Crise da linguagem?

Muitos conservadores nos últimos tempos se queixam de uma crise da linguagem. Dois argumentos costumam ser usados nessa hora: 1) algumas palavras não têm mais o sentido elevado de antigamente e são usadas em contextos inteiramente prosaicos; e 2) as palavras são indefinidas. Gostaria de respondê-los:

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1) Um problema muito comum no primeiro argumento é romancear o passado. Darei um exemplo. Há uma aula espetáculo engraçadíssima do Ariano Suassuna em que ele se queixa de que hoje o adjetivo "genial" é usado até pra se referir ao Chimbinha. Gênio, retruca Suassuna, é Beethoven!

Festo, um gramático do período tardio, diz que antigamente "genius" era o deus que tinha adquirido o poder de gerar todas as coisas. Logo após cita o testemunho de um certo Aufústio, para quem "genius" é filho dos deuses e pai dos homens. Já o dicionário Oxford define "genius" como o espírito masculino da "gens" a presidir uma família; mais amplamente, ele é a parte divina ou espiritual de cada indivíduo. O Thesaurus (6,2:1826 e seguintes) também segue o mesmo caminho e, a partir da ideia de um deus protetor, deriva os demais sentidos. A origem de "genius" seria o verbo "gignere", gerar, engendrar, que também deu em latim "ingenium", uma disposição natural das pessoas ou uma qualidade inerente das coisas. Os exemplos para "ingenium" são vários, aplicados até mesmo a árvores (Virgílio, Geórgicas, 2.177: "arvorum ingeniis"). Mantemos alguns desses sentidos no português quando dizemos por exemplo que Fulano tem o gênio forte, o temperamento.

"Genius" já no latim clássico podia significar talento ou inspiração; é a acepção 3 do Oxford: "victurus genium debet habere liber" (Marcial, 6.61.10: o livro que sobreviverá deve ter gênio). É dentro dessa órbita semântica que os clássicos falavam num "engenho e arte", unindo, como de praxe, a qualidade inata a uma técnica que deveria ser aprendida e aperfeiçoada. Será só na virada do século XVIII pro XIX que "genius" receberá uma carga mais densa. Kant, por exemplo, no § 46 da Crítica da faculdade de julgar, afirma que as belas artes são as artes do gênio, entendido agora como um talento natural que não pode ser regrado. É quando começa a ideia de que o artista é uma força criadora que pode gerar sozinha coisas extraordinárias como uma sinfonia, um poema épico ou uma pintura grandiosa.

Se é assim, então como lamentar que a palavra "gênio" está em decadência, se ela na origem não tinha o sentido tão carregado do século XIX? Muitas outras palavras mágicas para a ala conservadora se encaixam nessa mesma ideia: "poesia", na origem, vem de um verbo grego que significa fazer qualquer coisa; "arte" em latim é um tipo de conhecimento que pode ser sistematizado e transferido, algo mais próximo do nosso "técnica"; "literatura" era o uso das letras, indo da epopeia até as cartas e um decreto senatorial.

Vale ainda lembrar que, ao lado do perigo das origens romanceadas, o fato de que uma palavra seja usada em contextos banais não quer dizer que ela deixe de lado seus sentidos supostamente elevados. Usamos "genial" para qualificar um sanduíche engenhoso, mas usamos "genial" pra falar de uma obra de arte que tenha nos arrebatado. Da mesma forma, usamos "literatura" no sentido genérico mais próximo da origem latina quando falamos em "literatura especializada sobre Direito Penal", mas também usamos para nomear uma matéria escolar.

Por fim, seria bom definir melhor o que faz uma palavra ser elevada ou coisa do tipo. Se for sua capacidade de ter muitos significados, então isso anula a objeção 2 e permite que uma palavra como "coisa" fosse elevada. Se for pela sua beleza, isso, além de vago e subjetivo, ignora que a função básica da linguagem cotidiana é comunicar; o embelezamento pode até aparecer, mas desde que convenha aos propósitos da mensagem. Já se for sua profundidade filosófica, isso novamente é muito vago, uma vez que a profundidade filosófica não é da palavra empregada e sim do raciocínio; além disso, as reflexões filosóficas feitas sobre palavras determinadas não implicam dizer que elas sempre tiveram esse status: não custa lembrar que "lógos", antes de ser uma palavra-chave na filosofia de Heráclito por exemplo, era uma palavra comum do grego antigo.

2) Já a respeito da segunda objeção, ela tem em mira o fato de que hoje usamos termos como "esquerda", "direita", "feminismo", "fascismo" etc para designar praticamente qualquer coisa. Não há uma definição do que seria esquerda ou direita.

São termos, como se pode ver, muito caros ao debate político recente. É mais do que razoável que recebam sentidos diversos dificilmente abarcáveis pelo guarda-chuva de um conceito. Posso dizer por exemplo que sou de esquerda querendo dizer com isso que tenho simpatias com a pauta feminista, mas posso também dizer como forma de me colocar à esquerda do espectro político, ou seja, ser de esquerda como sinônimo de não-ser-de-direita. Posso, pelo contrário, dizer que sou de direita por ter simpatias com o anarcocapitalismo, mas, embora o anarcocapitalismo tenha lá sua linha central de defesa do livre mercado, essa linha é muito ramificada em vários nuances e propostas, de modo que é perfeitamente possível que meu anarcocapitalismo não seja rigorosamente igual ao do meu colega de bandeira. A palavra continuaria sendo a seu modo vaga.

Além disso, é importante notar que nem todas as palavras padecem dessa imprecisão. Hoje a própria palavra "gênio" é muito mais precisa que no latim clássico: nós a utilizamos sempre pressupondo que aquele objeto qualificado como genial veio das mãos de algum artista inspirado. No latim clássico, como vimos, podia ser usada até pra se referir às árvores. O mesmo pode ser dito em relação a "poesia" ou "literatura", que, embora tenham significados mais abrangentes, como quando falamos da "poesia da fotografia" ou da "poesia da vida", ainda assim são sentidos que partem de um mais básico e relacionado a um tipo de texto literário com características delicadas e sensíveis.

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Incomoda-me também, nessa discussão, o raciocínio de que se a linguagem está em crise, então o ser humano também está. Seria preciso definir melhor o que é uma crise da linguagem para entendermos de que modo o ser humano poderia estar em crise, isto é, sabermos se essa suposta crise da linguagem (caso realmente exista) é uma causa legítima para o estado de coisas do mundo.