Como avaliar uma tradução?

Avaliar traduções é prática comum. Qualquer plataforma de comércio digital que dê aos consumidores um espaço para que ponham a boca no trombone já atesta a insatisfação de muitos quando a tradução, por mais emperiquitada que esteja em edições bilíngues e com notas de rodapé e gravuras e índices e mapas geográficos, não atende suas expectativas. É também muito comum que o leitor vá bater na porta de especialistas buscando saber qual a melhor tradução para um clássico da literatura universal. Tudo, bem se entende, perfeitamente justificável, afinal de contas o preço do livro não está lá tão barato assim (o equivalente a uma pizza grande) e ninguém quer ter o desprazer de adquirir uma tradução que não seja outra coisa que pura e simplesmente a melhor.

No entanto... O que seria, por gentileza, a melhor tradução de um texto? Ou: como avaliar uma tradução?

Não pretendo dar exatamente uma resposta para as perguntas; antes, propor alguns critérios mínimos para a própria tarefa de avaliação. Hoje nos estudos da tradução, um campo especialmente fértil dentro de nossas universidades, um certo tipo de análise muito praticada pelo poeta e professor Paulo Henriques Britto tem se mostrado produtiva na hora de analisar traduções de uma forma minimamente objetiva e razoável. Por "objetiva e razoável" não quero dizer que a avaliação de traduções seguindo o "método" do Britto (entre aspas pois não estou certo de que suas reflexões a respeito do assunto tenham chegado a propor um método todo ordenado e engravatado, tratando-se, na verdade, exatamente do que eu disse, ou seja, uma prática de análise que tem lá seus traços gerais como analisar a forma do texto, recensear zonas semânticas e averiguar as manutenções, desvios e deslocamentos); a avaliação de traduções seguindo tal método não propôs um jeito mágico de remover manchas e provar por a+b que uma tradução é melhor que a outra.

Se a gente considerar que o Britto começou a construir essa sua prática a partir de uma análise que fez de duas traduções brasileiras para uma célebre elegia de John Donne, anos após toda uma polêmica instaurada, num primeiro momento, sobre um artigo de Nelson Ascher em que ele desmerecia uma dessas traduções afirmando que a outra realizava o prodígio de como que ter posto o poeta inglês para escrever em português, tão fluente e belo era o seu resultado, e, num segundo momento, sobre uma leitura que a professora Rosemary Arrojo havia feito do quiproquó, argumentando que uma tradução e outra eram fiéis a seu modo aos pressupostos que empunhavam, sendo, ambas, legítimas e competentes àqueles que compartilhassem desses pressupostos; se o considerarmos, então o trabalho do Britto e suas repercussões na universidade têm sido menos no sentido de maquinar um emplastro Brás Cubas e sim, eu diria, no sentido de propor um caminho de avaliação que discuta de forma minimamente objetiva a tradução realizada, tentando estabelecer consensos ainda que parciais. Ora: isso por si só confere à análise um grau de objetividade e razoabilidade na medida em que abre mão do uso displicente de adjetivos genéricos tais como Belo, Poético, Artístico, Radical ou Criativo, pondo em seu lugar um escrutínio que dê ênfase tanto às opções do tradutor como às do crítico.

Não é uma prática lá muito simples. Na verdade ela empreende um esforço consideravelmente grande de análise. Parte da constatação básica de que traduções envolvem escolhas e que tais escolhas deixam ver como que um projeto implícito, aquilo que chamamos de projeto tradutório. Tal projeto representa em parte as concepções prévias do tradutor, sua bagagem, e, em parte, as escolhas que faz ao longo do processo, sua maneira de executar o ofício, de tal modo que a partir dessa ideia de projeto tradutório nós conseguimos enxergar com clareza que toda tradução é uma leitura privilegiada do original. A análise precisa, justamente, entender esse projeto e confrontá-lo não somente com o que o tradutor de fato conseguiu realizar como, ainda, com outros projetos que sejam análogos ou até mesmo contrários. Aqui, e com isto me afasto um pouco da teoria do Britto e me aproximo em partes com a da professora Rosemary, que constata de início que toda avaliação de traduções jamais pode se dar sem a mediação de uma interpretação; aqui notamos que a noção de fidelidade já não consegue dar conta de modo muito claro do fenômeno da tradução ou, no mínimo, que ela precisa ser tratada com muita cautela, já que por fidelidade não podemos designar o ato de contrastar um sentido inequívoco do original com os desvios lunáticos e infelizes que o tradutor andou fazendo; antes, trata-se de entender que a tradução é idealmente uma reescrita do original que muito mais do que partir das diferenças e insuficiências dos idiomas, parte de uma leitura, de uma compreensão. O sentido do original é também produzido por toda tradução. A tradução, nas palavras de Gadamer traduzido por Flávio Meurer, é uma "reiluminação" do texto.

Uma análise assim deve ser obrigatoriamente minuciosa e demorada. Não combina com juízos rápidos feitos no calor do momento por resenhistas que apenas leram a tradução numa quinta-feira de manhã e logo depois do almoço se põem a redigir o veredito. Um dos pressupostos básicos da avaliação de uma tradução precisa ir além do postulado de que avaliar uma tradução demanda somente um conhecimento fluente do idioma de partida; há que se avaliar também um contexto produtivo muito mais amplo que parte do projeto tradutório e vai dar na realidade cultural viva de um idioma, ou seja, saber qual era o horizonte de sentido e construção que o tradutor trouxe consigo e com o qual se comunica. O crítico de uma tradução não pode ser só quem incuba um dicionário da língua inglesa dentro da caixa craniana nem muito menos ele poderá desempenhar uma performance satisfatória no tablado reduzido de uma resenha de jornal. Isso pois não basta somente ao crítico analisar a tradução e depois encaixotar sua opinião num juízo conciso, mas, justamente pela própria natureza do ato crítico, que é a de abrir-se a novas críticas, ele precisa explicitar sua análise e seus juízos, precisa colocá-los sobre a mesa.

A avaliação da tradução precisa ser idealmente tão trabalhosa quanto a própria tradução, já que ela não se limita a simplesmente listar sem critério nenhum as ausências que o texto traduzido infelizmente ostenta. Sei que é uma conclusão um pouco dura e que a rigor pode tornar o trabalho da avaliação em algo impossível em seu limite. Ou que seja algo que não possa ser exercido por leitores comuns versados num idioma estrangeiro. Mas, como já tive a oportunidade de defender noutra oportunidade aqui no bloguinho, o crítico se caracteriza por ser rigoroso não só com seu objeto mas também consigo mesmo. Traduções são empreendimentos sérios o bastante para que não caiam na má-fé de resenhistas que julgam poder avaliar uma tradução pincelando ausências. Se exigimos do tradutor que tenha credenciais e execute uma ótima performance, por que não exigir o mesmo dos críticos? Qualquer um pode comentar sobre uma tradução e eventualmente fazer lá sua defesa, expondo aos presentes que viveu décadas num país estrangeiro e que o verbo "♫" na página 363 do original na verdade quer dizer "♫♥" e não "♪". A conversa casual sobre traduções continuará existindo, mas, caso queira de fato se posicionar num circuito crítico realmente relevante, em que a análise conjunta pode produzir alguma coisa a respeito da obra, ela precisará se mostrar de fato engajada na análise e se abrir para a opinião discordante.

Avaliar uma tradução é uma possibilidade real na medida em que o juízo a seu respeito não é mera variação do juízo estético propriamente dito, no qual, como apontado por Kant na terceira crítica, não contamos com um conceito prévio do que é a Beleza. A avaliação da tradução parte sempre do fato simples de que um original existe. Com isto eu não pretendo postular que num plano ideal seja possível avaliar uma tradução de maneira perfeita, recenseando e cobrindo todos os sentidos que o original possa apresentar. A essência da obra de arte é ser representação e, portanto, dar-se sempre de maneira distinta a todo leitor que a experimente. O original, por mais misterioso e insondável que o tomemos, é um fato, ou seja, ele é no mínimo um ponto de referência para a discussão.

Aqui reafirmo minha concordância com a professora Rosemary Arrojo quando ela diz que a avaliação de uma tradução e a própria tradução jamais podem se dar sem a mediação de uma interpretação. Minha discordância ocorre precisamente quando caracteriza a tarefa da avaliação com o ser, no fundo, uma maneira de chancelar nossos próprios pressupostos. Se o crítico procede desta maneira, ele está incorrendo na má-fé de deixar que a interpretação sucumba a seus preconceitos, quando, na esteira da hermenêutica filosófica de Gadamer, é preciso que a interpretação se oriente para o objeto e não que drague tudo no subjetivismo do intérprete. O modo de ser da obra de arte, a sua presença específica, é nas palavras de Gadamer "um vir-à-representação do ser" (Zur-Darstelung-Kommen des Seins), de tal modo que tais representações não são objetos autônomos encolhidos dentro da subjetividade de cada leitor, mas, apenas, a forma com que o próprio ser da arte vem à tona, se representa, se manifesta, sem deixar com isso de ser precisamente o que é. Noutras palavras: não é que a existência de interpretações diversas de uma obra de arte indique a ausência de um ser próprio dela, mas sim, como assinala Gadamer, que o ser da obra de arte é o ser representada, e as várias interpretações são na verdade várias representações, "re-produções" do mesmo ser e não estilhaços do que se fragmentou quando vários leitores de todos os cantos vieram pôr o dedo. O que quero assinalar com isso é que a existência da obra de arte, que mantém sua unidade representacional, não implica exatamente em um tesouro que poderia ser como que acessado por um intérprete talentoso o suficiente, e, sim, que a discussão sobre a tradução pode em última instância ser feita porque o modo de ser da obra de arte não se perde nas subjetividades dos intérpretes.

Para tanto, porém, a avaliação precisa se arregimentar o máximo possível, demorar-se no objeto, perder-se em suas minúcias. Deve deixar que o original fale, mas também que a tradução fale. Quanto maior a empreitada do tradutor, tanto maior a dificuldade da própria avaliação. Na prática, o que se costuma fazer diante de um texto de extensão considerável, como, por exemplo, uma epopeia, é destacar episódios célebres e analisar a tradução comparando-a com outras disponíveis. Até esta escolha do crítico precisa ser justificada, afinal de contas é perfeitamente possível alegar que aquele é um momento não muito feliz da tradução e que aqueloutra passagem condiz melhor com a empreitada. E assim a discussão continua, com objeções podendo ser realizadas em diversos níveis, de modo que a avaliação de uma tradução, por ser em essência um ato crítico, passa a ser ele próprio objeto de novas críticas. Isso, contudo, só pode ser realizado num sentido realmente produtivo se a avaliação estiver inserida num contexto e num espaço que dê azo a conversas dispostas e demoradas, e não simplesmente que o juízo crítico seja expelido por uma autoridade qualquer. É só no espaço aberto da crítica propriamente dita, ou seja, é somente dentro de uma postura valorativa articulada, explícita, debatível, discutível, que a avaliação de uma tradução pode ocorrer.