Um parágrafo de Martha Batalha.

Acho no mínimo mais honesto por parte do crítico que, em vez de despejar juízos do galho mais alto, ponha os pés no chão e discorra devagarinho pra gente sobre o porquê gostou ou desgostou de algo, já que é só assim que o leitor pode, por exemplo, criticá-lo. Ao que tudo indica o juízo de valor não tem um solo lá muito firme sobre o qual se sustente, mas, se pelo menos um esforço puder ser feito para que a coisa não vire no mínimo uma bagunça, creio que embasar nossos juízos e se preocupar em dar uma explicação mais demorada é um passo interessante para que nossas opiniões deixem de parecer tão arbitrárias e, afinal de contas, fomentem o debate.

Gosto nessas horas sempre de lembrar um comentário feito pelo grande crítico britânico (britânico?) William Empson num livro porreta que ele publicou quando era mais novo do que eu e você. Diz algo como: toda forma de beleza não explicada me aborrece. Resume de forma admirável o que penso a respeito do esforço crítico: buscar deixar bem claro qual a minha opinião, nem tanto pra vedar as frestas do argumento e me sentir enfim livre de refutações incômodas, mas, antes, para que o leitor participe da minha reação prolongada, eventualmente contribuindo com um ponto diverso e eventualmente, por que não?, me fazendo confrontar o fato de que minha formação literária pelo jeito não é tão sólida como fantasio. O crítico literário muitas vezes é só isso: alguém que se expõe ao ridículo e erra em público.

Às três e vinte da tarde do sábado, 6 de janeiro de 1968, com ventos noroestes, céu parcialmente nublado e temperatura em  declínio, alheia ao forte cheiro de bife passado há pouco na manteiga e à voz em uníssono dos muitos Silvio Santos nas tvs dos apartamentos próximos, Estela mancha com choro e rímel a fronha bordada do travesseiro novo. Os cabelos longos cobrem seu rosto, as unhas vermelhas agarram um lenço de linho. Os pés calçados pendem para fora do colchão, até ela livrar-se dos saltos e encolher o corpo, levando os joelhos para junto do queixo. Estela não pensa, só repete por quê, meu Deus, por quê, tentando encontrar no caos da sua tristeza o motivo de tanto desgosto.

É a abertura do segundo romance de Martha Batalha, a meu ver um dos melhores parágrafos de abertura dos últimos tempos. Deixe-me explicar o porquê acho isso.

O parágrafo começa com uma descrição seca do cenário, pontuando a data e o horário de maneira muito precisa e imitando a linguagem da meteorologia: "céu parcialmente nublado". É só depois que, na mesma frase - e o fato de tudo estar contido numa única frase é um aspecto importantíssimo -, ela começará a descrever a personagem de um jeito muito indireto, preferindo contar o que a personagem faz e deixar para o leitor que deduza seu estado mental, e dará partida num suspense meio manjado, mas muito bem aplicado aqui, de jogar primeiro a deixa do adjetivo "alheia" e só pouco mais à frente na frase dar o nome da personagem, Estela.

Se a descrição até então havia sido seca e mecânica, o que veremos em seguida é uma descrição firme e exata dos arredores. Apelar para o cheiro de bife passado na manteiga, por exemplo, é uma maneira habilidosa de fisgar o leitor usando do olfato, nem sempre algo muito simples ou usado com frequência pelos escritores, que tendem a optar muito mais para a visão e para a audição. Penso que a manteiga também ativa o paladar e o fato de que o bife tenha sido assado "há pouco" às três da tarde de sábado descreve bem o que é a rotina das famílias brasileiras aos fins de semana, com seus almoços quase no meio da tarde. E então, a tacada de mestre: a voz em uníssono dos muitos Silvio Santos nas tvs. Poucas vezes um detalhe me deixou tão empolgado. Foi pincelado com maestria, destilando a dose exata de sarcasmo numa descrição minuciosa: a partir dessa informação, podemos presumir que se trata de um prédio residencial pacato numa cidade brasileira qualquer, com suas inúmeras famílias assistindo televisão sintonizadas todas no mesmo canal, o tipo de situação que era absolutamente plausível encontrar numa tarde de sábado de 1968.

O quadro geral é patético. Digo pois o que se vê a seguir é a personagem Estela chorando desesperada por alguma decepção que só conheceremos nas páginas seguintes do romance. Por agora, ela chora, ela se desespera, ou, numa gradação sutil e muito bem elaborada, ela "mancha com choro e rímel". Isso é muito mais perspicaz e delicioso de imaginar do que dizer, simples e diretamente, que a personagem estava chorando desesperada. É preciso deixar que o leitor sinta a cena. O que se espera de um narrador é isso: narrar bem, contar a história, expô-la com os elementos suficientes para que desenhemos o quadro mais nítido possível até com a menor caixa de lápis de cor. Martha Batalha quer que imaginemos a cena e reconstruamos o quadro psicológico da personagem pelos detalhes, a exemplo de quando nos põe a reencenar o movimento de Estela em: "Os pés calçados pendem para fora do colchão, até ela livrar-se dos saltos e encolher o corpo, levando os joelhos para junto do queixo".

O interesse que o leitor sente em saber mais sobre o desespero que assola a personagem, esse "caos da sua tristeza", só dá certo porque primeiro a autora descreve o cenário dos arredores com perícia, dando-nos do jeito mais curioso possível a dimensão real do tédio e do enfado de mais uma tarde de sábado daquele ano, e, no espaço da mesma frase, termina o périplo de sua câmera narrativa na imagem de Estela em posição fetal chorando na sua cama.