Horácio por Augusto de Campos.

Acho que foi no começo do ano que o Jardel Cavalcanti publicou uma antologia de (ex)traduções do latim feitas pelo Augusto de Campos. São livretinhos de algumas páginas somente que para se ter acesso é preciso entrar em contato via e-mail com o Jardel e encomendá-los. Tenho comigo edições surpreendentes de Marianne Moore, Rimbaud e Sylvia Plath, todos traduzidos pelo Augusto, mostrando que um dos nossos melhores tradutores de poesia se mantém na ativa e com um vigor surpreendente. Quem por exemplo é leitor das antigas do bloguinho vai trazer à memória que ele tinha como título uma estrofe de Rimbaud. Na plaquete publicada pelo Augusto, a façanha de traduzir o poema mantendo as rimas mirabolantes e sem descuidar da fluência foi levada a cabo:

Diz, alva tez que ao sol se tana,
Dos dólares que dão sustento
A Pedro Velásquez, de Havana;

Pois bem. Infelizmente não tive acesso à plaquete com traduções para o latim e ao que tudo indica é bem provável que nem vá ter, já que o orçamento anda bem apertadinho nos últimos meses. Tive, contudo, acesso à tradução que o Augusto fez da ode 31 do primeiro livro do Horácio. Até onde pude conferir, é uma antologia pra lá de eclética. Vai das assim chamadas intraduções, que é quando a tradução emprega recursos multimídia e até mesmo se incorpora à obra visual do Augusto, à maneira do que acontecer com o poema 85 do Catulo, até aquelas traduções executadas no tablado tradicional do verso impresso. Bons exemplos podem ser achados em Horácio: enquanto a tradução para a célebre ode 11 do primeiro livro, aquela, do carpe diem, recria em versos livres muito livres alguns dos aspectos cascudos do poema, basicamente o mesmo que o Leminski fez não sei se antes ou depois, por outro lado podemos citar essa ode, 31 do primeiro livro, em que o Augusto parece seguir uma via mais, digamos, sóbria, uma em que o peso da mão criadora do poeta se faça sentir menos:

O que demanda ao deus, erguendo a taça
o pobre poeta, a quem cedeu a graça
     de um vinho novo? Nem a
     colheita prenhe da Sardenha

nem os rebanhos da Calábria, as urnas
dos caros ouros e marfins da Índia
     ou as áreas rurais que o Líris ainda
     morde com águas taciturnas.

Que o vinho fino sorvam os da tropa
a que a Sorte doou louros e lírios,
     e o mercador, sua copa
     de raros vinhos sírios.

Dileto aos deuses, que ele explore as
benesses e, abonado, envie vivas,
     impune. Bastam-me as olivas,
     as malvas leves e as chicóreas.

Faz que eu frua meus bens
até o fim, Apolo, a mente
     intacta, sem velhice vil,
     ou de cítara carente.

*

Quid dedicatum poscit Apollinem
vates? Quid orat, de patera novum
     fundens liquorem? Non opimae
     Sardiniae segetes feraces,

non aestuosae grata Calabriae
armenta, non aurum aut ebur Indicum,
     non rura, quae Liris quieta
     mordet aqua taciturnus amnis.

Premant Calena falce quibus dedit
Fortuna vitem, dives et aureis
     mercator exsiccet culillis
     vina Syra reparata merce,

dis carus ipsis, quippe ter et quater
anno revisens aequor Atlanticum
     inpune: me pascust olivae,
     me cichorea levesque malvae.

Frui paratis et valido mihi,
Latoe, dones, at, precor, integra
     cum mente, nec turpem senectam
     degere nec cithara carentem.

Lembro de um comentário feito pelo Augusto em que ele se queixava das acusações injustas de que os concretistas não conhecem a técnica tradicional do verso. Bazófia. Por mais que tenham no momento mais crítico do movimento concretista defendido o fim do ciclo histórico do verso, o que, por óbvio, não é o mesmo que defender o fim do verso, os concretistas eram profundos conhecedores da versificação tradicional, coisa que seus livros de estreia, alguns poemas ao longo de sua trajetória posterior ou mesmo sua atividade como tradutores demonstra bem. A respeito deste último, a razão é clara: só pode traduzir bem quem de algum jeito também escreve bem poesia. O tradutor de poesia precisa ser um poeta. Pode não ser um que nos enche o saco enviando poemas ou um que imerge em monólogos pretensamente impactantes quando alguma notícia o estarrece; mas precisa sim conhecer o traquejo próprio do ritmo poético e precisa ter lá seu estoque de rimas e recursos diversos.

O Augusto, como sempre, demonstra isso maravilhosamente bem. Se traduzir Horácio já é difícil, acrescentar rimas num texto que não as tem é uma tarefa pra lá de difícil. Hoje quase não se emprega mais a rima pra traduzir literatura antiga, coisa que em épocas passadas, se não chegava a ser um mandamento, pelo menos era mais comum (uma exceção que me vem à cabeça é um trabalho curioso do professor Beethoven Alvarez também sobre Horácio). Posso tentar explicar isso dizendo que a mentalidade sobre tradução hoje tende em boa parte dos casos a deixar de lado soluções domestificadoras em prol de soluções estrangeirizantes, ou seja, você deixa de tentar aclimatar o original na sua cultura de chegada, por vezes a ponto de aparar algumas de suas arestas mais peculiares, e abraça a estranheza que o original oferece. Naturalmente que dificilmente há (e se é que pode haver) uma adesão completa a apenas um dos lados, e prova disso é que se por um lado o Augusto rima um original que era composto segundo outros padrões de construção métrica, por outro ele se preocupa em manter vários de seus pontos fundamentais e mesmo parte do fraseado sinuoso tão característico do poeta romano:

Que o vinho sorvam os da tropa
a que a Sorte doou louros e lírios

Período que no primeiro verso inverte a ordem entre sujeito e objeto e, no segundo, opta pela construção "a que" em vez da corriqueira "para quem". De um modo geral, contudo, a sintaxe não me pareceu lá muito enovelada, e penso que o Augusto conseguiu chegar a um meio termo realmente muito bem calculado, afinal de contas embora Horácio tome partido criativo das possibilidades de construção sintática que o latim oferece, não custa lembrar, como Décio Pignatari fez uma vez, que a linguagem de Horácio era elaborada, mas nenhuma bizarria; era elaborada, mas nada inteiramente desconectado da realidade dos falantes cultos.

Cito o caso do Décio pois ele foi um grande apaixonado por Horácio. Verteu vários de seus poemas numa belíssima antologia que publicou no começo da década de 90. Ainda hoje boa parte do que concebo quando falo de Horácio é recordando o nível de qualidade tão elevado que o Décio alcançou ali, a forma tão instigante com que ele apresentou o grande poeta romano para o leitor brasileiro. Horácio, nosso contemporâneo. Por mais que Horácio seja uma pedra-angular na lírica do Ocidente, há quase um século atrás Drummond se queixava que num Rio de Janeiro de um milhão de habitantes não era possível encontrar um amigos que lessem Horácio, ilustrando, com isso, a solidão do homem nas grandes metrópoles.

Isso me leva então a perguntar o que levou o Augusto a traduzir Horácio ou, até para ser mais exato, traduzir essa ode. Uma vez que ele seguiu um caminho difícil de traduzir e rimar, deve ter havido algum motivo, já que muitas vezes quando os concretistas traduzem eles têm lá suas explicações entro da cartola. No caso da ode 31, investigar o que levou o Augusto a traduzir é mais simples do que a princípio parece: foi um dos poemas que chamou a atenção de Ezra Pound:

By the flat cup and the splash of new vintage
What, specifically, does the diviner ask of Apollo?
Not
Thick Sardinian corn-yield nor pleasant
Ox-herds under the summer sun in Calabria, nor
Ivory nor gold out of India, nor
Land where Liris crumbles her bank in silence
Though the water seems not to move.

Let him to whom Fortune's book
Gives vines in Oporto, ply pruning hook, to the
Profit of some seller that he, the seller
May drain Syra from gold out-size basins, a
Drink even Gods must pay for, since he found
It is merchandise, looking back three times,
Four times a year, unwrecked from Atlantic trade-routes.

Olives feed me, and endives and mallow-roots.
Delight had I healthily in what lay handy provided.
Grant me now, Latoe:
                                   Full wit in my cleanly age,
Nor lyre lack me, to tune the page.

O tom geral me parece ser claramente o de realçar a veia irônica e algo sarcástica do poema. É o que explica por exemplo a inclusão de um advérbio como "specifically" no segundo verso ou a ênfase nas negativas, isolando "Not" num único verso e fazendo dois deles terminarem com "nor". O próprio dístico final, com sua rima e sua linguagem a subir alguns degrauzinhos na dicção ("Nor lyre lack me", com alguma coisa de Shakespeare se fazendo ouvir), não estão aí de forma gratuita. Pound fala de Horácio num ensaio publicado na década de 70, discutindo traduções de Horácio para diversas línguas, da seguinte forma:

Neither simple nor passionate, sensuous only in so far as he is a gourmet of food and of language, aere perennius, Quintus Horacius Flaccus, bald-headed, pot-bellied, underbred, sycophantic, less poetic than any other great master of literature

O último adjetivo demonstra bem uma característica do estilo do Horácio acentuada por Pound e que seria depois lida pelo Augusto em sua tradução e em especial, penso eu, pelo Décio. Para evitar equívocos: ele não quer dizer que Horácio seja um poeta desinteressante, ainda mais porque pouco depois no mesmo ensaio o chama de "most skillful metrist" entre os latinos, com exceção de Catulo. O que Pound está chamando a atenção é para a admirável mediania do estilo horaciano, que não pode ser traduzido com excessos de qualquer forma: "The translator not realizing that the unity is the essential personal unity of Horace, but trying to render both extremes without the middle is apt to fall into one of two errors. He will either give only one phase of a poem; either the facetious or the poetic; or else". A ode 37 pode servir como modelo disso. Nela o poeta se acha diante de um templo dedicado a Apolo, descrito por Propércio na elegia 2.31 assim (tradução de Guilherme Gontijo Flores):

Ali, mais belo do que o próprio Febo, um mármore
    parecia cantar sem som de lira

Contrário a isso e a todos os faustos enumerados ao longo da segunda estrofe, o poeta quer uma vida simples. Basta contrastar, na penúltima estrofe, a postura do mercador, que é chamado de "dis carus ipsius" e "impune", com a do poeta, para quem bastarão "olivae", "cichorea levesque malvae". A última estrofe, nesse sentido, encerra o texto com pedidos muito singelos, em especial "Frui paratis", algo como gozar o que me foi preparado, gozar as coisas que disponho, que hoje tenho.

É um poema admirável, mas não está entre os mais célebres e mesmo mais comentados de Horácio. Se foi escolhido por Pound, suponho que seja porque demonstra os riscos manifestos de não entender "the homogeneity of his medium". A ode consegue ir de momentos nitidamente poéticos como "quae Liris quieta / mordet aqua taciturnus amnis", com a escolha peculiar do verbo "mordet", até a simplicidade de "me pascust olivae, / me cichorea levesque malvae". Realço esses aspectos pois é precisamente esse o ideal que me parece estar por trás da tradução do Augusto. Note:

Dileto aos deuses, que ele explore as
benesses e, abonado, envie vivas,
     impune. Bastam-me as olivas,
     as malvas leves e as chicóreas.

A sintaxe é extremamente clara, e, no entanto, o tradutor se dá ao luxo de por exemplo rimar "explore as" com "chicóreas", uma rima redondinha daquelas que o tradutor preza muito em chegar. Mas não só. O tradutor recria o batuque do original apertando as teclas do L e do V e, por exemplo, trocando as "malvas leves" de lugar com as "chicóreas" só pra deixar elas mais perto das "olivas", maximizando assim o efeito sonoro. Você consegue encontrar diversos truques desse tipo ao longo da estrofe, a exemplo do V bem marcado no segundo verso, "envie vivas", ou então a sequência D-P-B na primeira metade da passagem. Tradução, meus amigos, do mais alto nível.