Odes 1.4 e 4.7.

Há uma história curiosa e tocante, não sei exatamente contada por quem, a respeito do poeta e filólogo A. E. Housman. Certo dia, após analisar a sétima ode do quarto livro de Horácio com doses habituais de brilhantismo, agudeza e sarcasmo (parêntesis, por favor: a quem se inculcar com o porquê da última, basta folhear, ainda que por alto, como eu mesmo até então fiz, seus textos mais técnicos, a exemplo de quando, numa leitura que proferiu sobre o papel da crítica textual, traduzida pelo Raphael no seu blog, diz: "A maioria dos homens é um tanto estúpida, e muitos daqueles que não são estúpidos são, consequentemente, um tanto vãos; e dificilmente é possível escapar da busca pela verdade sem cair vítima ou de sua estupidez ou de sua vaidade"), ele ergueu o olhar e disse, com uma voz diferente: "Eu gostaria de passar os minutos restantes tomando essa ode como poesia tão somente". Ele leu com emoção tanto a ode em latim quanto sua própria tradução e comentou:

"Este", ele disse com pressa, quase como alguém traindo um segredo, "eu considero o mais belo poema da literatura antiga", e saiu rapidamente da sala.

Sua tradução é realmente muito bonita. Há um trabalho específico feito pelo professor R. Gaskin sobre a relação entre Housman e Horácio. No capítulo dedicado a analisar esta sua tradução, o único a que tive acesso, o professor chama a atenção para os versos:

But oh, whate’er the sky-led seasons mar,
        Moon upon moon rebuilds it with her beams:

"the sky-led seasons mar". É muito bom. Gaskin teve acesso aos apontamentos de Housman sobre a ode e constatou que para ele, "damna caelestia" no original se relaciona a males sazonais e a conjunção "tamen" conecta a oração à anterior, contrastando os males celestes com os males que afetam a nós, terráqueos. O professor defende que é uma leitura equivocada, uma vez que "tamen" aparece como que introduzindo uma ideia concessiva à maneira do que Virgílio fez naquele célebre verso que deu origem à bandeira dos inconfidentes. Ou seja: embora ("tamen") o céu tenha sofrido danos, a lua os repara.

Não conheço muito bem a obra do Housman. O Raphael, se calhar de aparecer por aqui, poderá dizer melhor. Gaskin lista uma série de elementos que podem ter levado o tradutor a amar com tal intensidade a ode: por exemplo sua forma epigramática, a tendência autocontida das estrofes, a parcimônia no uso dos adjetivos, a associação da primavera à morte e a alusão ao amor fraterno, "the love of comrades", no final do texto, não sendo à toa que este último elemento é um desenvolvimento do que no original é um simples adjetivo: "carus". De minha parte, me agrada bastante "leaves on the shaws" no primeiro verso, que especifica de modo admirável a expressão "arboribusque comae", uma vez que "shaw" quer dizer um tipo de matagal pequeno e espesso.

Em língua portuguesa, a grande paráfrase desta ode de Horácio foi feita por Camões. Se algum dia eu vier a dar uma aula sobre imitação e emulação na poética antiga e clássica, essa ode de Camões seria um exemplo realmente muito bom. Há uma ótima leitura pelo professor Paulo Sérgio Vasconcellos que recenseia as fontes horacianas nesse poema português. Camões aqui meio que mescla essa ode de Horácio com a quarta do primeiro livro. Segundo a tradição, haveria um lapso temporal considerável entre os três primeiros livros de odes e o quarto. O tipo de estrofe que Horácio usa nessas odes, a chamada estrofe arquiloquiana, foi usada em três odes do primeiro livro, de modo que retomar essa construção no quarto parece ser um modo de estabelecer uma ponte ou uma ressonância.

São poemas realmente muito próximos. Começam dizendo que o inverno vai embora, no que usam inclusive de verbos que pertencem a um campo semântico no mínimo próximo: "diffugio", isto é, dissipo, e "solvo", dissolvo. Temos então a descrição de um clima festivo e algo sensual, valendo-se para tanto de ninfas e graças em dança, e o enquadramento dos poemas dentro da estrutura maior do carpe diem, que envolve uma conclamação para se viver os prazeres do agora e não se fiar no futuro e nem mesmo na imortalidade, afinal de contas a morte é um fenômeno inesperado. No entanto, apesar das semelhanças, Gaskin tem toda razão quando ressalta o quão diferentes elas são. Na ode 1.4, por exemplo, a descrição da primavera, que introduz o texto, se demora por mais tempo, e quando a morte chega no verso 13, ela como que choca o leitor. Compare com o que ocorre na ode do quarto livro, em que a descrição das estações cedendo lugar uma à outra, imbricando-se quase, faz com que o surgimento da morte não seja tão aterrador, aparentando ser em certo sentido até mesmo natural.

O propósito de Camões é um pouco distinto. Quando diz que "não sabe o tempo ter firmeza em nada", ele está captando um dos conceitos essenciais da ode horaciana e o trazendo para seus propósitos essencialmente cristãos. Ou seja, não é muito produtivo crermos que a ode camoniana termine numa conclamação para viver a vida, o que pode ser visto por exemplo quando o poeta, na ode 1.4, diz que se faz preciso imolar cabrinhas e cordeirinhos ao deus Fauno. Quando diz que não há nada que faça frente ao fim da noite eterna, está ressaltando que qualquer gozo presente que não esteja justamente guiado para esse encontro inevitável com a morte não é, propriamente falando, aproveitar o tempo.

O bem que aqui se alcança
não dura, por possante, nem por forte;
que a bem-aventurança
durável de outra sorte
se há-de alcançar, na vida, para a morte.

Eis uma estrofe central para a ode camoniana. Ao imitar Horácio em dois momentos importantes de sua obra, Camões quer superar o ensinamento do poeta latino apresentando ao leitor alguma coisa que esteja além do bem que se pode alcançar aqui na terra. Não é gratuito, sendo assim, que ponha em contraste um bem que aqui se alcança a uma bem-aventurança futura, "durável de outra sorte". Os atos da nossa vida devem ser guiados para a vida após a morte, a prestação de contas a que no fim haveremos de fazer. Enquanto em Horácio a variação das estações nos mostra que, para usar as palavras de Camões, "não sabe o tempo ter firmeza em nada", em Camões a doutrina é distinta, afinal de contas as mudanças das estações fazem parte de um plano maior de Deus, e quem, diante dessas mutações da natureza, se apega ao agora, ao instante, ao hoje, está ignorando que é na vida eterna, e tão somente nela, que devemos nos fiar.

§

ODE 4.7

Diffugere nives, redeunt iam gramina campis
     arboribusque comae;
mutat terra vices et decrescentia ripas
     flumina praetereunt;
Gratia cum Nymphis geminisque sororibus audet
     ducere nuda choros.
Inmortalia ne speres, monet annus et almum
     quae rapit hora diem.
Frigora mitescunt Zephyris, ver proterit aestas,
     interitura simul 
pomifer autumnus fruges effuderit, et mox
     bruma recurrit iners.
Damna tamen celeres reparant caelestia lunae:
     nos ubi decidimus
quo pater Aeneas, quo dives Tullus et Ancus,
     puluis et umbra sumus.
Quis scit an adiciant hodiernae crastina summae
     tempora di superi?
Cuncta manus avidas fugient heredis, amico
     quae dederis animo.
Cum semel occideris et de te splendida Minos
     fecerit arbitria,
non, Torquate, genus, non te facundia, non te
     restituet pietas;
infernis neque enim tenebris Diana pudicum
     liberat Hippolytum,
nec Lethaea valet Theseus abrumpere caro
     vincula Pirithoo.

*

ODE 1.4

Soluitur acris hiems grata vice veris et Favoni
     trahuntque siccas machinae carinas,
ac neque iam stabulis gaudet pecus aut arator igni
     nec prata canis albicant pruinis.
Iam Cytherea choros ducit Venus imminente luna
     iunctaeque Nymphis Gratiae decentes
alterno terram quatiunt pede, dum gravis Cyclopum
     Volcanus ardens visit officinas.
Nunc decet aut viridi nitidum caput impedire myrto
     aut flore, terrae quem ferunt solutae;
nunc et in umbrosis Fauno decet immolare lucis,
     seu poscat agna sive malit haedo.
Pallida Mors aequo pulsat pede pauperum tabernas
     regumque turris. O beate Sesti,
vitae summa brevis spem nos vetat inchoare longam.
     Iam te premet nox fabulaeque Manes
et domus exilis Plutonia, quo simul mearis,
     nec regna vini sortiere talis
nec tenerum Lycidan mirabere, quo calet iuventus
     nunc omnis et mox virgines tepebunt.

§

ODE 4.7
trad. José Agostinho de Macedo
Desfez-se a neve, os campos dilatados
De vecejante relva se matizam
E, de virente Coma
As corpulentas Árvores se enfeitam.

Muda de face a Terra, os turvos rios
Eis já se estreitam mais nas vítreas margens:
Formam as graças nuas
Co'as gentis Ninfas concertadas Danças.

A sucessão das Estações, das Horas
Que os leves dias rápidas nos levam;
Com alta voz nos bradam
Que a eterna duração debalde anelas.

O rude Inverno os Zéfiros abrandam;
Sucede à Primavera o seco Estio
Que se retira, e foge
Quando o Outono pomífero aparece.

Logo, prestes retorna o frio Inverno,
Mas finda seu rigor, findam seus danos;
Só nós quando descemos
Às sombras onde existe o pio Eneias,

Onde envolto jaz Aneu, e o rico Tulo:
Somos ligeiro pó, volantes sombras.
Quem sabe se os Destinos
Um dia mais, nos guardam d'existência!

Tudo quanto ao prazer deres contente
Escapará das mãos de avaro herdeiro,
Quando da Parca o ferro
O fio te cortar da frágil vida,

Quando em seu Tribunal, Minos te julgue
Nada, oh Caro Torquato, o sangue ilustre,
A Eloquência, a virtude
Te há de chamar de novo à doce vida.

Das trevas infernais tirar não pôde
Jamais o casto Hipólito, Diana:
Nem das prisões do Letes,
Teseu desliga o pranteado Amigo.

*

ODE 1.4
trad. José Agostinho de Macedo
Já foge o duro Inverno, e volta alegre
Nas azas do Favonio a Primavera:
Ao fundo Pégo as Máquinas conduzem
Os Baixéis, que vararão.
Deixa o Gado os currais, e deixa o Fogo
O Lavrador contente; por que observa
Livres do Gelo os campos dilatados.

À frouxa luz da prateada Lua,
Conduz das Ninfas Citereia os Coros;
Vem com elas as Graças, e alternadas
A dura Terra pisam;
Enquanto anda Vulcano, envolto em chama,
Aos hórridos Ciclopes acendendo
As afumadas, tristes Oficinas.

Agora cumpre de cheirosas flores,
Que já brotam da terra, ou verde Murta
Ornar, cingir a nítida madeixa:
Ora ofertar se deve
Ao caprípede Fauno em denso Bosque
As prometidas vítimas, ou queira
Tenro Cabrito, ou mansa Cordeirinha.

Com seu pé sempre igual, pálida Morte
As portas das Choupanas, e Palácios
Eis bate imparcial. Sexto ditoso,
Da passageira vida
O leve curso, longas esperanças
Formar nos veda; a Noite se aproxima,
Já, já te aguardam fabulados Manes.

E de Plutão sombrio a estreita Casa
Já te espera também: súbito entrares,
Não serás mais o Árbitro do Vinho,
Tirado em leda Sorte:
Não verás mais de Lícidas o rosto,
Que a Juventude férvida namora,
Por quem as Moças arderam de amores.

§

ODE 4.7
trad. A. E. Housman
The snows are fled away, leaves on the shaws
        And grasses in the mead renew their birth,
The river to the river-bed withdraws,
        And altered is the fashion of the earth.

The Nymphs and Graces three put off their fear
        And unapparelled in the woodland play.
The swift hour and the brief prime of the year
        Say to the soul, Thou wast not born for aye.

Thaw follows frost; hard on the heel of spring
        Treads summer sure to die, for hard on hers
Comes autumn, with his apples scattering;
        Then back to wintertide, when nothing stirs.

But oh, whate’er the sky-led seasons mar,
        Moon upon moon rebuilds it with her beams:
Come we where Tullus and where Ancus are,
        And good Aeneas, we are dust and dreams.

Torquatus, if the gods in heaven shall add
        The morrow to the day, what tongue has told?
Feast then thy heart, for what thy heart has had
        The fingers of no heir will ever hold.

When thou descendest once the shades among,
        The stern assize and equal judgment o’er,
Not thy long lineage nor thy golden tongue,
        No, nor thy righteousness, shall friend thee more.

Night holds Hippolytus the pure of stain,
        Diana steads him nothing, he must stay;
And Theseus leaves Pirithous in the chain
        The love of comrades cannot take away.

§

ODE
Camões
Fogem as neves frias
dos altos montes, quando reverdecem
as árvores sombrias;
as verdes ervas crecem,
e o prado ameno de mil cores tecem.

Zéfiro brando espira;
suas setas Amor afia agora;
Progne triste suspira
e Filomela chora;
o Céu da fresca terra se enamora.

Vai Vénus Citereia
com os coros das Ninfas rodeada;
a linda Panopeia,
despida e delicada,
com as duas irmãs acompanhada.

Enquanto as oficinas
dos Ciclopes Vulcano esta queimando,
vão colhendo boninas
as Ninfas e cantando,
a terra co ligeiro pé tocando.

Dece do duro monte
Diana, já cansada d'espessura,
buscando a clara fonte
onde, por sorte dura,
perdeu Actéon a natural figura.

Assi se vai passando
a verde Primavera e seco Estio;
trás ele vem chegando
depois o Inverno frio,
que também passará por certo fio.

Ir-se-á embranquecendo
com a frígida neve o seco monte;
e Júpiter, chovendo,
turbará a clara fonte;
temerá o marinheiro a Orionte.

Porque, enfim, tudo passa;
não sabe o tempo ter firmeza em nada;
e nossa vida escassa
foge tão apressada
que, quando se começa, é acabada.

Que foram dos Troianos
Hector temido, Eneias piadoso?
Consumiram-te os anos,
Ó Cresso tão famoso,
sem te valer teu ouro precioso.

Todo o contentamento
crias que estava no tesouro ufano?
Ó falso pensamento
que, à custa de teu dano,
do douto Sólon creste o desengano!

O bem que aqui se alcança
não dura, por possante, nem por forte;
que a bem-aventurança
durável de outra sorte
se há-de alcançar, na vida, para a morte.

Porque, enfim, nada basta
contra o terrível fim da noite eterna;
nem pode a deusa casta
tornar à luz superna
Hipólito, da escura noite averna.

Nem Teseu esforçado,
com manha nem com força rigorosa,
livrar pode o ousado
Pirítoo da espantosa
prisão leteia, escura e tenebrosa.