"Mandíbulas esmigalhadas", de Guilherme Gontijo.

Guilherme Gontijo Flores
p/ Dirceu Villa
1. Mandíbulas esmigalhadas num sorriso,
2. dedos se alçam ao céu, fazem rajadas
3. e suas falanges vão tombando sobre testas,
4. gorjas e esternos, ventres e meniscos;
5. são quartetos de estralos, estalactites
6. como a espada de Dâmocles desenfreada
7. arriscado seu peso sobre todos.
8. Um sorriso,
9.                    os sorrisos,
10.                                     as mãos e seus canos,
11. calcinados,
12. são tão menos que tudo,
13. só nota triste deste rodapé da história,
14. feita de ossada e tripa, nomes de vidas;
15. são dentaduras frouxas estalando
16. na água parada de um copo embaçado
17. entre tempos e medos;
18. boias pequenas contra afogamento
19. nessas piscinas infantis, que o horror inventa;
20. muletas para carros; são uns cuspos
21. postos a esmo contra a ventania
22. que nós aqui sopramos nos teus olhos;
23. um guarda-chuva contra folhas secas
24. ou britas para a nossa fundação.
25. Não poderão jamais colher a chuva.
26. Não poderão jamais conter o sol.

> 1-11. O poema começa descrevendo a imagem infame do presidente fazendo sinal de arma com as mãos e apontando para o alto. A descrição é grotesca e ao mesmo tempo crua. Grotesca pelo uso do adjetivo "esmigalhadas" para descrever o sorriso, por exemplo, sugerindo uma espécie de risada que só acontece na destruição e na corrosão de algo. Já crua pelo raio-X que passa na cena, nomeando os ossos envolvidos em vez de falar do todo, "falanges", por exemplo, no lugar de dedos ou mãos. Ao mesmo tempo em que realça a simbologia fúnebre e macabra relacionada aos ossos, sugere também que aquele gesto não transcende, não vai além, mas, pelo contrário, reduz tudo a ser apenas matéria em putrefação.

> 1. "Mandíbulas" e "esmigalhadas" estabelecem entre si muitos pontos de contato sonoros. Isso cria um maciço logo no início do verso. Como as duas palavras formam um único sintagma que ocupa nove sílabas, o início fica também algo arrastado.

> 2. O início desse segundo verso é um contraste. Além das palavras serem mais curtas, elas também criam um maciço, só que um que começa no fim do verso anterior e vai até metade desse: veja por exemplo a repetição do S e a rima interna "ALçam AO".

> 3-5. A repetição do T sugere os tiros ou o entrechoque dos ossos.

> 5. A paranomásia "estralos - estalactites" desenha a imagem para nós. Ela pode sugerir uma espécie de ambiente cavernoso.

> 6-7. Mais acurado, porém, me parece ler essas estalactites como um símbolo do acúmulo de catástrofes que o país tem sofrido nos últimos tempos. Temos falado muito de limites para os absurdos do governo, mas a realidade triste é que não há propriamente um limite. A espada de Dâmocles é a da história contada por Cícero (Tusc 5.61-62): um bajulador que ganha a oportunidade de virar poderoso por um dia. A princípio ele goza dos prazeres, mas, a certa altura, quando olha pra cima, vê uma espada pendurada por um fio do pelo de um cavalo. A fragilidade do poder, que, no poema, em vez de realçar somente a condição precária do governante, mostra também que os governados estão à mercê de jogos escusos de poder.

> 10-11. Desdobrar "canos" em "calcinados" é de novo uma tacada de mestre. Agora, porém, muito corrosiva, já que desmancha o imaginário militar ridículo que orienta o governo.

> 12-24. Uma sequência extensa de comparações. Mas... Com o quê? A resposta me parece clara: com o cenário retratado nos versos anteriores, ou seja, com a devastação da ideologia que tomou conta do poder. A questão é que não me parece adequado dizer que todas as imagens desses versos servem de retrato contundente. Parte serve sim, por exemplo a do verso 13. Mas em outras esse já não é claramente o caso, como em 18-19, que pode muito bem estar falando de nossa condição, ou mesmo 24, que usa expressamente o pronome "nossa".

> 12. Uma certa inversão de perspectiva que me agrada bastante. É claro que o governo é muito menor que o todo - seja da sociedade, seja da Vida. Mas não é que ele é menor; ele é tão menor. Isso acrescenta uma carga um tanto patética para o texto, mostrando que as pretensões totalizantes do projeto de governo são menores que as forças da Vida.

> 13. Aliteração em T. A pequenez do governo é colocada em seu devido lugar. No entanto, notar quão doloroso é notar que vivemos dentro do demonstrativo "deste".

> 14. O movimento do verso é diferente do que vimos no começo. Antes, uma imagem viva, envolvendo seres humanos reais, foi como que dissecada pelo bisturi implacável do poeta. Agora, são as mortes acumuladas (não só, mas principalmente, causadas pela pandemia) que de início são tratadas como "ossada e tripa" mas que, depois, ganha seu status devido de "nomes de vidas".

> 15-17. As dentaduras talvez sejam uma referência às dentaduras duplas do poema de Drummond. Cito só o final: "feéricas dentaduras, / admiráveis presas, / mastigando lestas / e indiferentes / a carne da vida!"

> 18-19. Aponto o caráter patético da cena retratada, não só, claro, por adjetivos como "pequenas" e "infantis", mas também pela oração relativa "que o horror inventa". Essas duas palavras, "horror" e "inventar", me parecem palavras centrais no léxico poético do Guilherme. Parte considerável de sua obra investiga os horrores da história, de um lado, e as ficções que lidam com esses horrores, de outro. Dou destaque especial ao projeto Tróiades, que, em linhas gerais, tenta ressignificar os horrores da sociedade antiga (e para tanto o Guilherme traduz livremente trechos de obras de autores gregos e romanos) colocando sua narrativa em contraste com horrores modernos.

> 20-22. Não entendi muito bem esses versos.

> 23. Embora não seja inteiramente implausível imaginar que um guarda-chuva realmente sirva pra proteger das folhas secas, o choque, é claro, entre o guarda-chuva e a folha seca é significativo por si só.

> 24. Imaginar que horrores e catástrofes de algum modo façam parte de nossa fundação é uma maneira amarga de ver a História. O leitor certamente vai puxar da memória algumas das teses de Benjamin. É um tipo de aproximação que sem dúvidas rende muito nos poemas do Guilherme.

> 25-26. A dupla negação realça a mensagem. Por totalitária que seja (e de fato é) a pretensão do governo, o poeta afirma enfaticamente que ela é menor que tudo. Que ela não será capaz de colher a chuva - e aqui podemos voltar ao verso 23 - e nem muito menos deter o sol. Dias melhores virão. A esperança não deixou de ser possível. Nunca deixará.