Contramorsura.

Contramorsura é uma palavra encontrada num poema recente que o Guilherme publicou no primeiro volume da revista digital Virada. Até onde eu saiba é criação dele partindo do francês "morsure", mordida, e parece designar um ato que de algum modo vai contra a mordida no sentido tradicional de simplesmente despedaçar o alimento e jogar pro estômago. Contramorsura, no poema do Guilherme, é ir além do simples ato de deglutir o alimento; é saborear o processo todo, degustar os sabores envolvidos, apreciar a técnica de preparo, vislumbrar até mesmo o solo e a tradição de onde veio. É uma exigência razoável essa, a de repensarmos a nossa relação com os alimentos e, em última instância, até mesmo com o mundo: que deixemos de simplesmente consumir por consumir, tratando a alimentação meramente como um ato fisiológico desprovido de implicações humanas e culturais. Leiamos:

Nossos os tratos deste amor
recíproca mordida e travos
sobre texturas de umbu

o dente adentra a casca
estoura crosta encosta
na polpa firme e ácida

que em dor consome doce
quanto mais a morde
numa contramorsura

sobre esmalte rasgo
em mucosa e saliva
estes os nossos tratos

na mor parte vagos
e assim procuro tudo
que me cabe na pele

toco a paixão do corrosivo
tocado me descasco
corroo teu repasto

entregue arisco arrisco
viver a seca inteira
escavando os teus pés

mas sem tocar as águas
leves da tua cacimba
debaixo desta terra

estes os tratos feitos
trocados nas mandíbulas
jamais chegar nessa raiz

jamais cortar na base o lenho
áspero e extrair
o fim de cada sede

onde morrer-te por beber-te

É dedicado à esposa do poeta e pode ser lido como um poema erótico muitíssimo interessante, que encontra na imagem do umbuzeiro e do seu consumo um ponto de partida muito fecundo. Digo fecundo não só porque fornece ao poeta as comparações adequadas como, ainda, uma reflexão a respeito de como o sexo não é fonte de gozo imediato e sim um processo a ser saboreado nos seus mínimos instantes. Contramorsura.

Para tanto, o Guilherme consegue sugerir pro leitor o que é saborear uma coisa devagarinho a partir da textura sonora e sintática do próprio texto. É como se ele quisesse induzir o leitor a apreciar o poema da mesma maneira com que deve apreciar o umbuzeiro e, na leitura que estou propondo, o próprio sexo. Na terceira estrofe, que é quando surge a palavra "contramorsura", encontramos:

que em dor consome doce
quanto mais a morde
numa contramorsura

Tudo está muito bem amarrado sonoramente. Você consegue sentir muito bem a consoante D, por exemplo, e a vogal O ao longo da estrofe. A pergunta que faço é: por que razão o poeta escolheu "contramorsura" e não "contramordida", por exemplo? A escolha de palavras não é gratuita. Existe um ganho sonoro envolvido aqui. Em "contramordida", embora tenhamos duas consoantes D que poderiam se encaixar na recorrência sonora do trecho, não temos, por outro lado, a vogal U em posição tônica, não temos a presença tão forte do R e nem temos o S muito característico de "morsura". Ora: por mais que o D se faça muito presente na estrofe, penso que em especial graças à proximidade entre "dor" e "morde", ainda assim há que se notar a força com que o som do S surge na sequência "consome doce". Mas não só. O ponto de inflexão é que esse mesmo S de "contramorsura" será muitíssimo bem aproveitado na estrofe seguinte:

sobre esmalte rasgo
em mucosa e saliva
estes os nossos tratos

Veja, então, que a simples escolha por "morsura" em vez de "mordida" não é um aspecto secundário no poema, mas, pelo contrário, tem como propósito extrair o máximo que der. É uma característica do discurso poético o fato de que chupa o tutano das palavras de um jeito que só raramente no dia a dia nós conseguimos fazer. Se isso ocorre com o som das palavras, com a sintaxe é algo parecido:

toco a paixão do corrosivo
tocado me descasco
corroo teu repasto

entregue arisco arrisco
viver a seca inteira
escavando os teus pés

Quero me concentrar no primeiro verso da segunda estrofe citada, "entregue arisco arrisco". A falta de pontuação do poema não implica sempre que nós não reconhecemos algumas unidades de sentido aqui e ali, isto é, não nos impede de como que pontuá-lo mentalmente. A grande questão é que se isso funciona para boa parte do texto, em alguns momentos a coisa complica um pouco. É o caso do verso que pincelei. O particípio "entregue" naturalmente se liga a "repasto" no fim da estrofe anterior, ao passo que "arrisco", no final do verso, já inicia uma nova oração, que, aqui, dispensa a pontuação ou um conectivo (por exemplo um "e"). Mas e quanto a "arisco"? É um predicativo do sujeito, ou seja, qualifica a maneira como o repasto foi entregue, ou é um adjunto adnominal do sujeito do verbo "arrisco"? É provável que a primeira opção faça mais sentido, afinal de contas o eu lírico não parece ser uma pessoa lá muito arisca. Até pelo contrário: ele parece estar realmente aberto à possibilidade de "viver a seca inteira", por exemplo. Mas nada impede que se defenda uma leitura contrária. O poema permita ambas.

Pois bem. O poeta parece comparar sua parceira com um umbuzeiro. O umbuzeiro é uma árvore que não apenas dá uma fruta ácida muito saborosa como, ainda, armazena água em sua raiz. Muita água. A ideia central que o Guilherme desenvolve pra gente é a de que o umbuzeiro não pode ser , digamos, consumido em larga escala, destinado a abastecer prateleiras de supermercados país afora. Ele precisa ser saboreado. Eis o que julgo ser a chave central do poema. Há um ensaio do grande crítico francês Roland Barthes no qual ele postula a necessidade de procurarmos por textos do prazer e não textos de fruição. Parece-me ser uma proposta um pouco mais ampla do que quando Susan Sontag propõe uma erótica no lugar de uma hermenêutica textual. Para Barthes, o texto da fruição é aquele que tagarela ao modo de uma criança imperativa desprovida de afeto, ao passo que o texto do prazer nos convida a apreciar seus momentos individuais, muito à maneira de um erotismo que não descamba no pornográfico puro e simples. Basta comparar a leitura de quem devora romances com quem, diante de um poema, passa semanas a fio recordando-se de um verso que lhe causou impacto.

Creio que se trata de uma aproximação muito frutífera. As rupturas de sentido que o poema do Guilherme causam no leitor, abolindo a pontuação e propondo algumas zonas de ambiguidade a princípio irredutíveis, não se dá simplesmente no prazer da destruição e da negação. Segundo Barthes, "Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna  erótica" (na tradução do Ginsburg). Assim, por trás da cunhagem de um neologismo como "contramorsura" não há a negação ou a destruição das possibilidades de sentido da nossa língua, mas, na verdade, a abertura para um tipo de verdade e experiência que somente a configuração sonora e sugestiva de "contramorsura" pode dar. De modo análogo, eu ressaltaria que por trás do significado essencialmente sexual do poema, essencialmente erótico, há implicações maiores. A crítica do poema, já o disse, é direcionada ao padrão de consumo de um capitalismo túrgido e insustentável, que retira dos homens de nosso tempo não só a possibilidade de saborearem o que consomem como, ainda, de entenderem a história profunda, as raízes de sua própria tradição. Guilherme consegue simular esse efeito ao fazer com que o leitor se demore nos momentos do poema, empregando por exemplo maciços sonoros frequentes ("estoura crosta encosta") e vedando ao eu lírico que chegue às raízes com o intuito de extrair água:

jamais chegar nessa raiz

jamais cortar na base o lenho
áspero e extrair
o fim de cada sede

onde morrer-te por beber-te

A razão é clara: extrair a água da raiz de um umbuzeiro é matá-lo. Do mesmo modo que quem apenas devora livros de forma apressada, acumulando pilhas de brochuras coloridas nas retrospectivas de final de ano, mata o prazer do texto, do mesmo modo que quem enxerga no sexo a meta final do orgasmo tão somente - querer chegar diretamente à raiz é mais do que um modo de matá-lo: é também um modo de matar todo o processo de saborear tudo que o umbuzeiro tem a nos dar, inclusive aquilo que se ofereça como ácido e doloroso a princípio:

                       encosta
na polpa firme e ácida

que em dor consome doce

Mas note: "onde morrer-te por beber-te". Parece simples de entender. "por beber-te" é a princípio o mesmo que "porque eu te bebi". Mas qual o motivo de "morrer-te"? Não seria mais plausível que o poeta tivesse escrito "matar-te"? Não posso morrer por outra pessoa. Mesmo quem dá sua vida a alguém está morrendo a sua morte para poupar o outro. Morrer, obviamente, é um ato estritamente pessoal e único. A única situação, por assim dizer, imaginável é supor que o eu lírico tenha se emaranhado a tal ponto na outra pessoa que os dois tenham se tornado um só. E aqui, curiosamente, um ponto muito rico do texto. Sabemos que segundo a doutrina cristã, o esposo e a esposa são uma só carne. É o que se pode ver por exemplo numa passagem célebre da epístola a Efésios. Mas seria isto que o poema nos diz?

Não estou muito certo. Penso que o sentido religioso aqui é quando muito uma repercussão possível. O casamento é uma unidade que simula em menor escala a de Cristo com a igreja. Não é o mesmo que dizer que depois do casamento aquilo que o homem e o que a mulher são se tornará indistinto; na verdade, o próprio apóstolo diz que o esposo deve ser a cabeça, o comando do casamento. Trata-se, apenas, que os dois se unirão num só corpo, desempenhando cada qual suas funções respectivas em harmonia e de acordo com os propósitos de Deus. No poema parece haver uma sugestão de que a mulher, por ser a árvore, é a fonte da vida, ligada ao elemento terrestre na sua superfície e, em suas profundezas, à água. O homem precisa como que refrear seu impulso de ser fogo e destruição e se demorar no gozo de tudo o que a árvore tem a oferecer. Quando o sexo propriamente ocorre, os parceiros sexuais devem se tornar um só na troca de prazeres, a tal ponto que o sexo só é propriamente proveitoso não exatamente quando se dá prazer para o outro e sim quando se consegue ter prazer ao dar prazer. A corrosão, portanto, de ir direto à raiz e sugar a água, ainda que se faça acompanhar de preliminares, ainda que se faça acompanhar da degustação dos frutos, é uma corrosão íntima, de dentro, que, pela simples escolha do verbo, "morrer-te", parece sugerir como que uma traição, já que se mata aquilo em que um dia nos entregamos e que um dia nos recebeu, ou, no mínimo, um tiro no pé, por matar o que é a nossa própria morada. O mesmo quando devastamos florestas em prol de um consumo que nem de longe dá sentido à nossa vida.