Tradução literal.

Aquilo que chamamos de tradução literal, expressão eu julgo simplesmente inescapável, muitas vezes faz ver certa preguiça intelectual. Foi difícil chegar a esta conclusão, mas é o que tem me ocorrido nos últimos tempos ao buscar ver a tradução sem o menoscabo de quem pelo jeito só sabe falar dela com encanto quando de antemão ela suavemente se acopla a nosso penduricalho conceitual sobre o que é literariamente relevante.

Tento me policiar no sentido de substituir a alcunha de literal, via de regra usada de maneira ou humilde ou aviltante, já que se situa no exato oposto da tradução dita artística; substituí-la ou no mínimo pô-la ao lado de uma outra que dividiria as traduções em autossuficientes ou não, entendendo, por autossuficientes, as que ficam de pé sozinhas e bem ou mal respondem por suas escolhas, sabendo que estas levam a perdas, a imprecisões, a desvios e a tudo o que fecunda as diferenças e deslumbres que as traduções suscitam nas culturas. Então se em vez de me escudar por trás de uma interpretação arrazoada daquele original, usando a tradução como uma espécie de ferramenta didática ou estágio provisório de compreensão, a tradução dita autossuficiente não conta com um instrumento assim, uma vez que ela precisa se fazer passar pelo original na cultura de chegada, ou seja, ela precisa se sustentar por conta própria ainda quando a benevolente editora faz a boa ação de conceder algumas resmas de papel para que o tradutor abra um pouquinho a caixa-preta aos leitores.

Consequência dessa divisão é que embora o feitio dos dois tipos de tradução sejam distintos, haja vista que a tradução que pretende ficar em pé sozinha acaba fazendo escolhas de maneira sensivelmente distinta daqueloutra que por exemplo incrusta a tradução no corpo de uma dissertação de mestrado, tornando-a, como eu disse, estágio de compreensão, etapa ou forma de análise do original e não um texto a ser lido e apreciado por si só; embora seus feitios sejam distintos, nada impede que mesmo uma tradução não-autossuficiente possa chegar a resultados muito perspicazes.

Dividir, portanto, tradução em literal ou não, às vezes de maneira caricata ao se reportar à fôrma do original ou, pior ainda, ao ser ela poética ou não para nosso gosto, o que em última instância quer dizer se afaga ou não os ouvidos do resenhista; tudo isso, todos esses cacoetes odiáveis que eu mesmo já pratiquei e de que já me orgulhei muito, têm se tornado intragáveis nos últimos tempos. Penso que nos estudos clássicos conseguimos encontrar lições admiráveis a respeito do assunto, isto é, de como mesmo traduções não-autossuficientes podem fornecer momentos extremamente reveladores de leitura do original, aquilo que, em última instância, é o que esperamos de toda boa leitura e toda boa tradução de um texto. De um modo geral penso, ou, até para ser mais exato, gosto de fantasiar que os estudos clássicos são uma área bem diferente da imagem caricata que fazemos deles, como um terreno propício para reacionários que obrigatoriamente manuseiam e traduzem poemas antigos à maneira de quem enfaixa uma múmia. Bem pelo contrário, é comum encontrarmos propostas de tradução bem diversas coexistindo entre si quando o assunto é literatura antiga; quem, por exemplo, quiser ler o Édipo Rei encontrará disponíveis no mercado traduções tão distintas como as de Mário de Gama Khury, Trajano Vieira, Leonardo Antunes e Lilian Sais, indo do verso regular até o de matriz experimental, da recriação rítmica até o verso livre.

Um exemplo simples e en passant. No fragmento 287 de Íbico, que li há muitos anos atrás pela primeira vez na versão exuberante de Décio Pignatari, e que desde então vem me assombrando, pra dizer o mínimo, encontramos, no verso 2, o verbo δερκόμενος, particípio presente de δέρκομαι. Décio o traduziu para "Lança-me", ao passo que o Guilherme Gontijo e o Leonardo Antunes, dois dos mais criativos e fecundos tradutores de línguas antigas entre nós, usam "contempla". Ora: que as traduções dos três são ditas artísticas ou poéticas, dificilmente alguém iria duvidar. São claramente o que eu batizaria de traduções autossuficientes. Mas veja o leitor que Giuliana Ragusa, uma das maiores especialistas em poesia grega arcaica, destaque para Safo, usa "fitando" ao traduzir o poema a certa altura de seu estudo dedicado às representações de Afrodite na poesia grega do período. Isto pois, segundo argumenta, a etimologia de δέρκομαι aponta para δράκων, serpente, indicando portanto que o olhar lançado por Eros para sua vítima é o mesmo de uma cobra que assiste de maneira paciente a sua presa.

Isso é precisão vocabular. E precisão vocabular é concisão, e concisão, já o sabemos, é poesia. Como negar, portanto, que com "fitando" Giuliana Ragusa está sendo percuciente, mas percuciente de um modo incongruente com o que a pecha de literal poderia a princípio indicar? Não é só questão de ser - voltemos à expressãozinha - literal, afinal de contas seria de bom tamanho indagar o que significa ser literal no solo arenoso e instável da literatura antiga; pergunto-me também por qual razão manusear com um tipo de desdém implícito uma tradução que consegue revelar tanto.

Fiquemos com o fragmento de Íbico em sua tradução:

Eros, de novo, de sob escuras
pálpebras, com olhos me fitando derretidamente,
com encantos de toda sorte, às inextricáveis
redes de Cípris me atira.
Sim, tremo quando ele ataca,
tal qual atrelado cavalo vencedor, perto da velhice,
contrariado vai para a corrida com carros velozes.