Antonio Medina Rodrigues.

Há tanto a ser publicado entre nós que às vezes eu confesso que nem sei direito por onde começar. Uma delas seria dar o acabamento devido às traduções que Antonio Medina Rodrigues fez da poesia grega arcaica. Até onde pude consultar, são traduções muito criativas, com méritos e soluções em geral surpreendentes. O mais perto que se fez em matéria de pô-las em circulação foi, não sei se no todo ou se em parte, graças a professores de Clássicas da Usp que as reuniram com um apanhado de diversas outras numa apostila de cunho didático.

Nela o leitor poderá encontrar as versões de Medina Rodrigues para poemas de Safo, Arquíloco, Mimnermo and so on. Que foi um erudito, isto qualquer relato a seu respeito pode contar, para além de suas entrevistas, artigos e livros publicados. Neles o professor se debruçava por exemplo sobre o legado de Odorico Mendes e traduzia Hölderlin, o Cântico dos cânticos, Aristófanes. Como forma de tentar dar ao leitor a dimensão de seu trabalho, eis o fragmento 5 W de Arquíloco:

ἀσπίδι μὲν Σαΐων τις ἀγάλλεται, ἣν παρὰ θάμνῳ
ἔντος ἀμώμητον κάλλιπον οὐκ ἐθέλων:
αὐτὸν δ᾽ ἔκ μ᾽ ἐσάωσα: τί μοι μέλει ἀσπὶς ἐκεινη;
ἐρρέτω: ἐξαῦτις κτήσομαι οὐ κακίω.

Foi extraído de um texto de Plutarco que relata ter Arquíloco sido expulso de Esparta após a notícia de que havia confessado num poema ser melhor lançar fora uma arma do que ser morto. Diz a tradução do Medina:

Um Saio ora se escora em meu escudo, 
Arma sem par, que ao léu abandonei, 
E a vida assim salvei, largando tudo, 
Um tal escudo, enfim, não lembrarei. 
Pois suma! Outro melhor eu compro, é tudo.

Naturalmente que há discrepâncias com o original, nem sempre favoráveis. Sua maior virtude é ser muito clara e coerente em sua proposta, em dar uma leitura muito reveladora do original, abraçando os riscos e as perdas em que toda tradução incorre. No segundo verso, por exemplo, enquanto Arquíloco caracteriza o escudo como ἀμώμητον, irrepreensível, derivado do verbo μωμάομαι mediante o acréscimo de um prefixo de negação, Medina Rodrigues se limita a usar um "sem par", de força muito menor. A arma não é apenas sem igual. Ela é mais: ela em momento nenhum permitirá que seu portador seja repreendido, criticado ou aviltado por seu porte - qualidades basilares para o armamento de qualquer guerreiro antigo. Ainda no mesmo verso, o poeta nos diz que abandonou ἣν παρὰ θάμνῳ, isto é, numa moita - novamente uma peculiaridade do original que foi suavizada por Medina ao mencionar que abandonou o escudo... ao léu. Uma última nota fora do tom está no final, οὐ κακίω, isto é, o poeta nos diz não apenas que comprará outro melhor e sim que comprará outro "não pior".

Uma pontada irônica admirável. Não seria muito difícil contornar o último problema apontado se o tradutor, por exemplo, em vez de "Outro melhor" tivesse posto apenas "Um não pior". Seja como for, se aqui errou a mão, noutras passagens captou bem o espírito melindroso do fragmento. Que tenha rimado o original não é de espantar; muitas outras versões suas também usarão do verso rimado, estratégia padrão de muitos românticos diante da música secreta greco-romana. Mas que tenha rimado com fluidez, sem comprometer o andamento do texto, é tanto mais surpreendente, ainda mais se considerarmos que partindo deste procedimento ele consegue acrescentar uma espécie de pauta musical patética graças às idas e vindas da rima B (em "-ei") ao longo do fragmento, aparecendo no final do verso dois, na metade do três e no final do quatro.

E sem contar o primeiro verso. O primeiro verso, um prodígio sonoro, desses que deslizam pela boca sugerindo muita coisa, para mim uma das pedras-de-toque da nossa tradução de poesia antiga. Não somente a rima interna, que ganha aqui todo um destaque por compactar a expressão, como também o som do S deslizando no verso inteiro e muito bem acompanhado em ESCora, ESCudo

Tem mais. A maioria dos tradutores verte o verbo do verso inicial, ἀγάλλεται, como ufanar-se, o que de fato é uma ótima tradução afinal de contas indica que o saio irá se glorificar com o escudo. O verbo deriva do substantivo ἀγλαός, que significa brilhante, reluzente. A opção do Medina por escorar-se foge um pouco da letra num primeiro momento, mas ainda se mantém no campo semântico apontado grego, e não só: é uma tradução que, se por um lado cria um maciço sonoro muito fluente para nós, ao mesmo tempo esboça um quadro psicológico muito sutil no qual a persona do poema, a voz enunciadora, aquilo que poderíamos chamar (não sei se muito adequadamente) de eu lírico, se lamenta com o fato de que perdeu o escudo ao mesmo tempo em que tenta arranjar uma desculpa ou explicação plausível e aceitável para seu ato de lançá-lo na moita.

Por isso que a ideia de hoje o saio se escorar no escudo lançado é também a seu turno uma pontada irônica afiada: se no original o saio se ufana com o escudo, isto é, se ele se glorifica, se exalta, reluz com a posse do objeto, na tradução do Medina o quadro é ligeiramente diverso, como se o saio fosse uma espécie de preguiçoso que ao se escorar no escudo, se apoiasse na glória que aquela arma representa. Ele se aproveita de algo que em última instância não é seu - e aqui podemos ver de maneira um pouco mais aguda que a raiz algo irônica do fragmento, nem um pouco desprezível se recordarmos que Arquíloco foi um dos grandes representantes da poesia jâmbica grega, muito lembrada por suas invectivas agressivas e jocosas; a raiz algo irônica do fragmento se mantém preservada, exatamente da maneira como deve ser.