de verbete. Isso ocorre pois o funcionamento do poema faz com que o convívio de uma palavra genérica num poema de palavras exatas, ou de uma palavra simples no contexto de palavras difíceis, seja capaz de mudar nossa postura em relação a essa palavra, e, em última instância, modificar nossa percepção dela: e é por isso que falei em feitiço, querendo dizer na verdade uma postura mais propícia do leitor em olhar de uma forma livre e desimpedida para as palavras, sentindo suas sugestões metafóricas e sonoras e não simplesmente se encasquetando com o que o senhor Aurélio tem a nos dizer a seu respeito.

Darei dois exemplos. No segundo verso, é fácil imaginar o que seria um "pequeno depósito" e é fácil relacionar a imagem com a poça retratada. Mas, já no quinto verso, o que seria um "silo"? É bem provável que o leitor precise pesquisar, e só assim encontrar a imagem de um enorme depósito cilíndrico de grãos. O que é curioso a partir desse exemplo é que "depósito" e "silo" são sinônimos, mas essa relação é encoberta por nosso desconhecimento inicial do que seria um "silo". Depois que identificamos, conseguimos olhar de volta para o poema e contrastar o pequeno depósito da poça com um silo inteiro de silêncios.

Outro exemplo: "abóbada", no verso 4. O que é uma? Pesquisando no dicionário, se encontra a explicação de que seria uma estrutura arquitetônica em forma de arco. A expressão "abóbada celeste" é muito usada para se referir ao céu. Por que então utilizá-la e não somente "céu"? Para além de uma possível explicação de ordem sonora e rítmica, posso sugerir que "abóbada" se conecta a "exorbitei", que num sentido literal significa sair de órbita, isto é, sair, precisamente, da abóbada do céu - o que é o mesmo que dizer que a presença de "abóbada" não somente descreve a imagem de maneira mais precisa como também contribui para que imaginemos melhor o que seria exorbitar. Esse mesmo raciocínio pode ocorrer com algumas expressões, por exemplo "dar vazão", que novamente entra na dança de "abóbada - exorbitei" e faz o poema funcionar.

Creio que essa capacidade de extrair os melhores sentidos de uma palavra dá o seu melhor no final, "a esperança / desleixo". Até então, o poema era composto de versos livres sem conexão uns entre os outros, ou seja, cada verso novo iniciava uma imagem nova que se movia entre um cenário natural e os sentimentos do eu lírico, algumas vezes mesclando os dois de maneira admiravelmente compacta, como em "silos de silêncio", que é não só um prodígio metafórico como também sonoro, já que "silo" está contido em "silêncio": SILênciO.

O final, contudo, sugere uma estrutura em paralelo com o verso anterior que poderia ser completado mais ou menos como:

o capim é minha grande reserva interior
a esperança [é meu]
desleixo

De modo, portanto, que "a esperança / desleixo" seria uma frase nominal em potência. Mas podemos também apenas imaginar que ela junta esses dois substantivos um ao lado do outro como dois elementos sem relação de igualdade: "a esperança, desleixo".

Seja como for, quero me concentrar na palavra "desleixo". É formada a partir de "leixo", forma arcaica portuguesa para o verbo "deixar". Vem do latim "laxo", que, por outras vias, dará um verbo como "relaxar" ou um substantivo como "laxante" (particípio presente: aquilo que está sendo afrouxado, alargado). De fato, o desleixo no português corrente é o relaxo; mas, se quisermos recuperar o sentido etimológico básico, é também o mesmo que se soltar e alargar.

Se voltarmos ao poema com isso em mente, percebemos que a visão serena das coisas, mesmo das adversidades ou das agruras, que cabem no pequeno depósito de uma poça, vai muito bem com a palavra "desleixo". Digo que vai bem pois a poeta consegue explorar sentidos novos e surpreendentes da palavra, tirando-a da zona exclusiva do descuido e retomando um sentido de entrega e integração ao ambiente.

Só uma grande poeta consegue algo assim!