Soneto epicurista.

Não é a primeira vez que comento sobre Emmanuel Santiago no bloguinho e claro que não será a última: é um dos poetas que acompanho com entusiasmo crescente, sem nem contar seu trabalho notável como crítico e tradutor de Shakespeare. Li tempos atrás este seu soneto e me pus a ruminar. Penso que é um soneto em linhas gerais relativamente simples de ser entendido, mas que tem no seu interior alguns mecanismos particularmente interessantes. Leiamos:

​O brilho de metal do teu cabelo
um dia se consome na ferrugem
e os olhos cristalinos, que hoje fulgem,
apagam-se em perpétuo pesadelo.

Tanto viço, não há como contê-lo:
os seios murcham, tudo se resume
numa disforme massa, feito estrume,
no lodo da matéria em desmazelo.

Aproveita o feitio tão formoso
e, juntos, desfrutemos cada gozo
que os deuses não nos neguem nem adiem.

Antes que esse teu corpo, enfim inerme,
converta-se em repasto para o verme,
celebremos Horácio — Carpe diem!

O soneto serve como uma espécie de imitação ou paráfrase de um grande poema do autor barroco espanhol Luís de Góngora, que começa com "Mientras a competir con tu cabello". Uma verdadeira obra-prima. Há muitas traduções realmente felizes desse poema, que, apesar da proximidade entre as línguas, ostenta uma série de dificuldades consideráveis para o tradutor, a exemplo do verso que encerra a segunda estrofe: "del luciente cristal tu gentil cuello". Gosto em especial das do Érico Nogueira e do Sérgio Pachá, mas não posso me furtar de citar a paráfrase atribuída a Gregório de Matos, que funde os tercetos do soneto com os quartetos de um outro também de Góngora.

Assim, enquanto no poema de Góngora a imagem de abertura é a do brilho dos cabelos da amada, que, segundo diz, o sol tenta competir em vão com sua luz, no soneto de Emmanuel encontramos uma deterioração muito ácida dessa imagem. O brilho passa a ser um brilho metálico, indicando alguma coisa de artificial na mulher retratada, e a corrosão do tempo, que só aparecerá de maneira enfática no final do poema espanhol, aqui já surge na segunda estrofe de uma maneira curiosamente muito natural e lógica: se o brilho é de metal, então a ferrugem irá corroê-los um dia. O mesmo não parece ocorrer com a beleza sobre-humana da mulher que tem cabelos mais brilhantes que a luz do sol: como algo de tão gracioso assim pode um dia chegar ao fim?

Logo depois teremos a menção aos olhos cristalinos, uma metáfora palatável amarrada por uma rima muito engenhosa entre "ferrugem" e "fulgem", que de fato se apagam para o leitor dentro da sonoridade deslumbrante do último verso da primeira estrofe, com sua repetição de sons em "p". Efeitos sonoros assim são muito comuns na poesia de um modo geral e na do Emmanuel em particular. Mesmo quando escreve em versos livres, é em grande parte graças à sonoridade do texto que conseguimos sentir que algo além do mero picotamento das frases está a acontecer. Outro momento digno de nota no soneto é entre os versos cinco e seis, em que o murchar dos seios é sugerido pela sequência em "m".

Pois bem. É um paralelo inteligente. No poema gongorino, os elementos naturais serão usados num primeiro momento como parâmetro de comparação da beleza da mulher amada: no final da primeira estrofe, por exemplo, o lírio branco olha com menosprezo para a branca fronte da mulher. A inversão inicia é no primeiro terceto:

goza cuello, cabello, labio y frente,
antes que lo que fue en tu edad dorada
oro, lilio, clavel, cristal luciente,

Ou seja, existe uma exortação enfática (vide a posição do imperativo "goza" no início da estrofe) para que cada parte do corpo seja aproveitada. E por qual motivo? É que todos esses elementos eram, na idade dourada, nos tempos perfeitos, ouro, lírio, cristal, cravo reluzente. Elementos naturais, pois, portentos e belezas da natureza que eram inclusive mais belos que a própria natureza, já que o rosto branca da mulher amada era tão belo que o próprio lírio no chão tinha inveja quando o contemplava. É como se os caminhos se cruzassem, portanto: há a humanização dos elementos da natureza, muito bem visto no exemplo do lírio que olha com um sentimento de menosprezo, e há, por outro lado, uma naturalização das partes do corpo da mulher amada. É por isso que na estrofe final o poeta a adverte que se tudo isso é assim na idade dourada, não tarda e tudo pode se transformar em "en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada", verso célebre do soneto que se usa de um procedimento muito comum na poesia barroca espanhola.

Essa degradação final a que Góngora faz menção parece ter sido o ponto de partida para o Emmanuel. O fato de que consiga, no espaço de uma única estrofe, misturar um brilho metálico com olhos cristalinos, parece indicar que essa mescla já é um ponto de partida para o poeta. Adiar a exortação para as estrofes iniciais é também um aspecto curioso, uma vez que envolve o poema de uma áurea sombria muito cedo, o que só ocorrerá no poema gongorino no último terceto. Até então, nada parecia indicar lá muito bem que o poema espanhol iria fazer essa guinada tão intensa.

Penso que com isso o Emmanuel chocar no leitor, coisa que ele gosta de fazer. Basta pegar diversos outros poemas de seu primeiro livro, Pavão Bizarro. Num deles, chamado Soneto Idílico, temos, na primeira estrofe:

As ninfas, que viviam aos sorrisos,
dançando pelos bosques, de alegria,
estrangulei-as todas e o faria
mais uma vez, se assim fosse preciso.

Por fim, quero falar rapidamente de algumas implicações filosóficas na construção do poema. Acho que muitos resumos escolares conseguem dar bem pro leitor a ideia de que uma das bases da filosofia epicurista é que o universo é feito basicamente de corpos e vazio. É o que aparece no final do verso 420 do primeiro livro de um grande poema de um autor romano chamado Lucrécio. Isso significa que na natureza não há nada que não possa chegar aos sentidos ou que a razão não possa captar. Perto do final do segundo livro, o poeta nos diz que a consequência de entender isso é que a natureza será vista como livre, sem senhores soberbos ou mesmo deuses.

Aqui entra o famigerado tópico da busca pelo prazer. Isso não quer dizer, na filosofia epicurista, a busca por um prazer desregrado. O prazer epicurista é um prazer livre de dor e inquietação. Como diz Lucrécio no início do segundo livro, bom mesmo na vida é erguer um templo fortificado pela doutrina dos sábios.

A ideia de que tudo é matéria se enquadra bem no conteúdo do soneto. Não quero nem tanto me concentrar nisso. Penso mais na citação de Horácio no fim do poema. Associá-lo à filosofia epicurista é comum, mas isso, claro, não deixa de ser problemático se lembrarmos do final da epístila 4, em que Horácio fecha comparando os seguidores de Epicuro a um rebanho gordo e de pele reluzente.

Sendo assim, como ler a parte final do soneto? Que o Emmanuel realmente lê Horácio como um epicurista? Ou como uma menção irônica do eu lírico, que parece estar mais preocupado em usar todos os recursos retóricos disponíveis para convencer a amada esquiva? Independente da resposta para a primeira hipótese, penso que a segunda tem sua vantagem dentro do quadro geral das personas poéticas que o Emmanuel cria ao longo dos seus poemas, além de se encaixar com um certo caráter muitas vezes absurdo, verborrágico ou, até, se quisermos um termo ambiguamente preciso, retórico de muitos textos filiados à convenção do "carpe diem". Nesse sentido, o pedantismo de citar a expressão em latim e fazê-la rimar com "adiem", uma rima rica e de fato muito coerente com a semântica da expressão horaciana, é uma cereja no bolo de um soneto realmente muito particular.