Quadros provincianos.

Gostaria de trabalhar com uma hipótese simples para que leiamos os quadros provincianos de Wagner Schadeck, publicados tempos atrás pela editora Mondrongo. Até onde pude ler do livro, que não tenho cá em mãos, creio que é possível notar bem claramente que o poeta descreve de um jeito contundente uma sociedade em ruínas. Contundência e sociedade em ruínas são uma combinação relativamente comum na pena de muitos, que, quando calham de sair às ruas para abastecer a adega, fatalmente se deparam com pedintes que periodicamente lhes trazem à memória a desigualdade do mundo.

Com Wagner existe um projeto mais curioso. A linguagem que ele emprega é preciosista em não poucos momentos e nem de longe se assemelha ao arremedo meio acuado que alguns empregam quando vão falar de tudo que não seja o cotidiano de um escritor de classe média durante uma crise criativa. Esse preciosismo da linguagem, embora faça por vezes com que o poema perca um pouco seu traquejo, nos melhores momentos, pelo contrário, é uma maneira de evidenciar desníveis do contexto urbano. Isso pois um dos erros mais crassos de quem quer retratar as ruas é achar que tudo por lá é decadência e é podre, tosco, mal feito, que tudo pode ser veiculado num português mal-ajambrado para retratar o português pretensamente pobre da boca dos cidadãos comuns. O que há na verdade é uma mescla inabarcável de registros tão ampla como o universo, a partir da qual podemos encontrar jargões e gírias, palavras raras e palavras maltratadas, clichês refestelados e ebulições de criatividade.

O soneto Édipo, por exemplo, começa de maneira extraordinária com as seguintes descrições:

Nesta cidade de almas enlameadas,
Como dentes que saltam dos cavoucos,
Os paralelepípedos aos poucos
Podres deixam banguelas as estradas.

Os seus sonhos são lâmpadas queimadas
Num corredor de hospício cujos loucos,
Com colchas no pescoço e gritos roucos,
Em fuga se enforcaram nas sacadas.

Não somente a imagem por exemplo da segunda estrofe é reveladora e palpável a ponto de ser surpreendente, um crescendo de detalhes que vai dar no fim trágico desses loucos, ressignificando cada um dos objetos da cena, ou seja, é somente depois que nos deparamos com o suicídio dos loucos no último verso que entendemos o porquê das colchas estarem no pescoço, dos gritos serem roucos e até mesmo do clima macabro das lâmpadas queimadas; além disso, há a sonoridade afiadíssima da primeira estrofe, que conta com uma ótima paranomásia em "almas enlameadas", como que chafurdando de maneira literal as almas naquele lodaçal que o Wagner quer retratar, para além do uso inteligente da extensa palavra "paralelepípedos", a se conectar sonoramente tanto a "poucos" quando a "podres", e, pelo fato deste último adjetivo iniciar o verso seguinte após um cavalgamento, tornar a leitura desse trecho especialmente significativa, tal qual se simulasse os tropeços e solavancos de quem anda por aquelas estradas. Não estou certo se o final do soneto faz jus ao restante:

Em sua entrada, à luz de olhos alertas,
Que piscam pela madrugada adentro,
Por praças e avenidas mais desertas,

Nos muros e edificações do Centro,
Meu olhar nos hieróglifos constringe:
Como decifro esta voraz esfinge?

Gosto do fraseado direto de "Nos muros e edificações do Centro", mas penso que a rima com "constringe" no final é forçada e o adjetivo "voraz" é estofo sem tirar nem pôr.

O paralelo mais direto que se pode estabelecer com um estilo assim, no qual uma referência a Édipo é inserida naturalmente num quadro trágico encontrável nos meandros mais profundos de uma selva de pedra, é o de Baudelaire em sua coletânea de poemas em prosa. Apenas a título de exemplo, na obra encontraremos textos em que o prosaico se impõe e textos em que uma linguagem mais etérea e cristalina impera. Não há a opção deliberada por só um dos lados. Recordo de cabeça o final de Le mauvais vitrier:

et le choc le renversant, il acheva de briser sous son dos toute sa pauvre fortune ambulatoire qui rendit le bruit éclatant d’un palais de cristal crevé par la foudre.

A tradução de Aurélio Buarque de Holanda para a comparação final do trecho: "que produziu o fragor de um palácio de cristal fendido pelo raio". É mais uma das cenas grotescas retratadas por Baudelaire na qual o eu lírico parece se divertir com uma postura claramente sádica. Depois de perguntar por um espelho que lhe revelasse o paraíso, ele agride de maneira gratuita o vidraceiro. Embora o tom geral do poema seja rasteiro, a comparação final é claramente um momento de elevação poética que nos encanta pela beleza da imagem e pela sonoridade rica. Se Baudelaire fez despontar um momento tão belo assim de um no mínimo sádico, é para mostrar uma sensibilidade à flor da pele, para dar realce ao impacto do raio estilhaçando o palácio de cristal e para mostrar a riqueza de registros e linguagens encontráveis nas ruas parisienses.

Eis, segundo suponho, a gênese do estilo do Wagner empregado em seus quadros provincianos. Citemos um último exemplo: o soneto Na praça.

Nestas ruas há pedintes,
pernetas, putas, velhacos
vendendo alheios barracos,
logrando os contribuintes.

Nas esquinas, os seguintes
são catadores de cacos,
donas desfilam casacos,
pastores com seus ouvintes.

Aonde irá toda essa grei?
Que sigam. Eu ficarei
num busto brônzeo da História.

E assim, no futuro, às vezes,
pombas na festa das fezes
irão batizar-me à glória.

Irretocável. Mesmo quando a linguagem fisga tópicos mais cabeludos da nossa gramática, é por algum motivo. Não irei comentar em específico a construção sonora muito bem acabada do poema, de um ritmo aliterante admirável, por exemplo os saltos emparelhados em P e depois V logo na primeira estrofe. No trecho "velhacos / vendendo alheios barracos", peço que se note a inversão "alheios barracos", uma maneira pomposa capaz de não só realçar da maneira devida o fato de que os barracos são dos outros, como, ainda, dar ao leitor a dimensão concreta do modo como esses velhacos logram os contribuintes. A própria escolha do termo "contribuintes", aliás, é bastante rica, já que, muito mais do que servir para rimar, nos imerge na linguagem empolada que esses pulhas usam para enganar os outros.

No final do poema, "irão batizar-me à glória": a crase demonstrando que não é a glória do eu lírico que será batizada e sim que as pombas irão batizá-lo até a glória. É uma maneira como que elegante e concisa de trazer a imagem, valendo-se do máximo que o procedimento da crase é capaz de oferecer, só que posta no momento exato da narrativa, um jeito inteligente de contrastar a imagem grotesca da "festa das fezes" (de sonoridade, mais uma vez, admirável) com o tipo de glória que a voz do poema almeja alcançar - e que talvez seja a única que lhe caiba alcançar.