Parmênides, fr. b14.

Anos atrás (deve ter sido isso mesmo: anos atrás) li numa newsletter do Trajano Vieira um comentário e tradução a respeito desse verso de um poema de Parmênides, catalogado como b14. É biscoito fino: chegou a passar pelo crivo de um leitor rigoroso como Haroldo de Campos, que, capaz como era encontrar poesia até na prosa filosófica de Hegel e Lacan, colocou uma versão sua para esse fragmento numa seção chamada de "greguerias".

A fonte do fragmento está num discurso de Plutarco contra Colotes, mais especificamente na seção 15, 1116a. Plutarco na passagem está refutando uma leitura feita por Colotes de Lâmpsaco sobre Platão; especificamente, uma confusão que ele teria feito entre as proposições "O homem não é" (τὸ μὴ εἶναι τὸν ἄνθρωπον) e "O homem não é um ente" (τὸ εἶναι μὴ ὂν τὸν ἄνθρωπον). Enquanto no primeiro caso se abole qualquer tipo de substância, é como se no segundo se diferenciasse entre a coisa que participa e aquilo ao quê ela participa.

Plutarco pretende assinalar a diferença entre aquilo que é por si só e aquilo que somente é por meio de outro ser. Enquanto o primeiro sempre será inteiramente um ente, o segundo, por depender de outra coisa, está fadado a ter uma imagem inconstante. O exemplo dado é ilustrativo: quem diz que a imagem de Platão não é Platão está realçando a diferença entre o que existe por si só (Platão) e o que existe somente em relação a outra coisa (a imagem de Platão). A conclusão do argumento é a de que assinalar uma essência comum às coisas, uma Ideia, não é o mesmo que deixar de lado suas características pessoais, uma vez que quem quem alega que as coisas estão distantes daquilo que lhes dá substância (mais uma vez: a Ideia) não rejeita o sensível.

O fragmento b14 de Parmênides aparece nesse contexto. Para Plutarco, afirmar que cada um de nós se torna a imagem daquilo que proporcionou a semelhança a nossa espécie (ou seja, a imagem de uma Ideia de homem, de uma substância comum a todos nós) não é o mesmo que roubar as características pessoais ou físicas do homem, afinal de contas a forma terrena do homem é o que é por meio de outro ser. O primeiro exemplo que Plutarco dá é o de quem nega que ferro quente seja fogo simplesmente. Tal pessoa não está eliminando o uso do aço; ela está simplesmente partindo da noção de que o ferro esquenta a tal ponto que se torna a imagem de sua fonte de calor, a tal ponto que seja tomada como fogo. Situação idêntica é a de quem diga que a Lua não seja o Sol, mas sim, como Parmênides disse (e então o fragmento b14), que ela tome de empréstimo a luz solar: nesse caso, a pessoa não estaria subtraindo a natureza da Lua e sim apenas dizendo que a luz lunar é imagem de sua fonte de luz, ou seja, o sol. Situação muito diversa seria a de afirmar que ela não é um corpo ou que não é iluminada, já que nesse caso o equívoco está em contrariar os sentidos.

O uso do verso de Parmênides, portanto, é um uso essencialmente ilustrativo. A relação da luz da lua com a luz do sol está dentro do argumento central dessa seção de Plutarco em que se tenta mostrar a diferença fundamental que existe entre algo que é por si só e aquilo que é dependente de outra coisa. Mas isso é com Plutarco. E com Parmênides? Qual o sentido do verso no seu poema?

Difícil dizer. A deusa, no fragmento b10, diz ao poeta que ele conhecerá todas as coisas das mais altas esferas, dentre elas os trabalhos do sol e da lua e até mesmo a verdade a respeito da origem dos corpos celestes (fr. b11). Este parece ser o contexto: uma espécie de abandono das τὰ δοκοῦντα, que designam, segundo Alexander Mourelatos, um importante especialista em Parmênides, não apenas as coisas que chegam à nossa sensibilidade como, ainda, as que parecem de algum modo ser aceitáveis. O conhecimento da verdade, ἀλήθεια, deve ir além da opinião comum. Esta é uma chave importante para a leitura do poema. Heidegger chega a afirmar que em Parmênides a questão da ἀλήθεια não é simplesmente a questão da verdade mas, sim, de um desvelamento, uma abertura para o ser e o pensar que não se atém nem à opinião comum (δόξα) e nem às evidências, por assim dizer, científicas.

Saber que a luz da lua vem do sol seria, sendo assim, parte da verdade que a deusa quer desvelar? Mais uma vez, é difícil dizer. Acho que aqui avançamos de maneira perigosa. Nem mesmo quando acoplamos o fragmento b14 ao próximo, que aparentemente é seu vizinho, conseguimos avançar com maior segurança. Este último, também extraído de Plutarco, seção 16 de uma obra sobre a face da Lua, diz, na tradução de José Cavalcante de Souza:

αἰεὶ παπταίνουσα πρὸς αὐγὰς ἠελίοιο.
Sempre olhando inquieta para os raios do sol

Apesar de todas as dificuldades em entender seu sentido, o fragmento foi recebido com entusiasmo por exemplo por Karl Popper. Compreensível. É de fato uma observação extraordinária. O doxógrafo Aécio diz expressamente (em A42) que Parmênides defendia a posição de que a luz da lua vem do sol. Mourelatos nota ainda que o uso da preposição περὶ, "em torno de", é significativo, já que parece indicar que o filósofo concebe a trajetória lunar não como um arco e sim como um ciclo, o que o uso do adjetivo ἀλώμενον, errante, parece reforçar.

Do ponto de vista poético, geralmente deixado de lado nas leituras desse poema de Parmênides, logo de início nos deparamos com a estranheza da palavra νυκτιφαὲς. Ela aparece também no hino órfico 54 caracterizando uma orgia: ὄργια νυκτιφαῆ, orgia noctiluzente, na tradução de Rafael Brunhara. A opção pela conjectura νυκτιφαὲς é do filólogo francês renascentista Joseph Scaliger. Nos últimos anos Mourelatos tem defendido a opção por νυκτὶ φάος, por ser esta a única opção que aparece nos manuscritos. Já mais perto do final, a expressão ἀλλότριον φῶς é uma imitação de uma fórmula consagrada na poesia homérica para se referir a estrangeiros: ἀλλότριος φὼς, homem estrangeiro.

Jogue no caldeirão a trama sonora do verso, muitíssimo rica, e chegamos a uma verdadeira pedra de toque. O leque de traduções que consegui juntar aqui dão um repertório razoável de abordagens possíveis. Na versão de Haroldo de Campos, por exemplo, a opção por desmembrar a referência à Terra em "gea tellus", expressão usada na psicanálise para designar algo como uma espécie de princípio feminino fértil, é um estranhamento que transforma o terrestre puro e simples num elemento místico. Já na minha, pontapé de um trabalho que um dia espero poder levar a cabo, resolvi recriar o hexâmetro, dando ao poema de Parmênides sua devida pertença a uma tradição poética mais ampla.

§

fr. b14; extraído de Plutarco, Adversus Colotem, 15, 1116a

οὐδὲ γὰρ ὁ πῦρ μὴ λέγων εἶναι τὸν πεπυρωμένον σίδηρον ἢ τὴν σελήνην ἥλιον, ἀλλὰ κατὰ Παρμενίδην,

Νυκτιφαὲς περὶ γαῖαν ἀλώμενον ἀλλότριον φῶς
[fr. b14]

ἀναιρεῖ σιδήρου χρῆσιν ἢ σελήνης φύσιν

*

trad. Fernando Santoro
pois nem alguém que nega que o aço incandescente seja fogo ou que a Lua seja o Sol, mas segundo Parmênides,

Brilho noturno de luz alheia vagando em torno à Terra.

elimine o uso do aço ou a natureza da Lua

*

trad. Sérgio Wrublevski
Brilho errante noctívago, estranha luz, na cercania da terra

*

trad. José Cavalcante
Brilhante à noite, errante em torno à terra, alheia luz

*

trad. Haroldo de Campos
clarinoctâmbula
em torno a gea tellus
lâmpada de alhures

*

trad. Trajano Vieira
luzinotívaga
errando
no círculo
da Terra

brilho de alhures

*

trad. José Gabriel Trindade Santos
Facho noturno, em torno à terra, alumiado a uma alheia luz

*

trad. eu
lume-notâmbulo em volta da terra a vagar, luz estranha