Só uma mulher pode escrever sobre mulheres?

Trata-se de uma pergunta interessante que, imagino, em alguns sentidos talvez esteja na ordem do dia. Afinal de contas a demanda por se ler mais mulheres é uma demanda cada vez mais presente e, como pude inclusive defender noutra ocasião aqui no bloguinho, é uma realmente razoável e louvável. No entanto, nas mãos daquela militância mais desmiolada, não é implausível que a proposta se converta na proibição velada de que homens por exemplo possam escrever sobre mulheres, ao argumento de que o quadro sempre ficaria mais pobre ou que jamais captaria toda a complexidade e a vivência própria de uma mulher.

Daqui podemos ruminar um pouco mais. Se o argumento é colocado nesses termos, com a vivência servindo de mola mestra, então penso que a moeda poderia ser revertida a ponto de dizermos que uma mulher, também, não pode escrever sobre homens e alcançar, vamos dizer, a essência do universo masculino. Não sei até que ponto esse tipo de argumento realmente poderia vir a ser defendido, ainda mais quando a noção do que é um universo feminino ou masculino tende a ser profundamente questionada, já que, por trás de bases estritamente biológicas, há todo um universo cultural que nos faz algo sempre além do que nossa estrutura, mais uma vez, estritamente biológica tende a apontar. E isso para além da própria mística que comumente envolve essa discussão, no que basta recordarmos o comentário muito sagaz que a Virginia Woolf fez certa vez ao observar que o número de tomos já produzidos sobre a mística do universo feminino é consideravelmente maior que o número de tomos sobre a mística do universo masculino, bastando notar, para tanto, que uma fatia gorda dessa mesma bibliografia foi produzida por homens.

Mas continuemos a dialogar com a questão colocada. Ela tem suas arestas e suas implicações indesejáveis. Se para a mulher, por exemplo, a conquista da liberdade da escrita tem sido uma urgência, então, por conseguinte, querer encasular sua escrita a uma essência em comum compartilhada por todas as mulheres passa a ser muito duvidoso especialmente quando o mesmo exercício, aplicado aos homens, se afigura como impossível, já que procurar por uma essência masculina em toda a produção feita pelos machos da espécie humana ao longo dos séculos é quase impossível e muito provavelmente uma tolice. E no entanto, embora esta tenha sido até então minha resposta, fiquei me perguntando, depois que li uma antologia de trovadoras (trobairitz) traduzidas, até que ponto tal resposta é realmente válida, já que quando me coloquei a contrastar a poesia produzida por muitas delas com as cantigas de amigo galegas, compostas por homens com vozes poéticas femininas, me pareceu que um novo universo estava se descortinando e que a diferença era no mínimo patente.

Novamente, é preciso proceder com cautela. Para além do fato de que quando lidamos com a produção poética medieval nós não podemos cair na bobeira de achar que o que a voz poética nos diz é, necessariamente, o que se sucedeu com o poeta, pessoa física, carne e osso, já que convenções poéticas davam as cartas para a produção do período; para além desse fato, há que se levar em conta uma série de convenções sociais, marcadamente, nesse caso, a do amor cortês, que moldavam a visão de mundo do homem daquele tempo. Noutras palavras, não posso esperar do homem e da mulher medieval que se portem como o homem e a mulher de nosso tempo. O horizonte de análise histórica precisa ser outro. Antes de chegar à explicação de que o machismo da época era o único fator que cunhou essa distância entre a poesia trovadoresca feita por homens e por mulheres (o que, é claro, não deixa de ser uma explicação perfeitamente plausível), posso por exemplo pensar na maneira como a tradição especificamente poética requeria do poeta a abordagem de alguns assuntos de algum jeito e com alguma técnica.

Eu diria, então, que não é que o exemplo das trovadoras mulheres, contrastado com nossas cantigas de amigo, sirva para provar a existência de uma essência feminina na escrita. A tradição da poesia provençal e a tradição galego-portuguesa possuem diversos pontos de contato, mas não são, por óbvio, a mesma coisa. Esta é uma cautela inicial. A seu lado eu coloco uma crença pessoal muito firme e inabalável: a de que a imaginação e a criatividade humana é em potência ilimitada e consegue vencer qualquer barreira corpórea, biológica, social, geográfica ou histórica. Logo, um homem pode perfeitamente escrever sobre o universo feminino, coisa esta facilmente comprovada num simples relance de olhos a uma enorme galeria de grandes personagens femininas ao longo da literatura, em especial no romance do século XIX. Eu penso que o pulo do gato está em reconhecer que essa criatividade em potência ilimitada precisa partir, justamente, de uma visão crítica e de uma conscientização, digamos, social e histórica, para que o poeta se "destaque" de seu contexto original para, enfim!, realizar o salto. Ou seja: não basta somente achar que a força da imaginação sozinha é o grande remédio, já que essa mesma imaginação precisa assumir uma postura crítica que se dirija ao próprio contexto, fazendo com que o artista, para citar um exemplo especialmente relevante, reveja seus privilégios de gênero.

Pois bem. Ao mesmo tempo em que equaciono as coisas desse modo, penso que no final das contas acabo aportando à ideia de que embora o homem não tenha uma vivência propriamente feminina que lhe faça retratar mulheres bem, ele pode, graças a uma imaginação crítica, alcançar isso ou algo pelo menos muito próximo. O problema é que nem isso me parece ser o suficiente. Deixe-me explicar o motivo. Uma das questões mais fascinantes da filosofia grega é aquela relativa à imitação artística. O pensamento platônico nos diz, ali a certa altura do livro dez da República, que o artista está a três degraus de distância da realidade. Um dos exemplos que o Sócrates nos dá é o da cama: existem camas produzidas por diversos artesãos no mundo e existe a ideia, a forma da cama, que é uma só para todas as camas que existem. Logo, o fazedor de camas está a um degrau de distância da verdade da cama, ou seja, da ideia. Mas e o poeta? O poeta, coitado, pior ainda: quando Homero, ali perto do final da Odisseia, descreve o leito de Odisseu, ele está descrevendo um leito que já existe na realidade, a partir de uma certa perspectiva, e não está lidando diretamente com a ideia ou a forma do leito. Por isso está a três degraus de distância da realidade.

Uma crítica profunda a essa concepção platônica é dada por Aristóteles na Poética, final da seção seção 1451a e início da 1451b. É uma passagem particularmente famosa em que o Aristóteles, para ilustrar sua afirmação de que a função do poeta é retratar não exatamente o que aconteceu e sim o que poderia ter acontecido, seguindo, para tanto, ou o princípio da verossimilhança ou o da necessidade, contrasta o trabalho do poeta com o do historiador. Com isto, Aristóteles como que abre uma brecha no raciocínio e retira da poesia a necessidade de que corresponda tão de perto à ideia, ou, colocando de um jeito mais pertinente para nós, a distância deixa de ser vista como algo absolutamente prejudicial. Podemos até mesmo dizer que quando Aristóteles comenta que o trabalho do poeta é mais universal que o historiador por dizer o que poderia acontecer, ele parece estar sugerindo que a distância entre a poesia e os fatos pode inclusive ser benéfica. Claro que isso não faz com que Aristóteles retire inteiramente seus pés da realidade. Geralmente tendemos a dar muita ênfase para a tal da verossimilhança, εἰκὸς, aquilo que é razoável, provável, mas é também digno de nota a menção a ἀναγκαῖον (derivado de ἀνάγκη), a necessidade.

Como Aristóteles dirige o contraste entre o poeta e o historiador para a ordem de eventos que poderiam acontecer, então o contraste entre a opção pela verossimilhança e pela necessidade é revelador, já que por esta última o que se entende é um evento que pode até não ter acontecido hoje mas que será verdade nalgum ponto do futuro. Que será fato. Com a verossimilhança, pelo contrário, o caráter persuasivo parece entrar em jogo. Pouco mais à frente na mesma seção, Aristóteles nos diz que o que é possível (δυνατόν) é convincente, persuasivo (πιθανόν).

Trazendo esse debate para a questão levantada, a postura que diz que um homem não pode retratar uma mulher por lhe faltar vivência está, em essência, coadunando com o argumento platônico, ao afirmar que o homem não teria acesso ao elemento que lhe faria estar mais próximo da verdade do universo feminino: qual seja, a vivência. Logo, a imitação que o homem faz estaria sempre a uma certa distância desse mesmo ideal. O grande problema é que a objeção de Aristóteles é séria o bastante para que reflitamos se essa correspondência tão exata é sempre e necessariamente um mal. A obra de arte não busca sempre reproduzir fielmente a realidade das coisas ou sua essência íntima. A relação parece ser muito mais complexa, de modo que o artista pode criar sua arte com base na discrepância entre imitação poética e realidade de fato ou, ainda, usar essa distância como maneira de abrir uma visão de mundo que nos permita enxergar o próprio mundo de um jeito distinto.