Duplo diálogo com a tradição.

Retornando ao retorno estético. É um conceito que o Wladimir Saldanha emprega na sua antologia de poesia contemporânea brasileira traduzida para o francês. Tomado de empréstimo de Harold Bloom, ele aponta, sucintamente, para uma leva recente de poetas que discrepa da tendência forte na poesia contemporânea de realçar a temática e o lugar de fala do autor - aquilo que, voltando a Harold Bloom, é chamado Escola do Ressentimento.

A certa altura do prefácio, o Wladimir faz um comentário que me deixou encucado: "é particularmente significativo que o uso de formas fixas ressurja revigorado". Fiquei ruminando isso nos últimos dias. Concordo que tem realmente uma galera forte na poesia hoje que pesa demais a mão na apreciação da temática e do lugar de fala, muitas vezes sem dar um tostão furado pelo trabalho artesanal do pobre do artista que, afinal de contas, quer ser mais do que apenas espécime exótico do fenotipo ♣. Não sei muito bem como rotular esse pessoal, mas imagino que seja essa preferência que explique a vendagem astronômica de livros na linha de produção Rupi Kaur ©, ou seja, uma poesia que facilmente se passa por prosa picotada sem que isso necessariamente represente um demérito.

Mas é assunto pra outra prosa.

Eu sinceramente estou de acordo com o Wladimir ao farejar uma linha de força interessante na poesia contemporânea. Só acho que a gente precisa ter muita cautela nessa hora, principalmente pra não entornar o caldo e querer descrever um fenômeno que em última instância seria um rebotalho do nosso gosto. Explico. Seria bastante cômodo colocar o chapéuzinho de "relevante" nessa poesia quando ela, para todos os efeitos, corresponde a meu gosto como leitor. O crítico precisa entender que uma linha de força não é sinônimo de qualidade mas, apenas, que a boiada da poesia está rumando pra lá e não pra cá. O juízo de valor pode até dar as caras, mas só depois e dentro de um contexto diferente de leitura.

Feita a ressalva, o que me parece característico dessa poesia não é genericamente o fato dela "dialogar com a tradição". Ora, cara pálida: toda poesia dialoga com a tradição. Nem muito menos que ela queira dialogar com a tradição, uma vez que outros poetas no cenário contemporâneo também fazem o mesmo, a exemplo de um Ricardo Domeneck que, num livro como Ciclo do amante substituível, estabelece diálogo até mesmo com a tradição da cantiga trovadoresca.

O que me parece característico, portanto, não é um diálogo com a Tradição (estou colocando em maiúsculo pra deixar bem ridículo e espalhafatoso), mas o que eu chamaria de um duplo diálogo. Serei mais específico. Quando o Wladimir diz que é significativo o retorno às formas fixas, estou de acordo com ele: realmente é. O principal diálogo que esses autores estabelecem é com tradições diversas, do simbolismo francês (como é o caso de Wladimir Saldanha ou Gustavo Felicíssimo) até a poesia greco-romana (como é o caso de Leonardo Antunes e Érico Nogueira), mas que passa muitas vezes por um segundo diálogo que consiste em revisitar a versificação tradicional. É essa última que me parece dar um tom peculiar ao trabalho desses poetas.

A poesia do Domeneck, como disse, dialoga com a tradição, e eu acho até que de um jeito bem mais fértil que boa parte dos poetas selecionados na antologia; o problema é que ela não estabelece o duplo diálogo com a versificação tradicional. Eis a questão. Os poetas recortados pelo Wladimir, ao contrário, estipulam esse duplo diálogo e, nisso, exploram de um modo bem peculiar a alvenaria tradicional do verso. A primeira maneira como fazem isso é graças ao fato de que conversam abertamente com nosso tempo, o que, por tabela, gera uma necessidade de reelaborar os recursos da versificação tradicional: e o exemplo de um Leonardo Antunes é eloquente por si só.

Mas fazem também de outro jeito: quando releem tradições distintas, eles colocam (e querem colocar) o verso tradicional em confronto e contraste com a sua releitura, produzindo, na prática, não somente uma releitura por exemplo do simbolismo francês, mas duas releituras, já que uma delas é dirigida à forma do texto e envolve uma abordagem nova das ferramentas que a versificação tradicional a princípio oferece. Nessa experiência, nessa dupla releitura, muitas vezes há um contraste e um choque, a exemplo de quando Leonardo Antunes toma a tradição da poesia social, que remonta em especial aos grandes autores do nosso modernismo, e a põe em contraste com uma releitura muito interessante da coroa de sonetos, que traz em sua história uma investigação religiosa acentuada.

Batendo na mesma tecla: para mim, o traço característico dessa vertente é mais do que o mero diálogo com a Tradição (sim, de novo a tal maiúscula). É o fato de que ela sempre busca colocar duas tradições em diálogo, uma delas a do verso tradicional. Por isso o Wladimir está coberto de razão quando diz que não são poetas que apenas revisitam o Parnaso: o diálogo deles não é com o verso tradicional.

Pois bem. Se me permitem, quero agora tratar de duas objeções possíveis. A primeira dirá que alguns desses poetas talvez não queiram dialogar com o verso tradicional ou que esta não seja uma preocupação sua. Já a segunda, de modo bem direto, dirá: o verso livre. Está se esquecendo dele, meu querido.

Sobre a primeira delas, estou de acordo. Não acho que a poesia de Dirceu Villa, por exemplo, ou a de Marcus Fabiano Gonçalves estejam realmente preocupadas em dialogar com o verso tradicional. Enxergo na obra desses autores uma investigação mais radical da tradição que só eventualmente passa pela revisitação do verso tradicional. Mas isso, no fundo, é diferença de leitura, é diferença de enquadramento, e não quero entrar muito nisso, já que seria quando muito uma divergência pontual que não altera o quadro geral esboçado.

Sobre a segunda objeção, reconheço que ela é séria. Quem lê a poesia de Emmanuel Santiago, por exemplo, para além dos poemas selecionados, verá que ele tem ótimos poemas em verso livre. Como fica? Penso que o próprio Wladimir nos dá uma resposta. Leiamos outro trecho do prefácio:

Por isso, revisitar formas fixas ou praticar o verso livre com a destreza de quem, vindo daquelas, conhece a fundo aspectos rítmicos da linguagem, é algo especialmente sintomático no Brasil.

Eu formularia a questão de um modo um pouco distinto. Muitos já conhecem aquela frase instigante do Quintana em que ele diz que só tem direito de praticar o verso livre quem primeiro se exercitar regularmente nas formas fixas. Isso é muito bacana, cabe no bolso e dá pra mostrar pra qualquer transeunte; o foda é que não explica muito. O poeta pode conhecer "a fundo os aspectos rítmicos da linguagem" de diversas outras maneiras, algumas, pra ser bem franco, potencialmente mais ricas, a exemplo de quem esteja devidamente versado em cantos populares.

Tirando essa problematização, o comentário do Wladimir ilumina um aspecto notável: o poeta que tem fluência na versificação tradicional, como julgo ser o caso de todos os selecionados, sem exceção, é um poeta que tem um ouvido rítmico apurado e que constrói seus versos livres de um jeito sensivelmente distinto de quem não cumpriu esse alistamento militar. Se voltarmos ao exemplo do Emmanuel, veremos que seus versos nunca são escancaradamente livres, já que muitos versos tradicionais habitam as entranhas dos seus textos. Esses poemas podem inclusive ser lidos como o que chamamos de versos polimétricos, que é quando o poema não tem lá uma medida previsível ou mesmo uniforme, muito embora conte com medidas soltas que podem ser captadas aqui e ali por ouvidos mais atentos. Manuel Bandeira discute isso lá pelas tantas do Itinerário de Pasárgada, ao diferenciar os versos livres que começou escrevendo daqueles que, no Libertinagem, ele empregou, isto é, os versos livres deste último livro eram muito mais livres pois abriam mão até dos versos tradicionais.

Sendo assim, penso que mesmo quando os poetas selecionados partem para o verso livre, eles continuam o diálogo com a versificação tradicional. Um exemplo: a estrofe inicial de um poema do Emmanuel:

A lua nova é um ovo
que a madrugada,
com suas plumas
de ágata, chocou. 

Conte as sílabas poéticas. O primeiro verso pode ter seis ou sete sílabas, a depender de como você conta o trecho "-va é um". Os versos dois e três têm, ambos, quatro sílabas, enquanto o verso quatro tem cinco sílabas, podendo ter também seis se você separar as sílabas do comecinho, "de á-".

Se prestar atenção na acentuação interna, perceberá que os versos têm um ritmo binário de uma sílaba fraca seguida de uma sílaba forte muito característico pelo menos até a quarta sílaba poética. No primeiro verso, seja lá como você decida contá-lo, nós encontramos: "a LUa NOva". Depois entra a questão de como contar o encontro "-va é um", que eu irei deixar em suspenso pois não acho que haja uma única resposta. Nos dois versos seguintes, a mesma coisa: "que a MAdruGAda" e "com SUas PLUmas".

Isso muda no último, o que imagino que tenha sido pensado como forma de dar ênfase ao momento em que o ovo é chocado. É que se você for ler o ritmo desse verso, perceberá que, depois da primeira sílaba forte do verso, nós temos três fracas em seguida, "-gata cho-", para só então encontrarmos outra forte, "-cou". A ênfase à ação de chocar também é vista no fato de que o verbo fecha a estrofe, isolado por vírgula, bem como pelo fato de que é o único verso que termina com palavra oxítona.

Pois bem. Versos livres, poderíamos pensar num primeiro momento. Mas um tipo de livre escrito por quem tem ouvido treinado na versificação tradicional. Duplo diálogo.