Paráfrase, de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Penso que o centenário dessa poeta imensa que foi a Sophia de Mello Breyner Andresen pode ser comemorado dando a ver um pouco sua perícia artística. Considerando aquela definição dada por um autor inglês de que poesia são as melhores palavras em sua melhor ordem, a Sophia foi incrivelmente bem sucedida na arte tão difícil do poema curto:

 PARÁFRASE
«Antes ser na terra escravo de um escravo
Do que ser no outro mundo rei de todas as sombras»

Odisséia - Homero
Antes ser sob a terra abolição e cinza
Do que ser neste mundo rei de todas as sombras. 

Faz menção a um trecho do canto 11 da Odisseia, quando Odisseu, após descer ao submundo, encontra a alma de Aquiles e tenta lhe dar algum consolo para a morte. A resposta que Odisseu recebe é memorável e, o que é curioso, não nos foi apresentada pela Sophia de maneira muito direta; na verdade, ela usa uma espécie de paráfrase muito sutil que lhe serve de anteparo para elaborar o golpe que o poema em si tem a nos dar.

Digo paráfrase sutil pois, além do fato de cortar um verso no qual Aquiles especifica que o homem de quem preferiria ser escravo poderia ser até mesmo um de poucas posses, há que se apontar que a própria palavra usada no texto homérico é particularmente problemática, já que não parece designar escravo no sentido moderno e sim algo que os dicionários trazem, de modo meio eufemístico, como aquele que está ligado a uma terra enquanto servo: ἐπάρουρος. Ainda, caberia citar que Homero não usa a locução adverbial "no outro mundo" e não fala exatamente de sombras ou almas e sim de algo mais palpável: rei de cadáveres putrefatos (νεκύεσσι καταφθιμένοισιν).

O ganho que tais mudanças sutis apresentam quando lemos o poema é que a Sophia suspende, de certo modo, o que de rente ao chão existe em Homero, o que de vívido há na passagem, para depois arremessar aquilo num poema engajado. Quando ela fala simplesmente de escravo, o que não deixa de ser uma tradução viável de ἐπάρουρος, ou quando tira o fedor dos cadáveres putrefatos de cena, ela suaviza a descrição áspera que lemos em Homero. E isso é importante. A paráfrase, na verdade, já começa na própria epígrafe, de modo muito sutil, servindo, como eu disse, de anteparo, de base, de trampolim para o movimento enfático do poema em si. Nele será importante esmorecer os cadáveres em sombras pois é em essência a mesma pincelada que a autora dará ao sugerir ser preferível morrer em luta por uma causa (a abolição), e se tornar cinza, do que ser rei de sombras - assim como será importante posicionar a locução "no outro mundo" na epígrafe, fazendo com que a servidão que víamos na fala orgulhosa de Aquiles se converta em força motriz e o mundo, um outro mundo, se converta neste. Se converta em luta.