Barroco e neoclássico.

Lemos a obra dos barrocos e por vezes tomamos um susto. Quanta criatividade na construção das imagens! (Donne escreveu "A bracelet of bright hair about the bone", verso que ganhou a estima de um crítico rigoroso como Eliot.) Quanta indecisão de espírito entre a escada rumo ao sagrado e as veredas do profano! (Atribuímos a Gregório de Matos versos aparentemente irreconciliáveis como "A virtude, Senhora, é muito rica, / E a virtude sem vós tudo empobrece" num soneto dedicado à Virgem e "Busco uma freira, que me desemtupa / A via, que o desuso às vezes tapa" num outro.) Mas será que isso mesmo?, um brilho breve de interesse emanado por poetas ora castos e ora bocudos, imediatamente apagado logo que os chatíssimos árcades entram em cena.

Cautela. É o que peço. Um conceito que durante o barroco desempenhou uma importância particular é o da agudeza, de origem ibérica e muito próximo por exemplo do que os ingleses chamaram de wit. Houve um jesuíta espanhol chamado Baltasar Gracián que compilou uma série de discursos em que discute de maneira muitíssimo instigante o que seria um discurso engenhoso que emprega, dentre outros recursos, a agudeza. Para Gracián, agudeza é um artifício conceituoso. Por artifício ele não está designando alguma coisa gratuita que deva ser extirpada para o bem do caráter cristalino do jorro emocional. Fala de artifício porque entende que é uma construção técnica que pode ser ensinada e aprendida com a prática e o respeito a modelos e preceitos retóricos. Já por conceituoso, quer dizer que é um artifício que parte do que chama de concepto, definido no final do segundo discurso como um entendimento que exprime a correspondência que há entre objetos.

Nada disso desemboca numa prática gratuita por parte do artista, guiado apenas pela liberdade sem fim de seu espírito criador. A agudeza é para Gracián, desenvolvendo a fórmula compacta do "artifício conceituoso", uma primorosa concordância entre extremos expressa por um ato entendimento. Por isso, após dizer que a variedade é a grande mãe da beleza, ele diz que a agudeza é o "pasto da alma". Ora: justamente pelo fato de ser primorosa e pelo próprio fato de ser um artifício, a agudeza não serve apenas para revelar "sem rodeios" a realidade da natureza. Pelo contrário: o entendimento sem agudeza e sem conceito é sol sem luz e sem raios. Expressar a coisa de maneira direta iria contra o preceito de Aristóteles na Retórica segundo o qual a expressão lhana e despida de artifícios deve ser evitada. Seria também contraditório com o preceito na Poética que caracteriza a metáfora como a marca do gênio, própria de quem consegue enxergar semelhanças. É por isso que Gracián afirma que o engenho não se contenta apenas com a verdade, como seria próprio do juízo, mas sim que aspira à formosura.

Nesse sentido, não é correto afirmar que o poeta barroco inovava propriamente falando. A natureza da composição literária durante o barroco é em essência a mesma que a da poética neoclássica e a da poesia ocidental durante muitos séculos: pautava-se na imitação e emulação de modelos e tinha em mente o caráter eficaz e conveniente dos discursos. O poeta barroco segue também outro preceito da Retórica de Aristóteles (1404b): o de que o discurso não deve apenas ser claro como, ainda, adequado (πρέπουσαν) ao assunto. Isso implica que o poema não se pautava apenas pela subjetividade do poeta, que escolhe seu tema exclusivamente com o que consegue retirar de suas entranhas emocionais ou do que uma paisagem natural qualquer lhe sugere de expressivo, elaborando tal material sem menção alguma à tradição literária. Na verdade, a escolha de um tema e a existência de uma instituição retórica a nortear a produção discursiva, seja ela um discurso jurídico, seja uma obra em versos, dava ao poeta um cabedal de procedimentos, técnicas e gradações de linguagem a fim de que o texto ampliasse sua eficácia e seu impacto no público. Em momento algum Gracián chega propriamente a negar essa realidade, afinal de contas a agudeza, o wit ou qualquer outro conceito da poética barroca estava sempre ligado à realidade da poética clássica e à necessidade de construção de discursos eficazes.

Por isso, falar numa espécie de indecisão do poeta barroco entre o sagrado e o profano não é propriamente correto. Não há indecisão nenhuma. Se o poeta barroco consegue escrever um poema de louvor agora e depois outro satírico com uma linguagem escrachada, nós mal e mal temos elementos que consigam apontar que esta foi uma opção deliberada da personalidade por trás da escrita, mesmo porque a subjetividade como hoje a entendemos (problemática, ensimesmada, cindida) e a própria autoria (única, irrepetível) eram muito distintas. Escrever um poema de louvor ou um poema satírico é, na prática, partir de convenções retóricas muito bem estabelecidas sobre cada um desses gêneros, o que implica dizer que a escolha do assunto, dos modelos, das técnicas empregadas, da linguagem, entre outros, já estava delineada de antemão, e, somente a partir dessa base, sempre com os pés na tradição, era lícito erguer o pau a pique do texto imitando e emulando os modelos convenientes. A visão de mundo e a ideologia predominante não mudam: continuam sendo a de uma sociedade de Antigo Regime em que Deus é um fator necessário na ordem das coisas. Se satiriza um poderoso ou um clérico que seja, está, na verdade, criticando o vício, tudo aquilo que foge na prática de uma estrutura transcendental, de modo que a sátira serve menos como ferramenta de revolução, à maneira do que poderíamos pensar hoje em dia, e mais como reafirmação de valores supremos para a consciência daquele tempo.

A grande mudança que houve entre o barroco e o neoclássico é que com estes últimos a preceptística da época, os tratados de composição, por assim dizer, passou a ressaltar o caráter fundamental do juízo, que deveria se impor onde antes o engenho parecia ter um pouco mais de liberdade. Apenas isso: parecia. O poeta barroco também se guiava pelo juízo. O próprio fato de ser artifício, como ressaltei, já indica isto, afinal de contas a arte clássica não era manifestação do caráter criador sem precedentes do engenho, mas, antes, era sempre regrada pelo juízo e pelo entendimento. O que houve foi uma mudança na mentalidade da época que, graças aos primeiros passos da ciência moderna, deu um primado à razão que pouco a pouco elaborou a feição geral do Iluminismo. Luís Antônio Verney, padre português, publicou no século XVIII um chamado Verdadeiro Método de Estudar, no qual, dentre tantas outras coisas (por exemplo censurar Camões como um poeta afetado), estipulou que não pode haver beleza sem obediência à razão, "que aponta o objetivo da arte: a verdade". Boileau, um dos grandes poetas franceses do período, dirá, em sua Arte Poética:

Aimez donc la raison : que toujours vos écrits
Empruntent d'elle seule et leur lustre et leur prix.

Pouco depois, que o belo é o verdadeiro e que a natureza é bela: por isso, imitar a natureza de perto, evitando os ornatos engenhosos e agudos da poética barroca, condizia com o postulado do juízo racionalmente entendido. Pope, em seu Essay on Criticism, diz:

Nature, like liberty, is but restrained
By the same laws which first herself ordain'd.

Postura sensivelmente distinta da de Gracián século antes galgando degraus acima da busca pela verdade ao reconhecer no concepto uma aspiração à formosura. No entanto, apesar da diferença sensível entre os períodos, não há ainda uma ruptura enfática. Se na retórica de Aristóteles há a afirmação de que o discurso deve ser claro (σαφῆ) sem ser rasteiro (ταπεινή), nós quando muito poderíamos dizer que é como se o barroco enfatizasse a segunda exigência e o neoclássico a primeira. O fazer poético continua em linhas gerais o mesmo, e se para os neoclássicos a poesia barroca era exagerada, o fundamento disso não se deu com base no postulado de uma poética nova que negasse em absoluto as bases sobre a qual a anterior se firmava, mas, sim, no fato de que a anterior não se firmou de modo adequado e se distanciou do bom exemplo dos clássicos.