O minério das conchas.

Ruminemos um pouco sobre um poema extraordinário de um grande autor mineiro de nome Edimilson de Almeida Pereira. Está publicado naquele que é para mim um dos melhores livros de poemas da década passada: qvasi. Não se acanhe se o achar difícil. Eu também o considero pra lá de complexo, como, de resto, eu penso que a poesia do Edimilson de um modo geral é. Creio, porém, que como essa dificuldade da poesia dele é uma dificuldade provinda da reflexão bastante profunda que empreende e não por exemplo de alusões externas, vocábulo raro, sintaxe emaranhada, então, uma vez que a gente pega um pouco o espírito da coisa, o poema cresce muito dentro de nós.

OFÍCIO

Tatear a origem
é iludir-se.

O escrito, à mercê
do que foi dito,
inaugura outro país.

O que se dá nos mapas
em forma
de província, urbe
& melhorias

não é senão um caco
de palavra.

A origem ressona
grave,
sem nação ou pacto.
Há quem a leve

no bolso, em crimes
que nos deserdam.

Outros a curtem sob a
forma de bois de aluguel.
Ou a costuram em óleos
santos.

Mas há os ferinos e seu
humour
que tira o minério
das conchas.

Por eles a origem despista
rendas, misérias
e outros benefícios.

Pela origem
somos-não-somos.
Espécie que escreve
para esquecer.

Eu realmente não sei dizer se essa ainda hoje é uma ideia lá muito defendida, mas, de todo modo, é basicamente a noção de que entender um texto é entender o que o artista quis dizer. Você até pode ter lá sua leitura e eu por exemplo a minha, mas nós só vamos realmente encontra um árbitro justo para a pendenga se consultarmos entrevistas, correspondências ou testemunhos que confirmem quem de nós está certo.

Um dos primeiros problemas de uma visão assim é que nem sempre o, pasme!, próprio artista faz lá muita ideia do que quis dizer com aquele poema. É aliás uma situação relativamente comum dentro de algumas vertentes da poesia moderna em que os processos associativos e inconscientes de criação desempenham um papel importante. Além do mais, a existência de várias interpretações muito convincentes a respeito de uma obra, às vezes até mais do que a visão do seu criador, parece indicar que a motivação não pode ser a meta final de toda interpretação, já que posso chegar a uma interpretação que não coincida exatamente com essa motivação.

Tais objeções integram um tópico já bastante consagrado dentro da filosofia hermenêutica e da teoria literária. Scheleiermacher, um célebre hermeneuta alemão do século XIX, julga que a tarefa de interpretar um texto requer uma espécie de congenialidade que nos faça por vezes entender o texto melhor do que seu próprio autor. A dupla dinâmica Wimsatt e Beardsley, dois grandes críticos americanos, cunhou na primeira metade do século passado um conceito emblemático que descreve justamente a pretensão de pautar a interpretação com base na intenção do artista: a chamada falácia intencional. Ela calaria fundo na prática da análise literária a partir de então, repercutindo por exemplo em teorias como a da angústia da influência ou da morte do autor. Com isso, claro, não quero dar a entender que até então a leitura fosse o mesmo que vasculhar a intimidade do criador. Eu diria na verdade que a própria necessidade de uma objeção desse tipo é resultado de quando foi preciso fazer frente com uma postura biografista muito em voga no final do século XIX, segundo a qual a relação entre vida pessoal do artista e obra era a da árvore para com o fruto.

Este me parece ser o sentido do poema. Reflete a respeito da natureza de tudo o que é escrito e, se o leitor anuir com meu acréscimo, do que é produzido pelo homem: ou seja, o tablado em que nossas criações artísticas desempenham seu espetáculo não é o das nossas memórias íntimas. A obra de arte, uma vez que só pode ser ativada pelo toque do leitor, abre um espaço que é novo, composto de uma vegetação que em parte é a do artista no reino de suas concepções e em parte é nossa, com nossa bagagem e as repercussões que os textos causa na gente. O novo país que a obra de arte suscita não se enraíza na vivência do artista e nos detritos do contexto. Estes são elementos que podem até servir como uma espécie de mapa ou guia, que, por mais reveladores que a princípio pareçam, não resumem a natureza essencialmente criativa e criadora daquilo que produzimos. Por isso o poeta diz que "A origem ressona / grave, / sem nação ou pacto." Não custa afirmar o óbvio: "ressonar" não é "soar", "ecoar" ou sinônimos que um dicionário superficialmente poderia apontar. Com "ressonar" o poeta indica tudo o que vai além do eco que a palavra faz quando ultrapassa a laringe; está falando na forma como ela repercute nos leitores a ponto do seu contato com a palavra do texto inaugurar uma espécie de segundo ato criador.

Mas aqui precisamos refrear um pouco o impulso do raciocínio. Seria o mesmo que dizer que a obra de arte é universal a ponto de ser atemporal, isto é, a ponto de negar sua pertença histórica? É uma reflexão tentadora, já que parece confirmar o que estamos carecas de saber: a obra de arte exprime uma mensagem relevante o suficiente para se fazer ouvir por toda e qualquer cultura. Sabemos, porém, que muitas vezes o que se aponta como universal é uma construção que somente alcança esse patamar quando relega outros saberes à alcunha de exóticos. É o que ocorre quando conseguimos louvar o caráter (aspas) universal (fecha aspas) por trás de um poeta brasileiro que se espreguiça sobre o repertório da mitologia pagã e torcemos o nariz quando orixás abrilhantam os versos do outro.

Além disso, a ideia de que o ser da obra de arte é universal por relegar a segundo plano seus traços históricos não parece ser muito acertada. Como a obra de arte pode pairar à deriva dos acontecimentos históricos se ela é produto humano? Há reflexões soberbas feitas pelo grande hermeneuta alemão Gadamer no primeiro volume de seu Verdade e Método a respeito do assunto. Num trecho importante da obra, Gadamer nos diz que a arte não é um a-temporal, destacada do fluxo histórico quando apreciada por gerações posteriores, e sim um in-temporal, ou seja, empreende um mergulho no tempo sem abandonar sua historicidade, demandando do leitor, na verdade, que mescle seu horizonte histórico com o da obra a partir do solo em comum da tradição e sempre sob a forma da linguagem, resultando, assim, no fato de que a obra de arte não é nem um objeto que vaga para além da contingência humana e nem um artefato de séculos atrás que não nos diz respeito, mas, justamente por ser um in-temporal, ele é simultâneo a qualquer presente. É sempre nosso contemporâneo.

Julgo que o poema está ciente disso e não chega a negar a pertença histórica de uma obra de arte em prol de uma suposta universalidade. Os bois de aluguel ou o óleo santo que aparecem na sétima estrofe, expressões maravilhosas e muitíssimo reveladoras, indicam muito bem o tiro pela culatra que alguns defensores da universalidade irrestrita e a-temporal da obra de arte costumam incorrer. Mas aqui, novamente, é preciso avançar com cautela, afinal de contas rechaçar a postura de quem tenta sacralizar a origem ou terceirizá-la em solos alheios não é o mesmo que pôr a obra à mercê de leituras marcadas.

Permitam-me ser mais claro. Por leitura marcada me refiro àquele tipo de postura infelizmente muito comum diante de literaturas de minorias, feita por vezes até por quem tem muita boa vontade e consciência social, que é quando o leitor submete absolutamente tudo que o artista tenha escrito à chave de leitura da marginalização social. A penúltima estrofe me parece ser a pedra no sapato desse tipo de leitura, ao mostrar que pelo humour dos ferinos a origem despista as mazelas econômicas da vida do artista, no que peço ao leitor que aprecie a deliciosa ambiguidade do trecho "rendas, misérias /e outros benefícios": pode indicar, de um lado, que temos três elementos dentro da enumeração, ou pode indicar que os outros benefícios estariam de algum modo dentro das misérias, o que, por mais absurdo que possa parecer, afinal de contas trataria a miséria como um benefício, por outro, dentro da lógica tacanha das leituras marcadas, é uma descrição nua do que acontece quando se pretende avaliar a obra de um artista tomando como base exclusivamente a vida fodida, com o perdão da expressão, que ele teve.

Pois bem. O poema é, sendo assim, uma descrição admirável do modo de ser da obra de arte e da distância irredutível que toda criação humana estabelece para com seu criador. A capacidade dos artistas, chamados pelo Edimilson de "ferinos", de extrair minério das conchas com o seu humour, demonstra que o artista é quem diverge do espelhamento puro e simples dos fatos que tem diante de si. O material da obra de arte, o ofício do artista, não é o de mascarar a arte e a própria realidade costurando com óleo santo. A imagem transmitida aqui é muito outra: o artista extrai da realidade alguma coisa de mais profundo que já não pode ser acessado simplesmente reconstruindo as condições terrenas de sua existência. Guardemos por ora essa sugestão e mudemos nossa atenção para a última estrofe. Quando pensamos na dualidade entre o ser e o não ser, geralmente adotamos o partido de Hamlet no famoso verso de seu solilóquio: ser ou não ser, ou seja, a escolha entre um lado ou o outro que gera uma poderosa inquietação na alma do personagem.

No poema do Edimilson temos uma situação muito distinta. Sugeri antes que ele não chega a postular que a origem histórica da obra escrita seja um dado a ser apagado. Para tanto, trouxe alguns rápidos apontamentos sobre a hermenêutica gadameriana, que, tão entusiasta como era a respeito da tecnologia da escrita, via nela, por um lado, aquilo que se desvencilha da contingência de sua origem e passa a deixar exposto unicamente o que é dito, e, por outro, demanda a presença necessária de um leitor para que possa vir à fala. Penso que esta leitura que estou propondo pode ser confirmada se notarmos o verso "somos-não-somos", um composto amarrado por hífens indicando de imediato que o poeta está trazendo à baila não mais a dualidade de Hamlet e sim o pensamento do grande filósofo grego Heráclito.

Dele nós conhecemos muito bem a frase segundo a qual não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Sócrates nos explica, no diálogo Crátilo, seção 402a, que para Heráclito a imagem do universo é a da correnteza de um rio, já que tudo está em constante mudança e nada permanece o mesmo. O curioso, porém, é que essa frase é ainda mais enigmática do que parece. Como nós não temos nenhum fragmento de obra propriamente heraclitiana, ou seja, tudo o que temos são menções a Heráclito em estado muito lacunar, nós temos que ir apalpando no escuro e intuir até onde der o que seria o pensamento desses autores e, ainda, às vezes reunir os fragmentos que nos chegaram e tentar decidir qual deles teria sido o aforismo do filósofo. No caso da imagem dos rios, contamos com três fragmentos a respeito, classificados como b12, b49a e b91a. Destes, quero me concentrar rapidamente só nos dois primeiros, ambos traduzidos por José Cavalcante de Souza:

Aos que entram nos mesmos rios outras águas afluem

Trata-se do fragmento b12, de origem um pouco intrincada: Eusébio, um dos pais da Igreja, no livro 15, capítulo 20 da sua obra Preparação para o Evangelho cita um autor de nome Ário Dídimo que a seu turno teria citado Heráclito. O propósito de Eusébio é apresentar o pensamento dos estoicos a respeito de diversos assuntos, por exemplo o universo ou, o que será tratado no capítulo, a alma. De um modo geral ele está a maior parte do tempo citando trechos longos de Ário Dídimo a respeito desses autores. É o caso de Zeno, um importante filósofo estoico que concebia a alma como exalação dotada de sensação. Ário Dídimo diz que nesse aspecto Zeno se aproximava de Heráclito no sentido de que ambos pareciam pensar que havia uma perpétua produção de almas inteligentes por exalação. Cita portanto o fragmento b12 de Heráclito e afirma que para Zeno ocorria algo parecido, com a diferença de que em sua concepção a alma era exalação do úmido. Que úmido? Bem: Zeno pelo jeito defendia que a sementinha que o homem emite (o diminutivo é por minha conta) nada mais era que sopro combinado com úmido, algo como uma mistura de várias partes da alma que, uma vez alojada no útero, cresce em segredo e continua a receber acréscimos do úmido.

Pois bem. O fragmento b49a, a seu turno, diz:

Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.

Sua fonte é uma obra sobre Homero, seção 24, escrita por um gramático grego xará do filósofo. Ele está refletindo sobre se não haveria alguma forma de paradoxo quando Homero se vale de alegorias tais como chamar o éter de Zeus e o ar de Hades. Mesmo um filósofo como Heráclito, chamado por seu xará de obscuro, usa-se de símbolos para tratar das matérias vagas de que trata. E então cita fragmentos particularmente difíceis como o b49a ou o b62.

Há uma discussão mais ampla a respeito de qual desses fragmentos seria propriamente heraclitiano; contudo, nem de longe quero entrar nela. Pensemos antes nas diferenças que existem entre esses dois fragmentos. Enquanto no segundo o homem que entra no rio é e não é ao mesmo tempo, entra e não entra, no primeiro a ênfase está no próprio rio. Como é possível que os rios sejam os mesmos se outras águas afluem? Daniel Graham sugere que vejamos no rio aquilo que, para ser o que é, precisa ser necessariamente outro, ou seja, precisa renovar suas águas. É este o comentário feito pelo grande filósofo inglês David Hume na seção 6, parte 4, livro 1 do seu Tratado sobre a natureza humana: "the nature of a river consists in the motion and change of parts". É de fato uma interpretação muito interessante e que pode ser posta ao lado do fragmento b6, extraído de uma passagem da Metereologia de Aristóteles que diz que o sol, mais do que ser apenas novo cada dia, como diz Heráclito, é, na verdade, novo continuadamente. Aristóteles chega a essa conclusão ao refutar a afirmação de alguns filósofos predecessores, de que o sol seria nutrido pela umidade: na verdade, diz Aristóteles, a partir do momento em que a chama é uma troca constante de umidade e secura, ele não pode ser nutrido já que quase não persiste o mesmo por um instante.

Pois bem. Feito este rápido interlúdio, podemos voltar à estrofe:

Pela origem
somos-não-somos.
Espécie que escreve
para esquecer.

Sermos e não sermos ao mesmo tempo pode ser lido tanto à luz do fragmento b12 quanto à luz do fragmento b49a de Heráclito, indicando, em síntese, que pela origem estaríamos numa mudança constante sem que nesse processo de constantemente não ser, deixássemos precisamente de ser, já que, à maneira do rio, de quem entra no rio ou mesmo à maneira do sol segundo Aristóteles, pela origem a mudança faz parte do que somos. É uma conclusão esplêndida, já que quando falamos da mudança nós nem sempre costumamos cogitar a origem: na verdade, a origem serviria como o porto seguro, o marco zero a partir do qual as mudanças ocorreriam, e quem por algum acaso quiser entender a verdade do texto deverá regressar à origem para que o encontre isento de mudanças quaisquer. O poeta sugere uma conclusão mais radical: é justamente pela origem que os polos se confundem e o ofício do poeta se mostra mais agudo e perspicaz, ou seja, é na origem que os elementos biográficos e históricos podem se mostrar como relevantes ou não, de modo que o tipo de leitura que coleta dados biográficos e contextuais e depois, de posse deles, busca na obra meras repercussões, meros reflexos, está terrivelmente equivocada. Não é que a vida própria da obra de arte seja uma deturpação que infelizmente ocorre pelas mãos de leitores descuidados, mas, sim, que a constante mudança, o inaugurar um novo país, faz parte da essência da obra de arte.

A conclusão dos dois últimos versos, sendo assim, guarda uma pontada de ironia extremamente aguda. Quantas vezes já não ouvimos dizer que o ser humano tem na escrita uma forma de se perpetuar e se legar aos pósteros? É uma explicação um tanto esperançosa que ignora, para retornarmos ao início do poema, que tatear (atenção ao verbo!) a origem é se iludir. O pressuposto romântico de que a obra reflete a vida do artista ou o contexto, a Realidade com maiúscula, é muitas vezes um pressuposto que não tem nem de longe toda a objetividade que diz ter. Quando o poeta nos diz que somos uma espécie que escreve para esquecer, ele não está afirmando de maneira enfático que isto é realidade em todos os casos. Esquecer aqui é tanto resultado do fato de que o ofício do artista é extrair um minério mais profundo que o ouro de aluvião da superfície, ou seja, ainda que escrever seja um modo de perpetuar algumas coisas, é sempre também uma forma de esquecer outras; quanto resultado de uma admirável luz ambígua que o Edimilson lança sobre a questão, mostrando pra gente que a escrita engendra uma fenda irredutível que desconecta o artista de sua obra, já que essa mesma obra é não somente expressão em algum nível do próprio artista como é, ainda, objeto inventado e objeto de invenção.