Floresta de estímulos.

Frases extensas e enoveladas, eis uma preferência pessoal. Gosto de quando o autor testa os limites da sintaxe e da exposição de uma ideia, fazendo dos movimentos coleantes da frase uma espécie de reprodução in vitro dos relances ópticos e dos abalos sentimentais que está descrevendo. Um exemplo, extraído de Joca Reiners Terron:

a poltrona da sala do apartamento da avenida São Luís, onde William permaneceria quase imóvel por esses anos todos, suas pernas estendidas sobre um pufe, o copo na mão e a cara avermelhada pela bebida e pela luz da tevê que o iluminaria em breves relances para logo depois mergulhá-lo de novo no escuro e então o exibiria outra vez para então afogá-lo na escuridão própria daqueles corujões solitários que só às vezes podemos eletricamente intuir, suas silhuetas a bruxulearem através das janelas em noites de sábado nas quais podemos identificar, nesses retângulos de luz que apagam e de súbito acendem, a perfeita bandeira da solidão nas grandes cidades, vistas a partir das calçadas nas quais passamos em frente aos edifícios a rumar para alguma festa distante na qual buscaremos mitigar nossa própria solidão, sem sucesso algum.

Não acompanho tanto assim a prosa contemporânea, pelo menos não com o mesmo afinco com que acompanho a poesia, mas, dos nomes que aprecio (Júlian Fúks, Bernardo Carvalho, Martha Batalha), o Joca é meio que o meu preferido. Não é qualquer um que consegue orquestrar uma frase dessas. As descrições são exatas ("a cara avermelhada pela bebida"), as palavras foram escolhas com esmero ("suas silhuetas bruxulearam") e os detalhes aparecem de uma maneira dinâmica na nossa frente à medida que a câmera narrativa se movimenta do enfoque em William até uma habilidosíssima metáfora da vida contemporânea ("a perfeita bandeira da solidão nas grandes cidades") e uma mudança de perspectiva surpreendente: um pedestre a perambular nas ruas. É um prodígio de informação, equiparável a:

A claridade do quarto era o quanto bastava para ler, e a sensação do esplendor da luz apenas me era dada pelas batidas vibradas por Camus na rua da Paróquia (avisado que fora por Françoise de que minha tia "não estava repousando" e se podia fazer barulho) conta caixões poeirentos, batidas que, retinindo na atmosfera sonora, própria dos climas quentes, pareciam fazer voar ao longe astros escarlates; e também pelas moscas que executavam diante de mim um pequeno concerto, como que a música de câmara do estio: não o evoca à maneira de uma ária de música humana que, ouvida por acaso nessa estação, nos faz lembrá-la em seguida; está unida ao verão por um elo mais necessário: nascida dos belos dias, só renascendo com eles, contendo um pouco de sua essência, não lhes desperta apenas a imagem em nossa memória, mas certifica-lhes a volta, a presença efetiva, ambiente, imediatamente acessível.

Proust por Quintana. Se na frase de Joca os movimentos cênicos eram importantes, tal como se empunhando uma câmera de cinema ele desse o enfoque devido aos objetos certos à medida que avança na exposição das cenas, em Proust as idas e vindas da frase sugerem o estado emocional do narrador, que, como se pusesse um conjunto de fotos ou recortes um ao lado do outro, parece redescobrir pela força da memória o encanto e a força do que já se passou. É por isso que ele se detém de início nas batidas vibradas por Camus, descrevendo o modo como por exemplo retinem na atmosfera sonora, e então, graças a um ponto e vírgula colocado com esmero, ele como que muda as lentes da narrativa para falar agora do petit concert das moscas, a partir do qual empreende um périplo sentimental.

Quoniam quidem multi conati sunt ordinare narrationem, quae in nobis completae sunt, rerum, sicut tradiderunt nobis, qui ab initio ipsi viderunt et ministri fuerunt verbi, visum est et mihi, adsecuto a principio omnia, diligenter ex ordine tibi scribere, optime Theophile, ut cognoscas eorum verborum, de quibus eruditus es, firmitatem.

Viesse a me contorcer para manter as palavras mais ou menos no lugar e teríamos algo como:

Porque muitos tentaram ordenar a narração, que em nós se completou, das coisas, segundo trouxeram até nós os que desde o início eles próprios viram e foram ministros da palavra, pareceu-me bom, perseguindo o princípio de tudo, minuciosamente em sua ordem a ti escrever, ó ótimo Teófilo, para que conheças de suas palavras, sobre as quais és um erudito, a firmeza.

Mudamos nosso domínio e aportamos no início do evangelho de Lucas, 1:1-4, na versão da nova vulgata. É meio raro encontrar frases tão enoveladas assim no texto latino. Se digo enoveladas, digo pensando na inclusão, por exemplo, de uma oração relativa entre o substantivo (narrationem) e seu adjunto adnominal (rerum), bem como no fato de que a oração principal (visum est et mihi) só surge depois que enfrentamos um período explicativo (quoniam) seguido de um conformativo (sicut). Um efeito possível de uma disposição assim é colocar em contraste a postura daqueles que tentaram ordenar a narração dos fatos com a do evangelista, que procederia "diligenter" e que daria a entender a firmeza das palavras. Ainda, a estrutura enovelada da frase, incluindo orações subordinadas antes do sentido da principal ter sido exposto na íntegra, termina por colocar alguns termos em relevo. Na oração final que encerra o texto, por exemplo, deslocar a relativa "de quibus eruditus es" para antes do ponto final é um modo de realçar o impacto de "firmitatem", dando-lhe a carga semântica de não somente pontuar o sentido da principal "ut cognoscas" como, ainda, da própria relativa, afinal de contas ainda não sabemos totalmente sobre o que Teófilo é um erudito. É um modo de recriar também o que encontramos no grego: ἵνα ἐπιγνῷς περὶ ὧν κατηχήθης λόγων τὴν ἀσφάλειαν - ao que peço para o leitor que note, na reta final, que λόγων, genitivo plural (eorum verborum, no latim), aparece antes de ἀσφάλειαν (um tipo de segurança contra quedas e ruínas), dando-lhe realce.

Tome o leitor como comparação a frase que abre as discussões tusculanas de Cícero:

Cum defensionum laboribus senatoriisque muneribus aut omnino aut magna ex parte essem aliquando liberatus, rettuli me, Brute, te hortante maxime ad ea studia, quae retenta animo, remissa temporibus, longo intervallo intermissa revocavi, et cum omnium artium, quae ad rectam vivendi viam pertinerent, ratio et disciplina studio sapientiae, quae philosophia dicitur, contineretur, hoc mihi Latinis litteris inlustrandum putavi, non quia philosophia Graecis et litteris et doctoribus percipi non posset, sed meum semper iudicium fuit omnia nostros aut invenisse per se sapientius quam Graecos aut accepta ab illis fecisse meliora, quae quidem digna statuissent, in quibus elaborarent.
Uma vez que dos trabalhos de defesa e encargos senatoriais ou no todo ou em grande parte eu fosse em algum tempo dispensado, me voltei, Brutus, principalmente por teus pedidos, aos estudos que, retidos na alma, esquecidos por tempos, após um longo intervalo interrompidos retomei, e uma vez que de todas as artes, que dizem respeito à estrada correta da vida, a razão no estudo disciplinado da sabedoria, que filosofia se chama, estivesse contida, julguei que eu deveria esclarecê-lo em latim, não porque a filosofia grega tanto das letras quanto dos doutos eu não pudesse compreender, mas sim porque minha opinião foi sempre a de que todos os nossos pareciam ou se achar por si só mais sábios que os gregos ou julgar fazer melhor que eles, que se digno reputassem, nisto trabalhariam.

Frederico Lourenço está certo quando comenta, no prefácio de sua gramática latina, que ler uma frase de Cícero é como entrar numa floresta de estímulos emanados de todos os cantos. O impacto mais imediato de uma estrutura a tal ponto complexa é que o pensamento vai sendo construído de maneira simultânea, sem que a frase precisa ser didaticamente picotada em unidades menores a fim de que as orações relativas, por exemplo, possam aparecer de maneira pacata e ordeira somente quando a primeira informação tiver sido passada tintim por tintim. Diante de Cícero, nada disso; diante de Cícero é preciso reter um número enorme de informações na cabeça, suspendendo-as até o grande momento em que o sentido se completa e contemplamos não apenas um raciocínio que se formou mas todo um percurso que tivemos de seguir. Isso faz parte da estrutura geral do latim de colocar o complemento antes da coisa completa (por exemplo o complemento nominal antes do nome, ou o verbal antes do verbo), mas que em Cícero por vezes é radicalizada, ou, caso queiramos uma palavra mais justa, é trabalhada com esmero. Veja:

et cum omnium artium, quae ad rectam vivendi viam pertinerent, ratio et disciplina studio sapientiae, quae philosophia dicitur, contineretur

"omnium artium", genitivo plural se referindo a algo que só dará as caras depois que vencermos a relativa "quae ad rectam vivendi viam pertinerent". Poucos passos depois, idêntica construção: a relativa "quae philosophia dicitur" ativada de imediato após "disciplina studio sapientiae", tudo antes do verbo, "contineretur", enfim surgir com todas as pompas. Não seria mais simples, podemos nos perguntar, se Cícero primeiro terminasse uma ideia, dando-nos a devida sequência sujeito-verbo-predicado, e só depois enxertasse a relativa? Que tipo de nuance há quando essa oração relativa floresce sem esperar nem mesmo que a oração principal complete seu sentido? Minha sugestão, como dito, é: as coisas ocorrem assim pois o raciocínio se dá de maneira mais vívida e simultânea, uma vez que quando completamos o sentido da oração principal pela descoberta do verbo, escondido no fim do período, nós completamos por conseguinte todas as informações numa única tacada, à maneira de termos encontrado o interruptor.

Um modelo, como se vê, incrivelmente fértil e instigante, muito embora, para o estudante de latim, essa queima de fogos pareça exagerada e um verdadeiro pesadelo sempre que ameaça pôr os pés em alguma avaliação bimestral.