Quão bom é Virgílio?

Se me perguntarem o quão bom é Virgílio, bom a ponto de ser considerado tudo o que é, e se eu quiser dar essa explicação da única forma que eu mesmo realmente engoliria, penso que a melhor maneira é não exatamente pondo o ouvinte para que se defronte com uma autoridade etérea que se deve obrigatoriamente reverenciar, do tipo Virgílio é o Topo, Alta Cultura, Ocidente, Páramo, Ápice e coisa que o valha, e sim mostrando a técnica apuradíssima que quase sempre ele empunha. Uma forma muito útil, prática e sucinta continua sendo remeter o leitor interessado ao ótimo texto que o Érico Nogueira publicou anos atrás, acho que talvez mais de década, sobre meio verso de Virgílio. Sim. Meio verso. O Érico mostra bonitinho pra gente que Virgílio consegue ser um enormíssimo poeta mesmo em metade do espaço de um verso. De minha parte, um exemplo interessante é o dessa passagem aqui, do canto 1 da Eneida:

Ac primum silici scintillam excudit Achates,
succepitque ignem foliis, atque arida circum
nutrimenta dedit, rapuitque in fomite flammam.

Na tradução do Odorico:

                                Lume eis fere Acates,
Toma em folhas, e em roda as acendalhas,
Nutre a faísca, e em lenha a chama ateia.

Ou seja, o poeta está descrevendo um camaradinha chamado Acates fazendo fogo. Não há muita informação contextual relevante envolvida: os troianos acabaram de ser salvos da tempestade marítima provocada pelos ventos libertos por Eolo e, com isso, aportam numa gruta no litoral de Cartago. Precisam se alimentar e se ambientar no local, no que, para tanto, o tal do Acates faz o fogo. É uma situação muito banal que corresponde mais ou menos ao que a gente imagina que seja fazer fogo por conta própria, sem o auxílio de um útil isqueiro. Serve também como preparativo para o banquete dos heróis troianos, um tipo de cena muito comum no corpo das epopeias que se encontra às favas em Homero. O que há, porém, de brilhante numa passagem assim?

A sonoridade. Virgílio consegue fazer com que ouçamos o barulho do fogo sendo gerado. No primeiro verso, é simples percebe uma recorrência enorme de sons da consoante C. Ora: a consoante C era pronunciada no latim clássico sempre como velar e nunca como sibilante, ou seja, era sempre o som do K e não o som do S, era o som de "doCa" e não o som de "doCe".

De mãos dessa informação, experimente voltar ao verso de Virgílio e ler a passagem. Sinta o som das pedras, as "silici" do verso, batendo umas nas outras até que a chama seja montada. Depois, seguindo no trecho, perceba as sutis variações que encontramos entre as vogais E e I na primeira metade do segundo verso, seguida da sutil recorrência do A em "atque arida" e, depois, de uma nova recorrência do E e do I em "nutrimenta dedit", tudo para, no último verso, encontrarmos, num solo inteiramente preparado pelo som da consoante T, o maciço sonoro "fomite flammam", que é quando a chama de fato surge e se estabiliza depois de ter passado do estágio de mera centelha ("scintillam") e de "ignem". A partir deste último detalhe se pode notar bem a grandeza do Odorico como tradutor, que, num espaço menor que o do próprio original, se mostrou cuidadoso por exemplo ao manter três palavras diferentes para o processo (lume, faísca, chama) e encontrou um bom correspondente para as "arida nutrimenta" do latim: acendalhas. Ainda, a sucessão de sons em O no segundo verso, arrematados por um A, não deixa de ser uma forma de recriar o fogo surgindo.

Agora pense: se Virgílio faz isso descrevendo alguém fazendo fogo, pense no que não faz descrevendo por exemplo uma tempestade ou uma guerra! Isso é o quão bom é Virgílio.