Esterco quadriculado.

Li a notícia de que as editoras estão se interessando cada vez mais em publicar a poesia viral assim como antes estava interessada nos livros de youtubers ou nos de colorir, e minha primeira reação foi compartilhar numa rede social que aquilo era pura e simplesmente o que costumo chamar de esterco quadriculado. Fui maldoso? Sim. Maledicente? Sim, reconheço. Foi preciso? Provável que não. Mas reflitamos.

Uma vez que o cenário do mercado editorial não vai muito bem, é razoável que se enviem elfos dos lucros para a caixa postal dos poetas visando a publicação de um projeto que é o sonho de qualquer editor: um projeto que, com base na análise minuciosa das curtidas e interações, lhe dê a dimensão bem aproximada de qual será o investimento e qual o retorno, de para onde distribuir e que acabamento editorial dar, de quais os lucros e quando poderá quitar a geladeira comprada semestre passado.

Posso também entender que em tese se trata de um tipo de poesia que serviria de porta de entrada. Aquela fábula que já conhecemos muito bem: o leitor incauto começa se apaixonando por coisas como "tudo que é bom / dura uma saudade / imensa" (sim, isso de fato já foi escrito, publicado e curtido) e dentro de alguns meses ele estará bisbilhotando a poesia de Drummond. Pode ser. Acontece. Sempre? Não sei. Não apostaria minhas fichas. O que leva alguém a sair de "Babei saudade / e acabei ficando / embriagada / de você" (antes que pergunte, sim) para uma poesia com um requinte de construção maior ou no mínimo decente é essencialmente uma escolha. O que eu quero dizer é que não há um caminho natural que te faça deslizar, como se estivesse deslizando num tobogã, de uma literatura de massa para a alta literatura. Ou para qualquer outra literatura que não se limite a proporcionar um pequeno estalido de prazer na gente. Você precisa fazer essa escolha, precisa decidir tomar essa rota e simplesmente ir em busca de uma literatura que te desafie mais - proporcionando-te mais. A pessoa pode perfeitamente passar a vida inteira consumindo só esse tipo de coisa. Não sejamos tolos quanto a isso.

E não que me incomode que alguém realmente passe a vida lendo isso. Se a única exigência que se faz a quem mordisca um churrasco grego banhado de fuligem é que pelo menos tenha o dinheiro trocado, todo leitor por tabela também faz o que bem entender e, na prática, assim como é importante que nos perguntemos o que é um bom livro, ainda que não venhamos a chegar a uma resposta lá muito conclusiva ou a um método infalível, vez que a qualidade literária é resultado de uma sedimentação de valor essencialmente coletiva e realizada ao longo do tempo, também, na esteira do que foi feito de modo admirável pelo C. S. Lewis num ótimo livrinho, é importante nos perguntamos o que é um bom leitor, e, tão logo chegamos a um esboço de resposta, percebemos que um leitor de literatura de massa pode ser um muito mais cuidadoso e percuciente do que aqueloutro que apenas enseba Dostoiévski pelos bares da capital.

Além disso, é perfeitamente possível, e com isso eu penso que desmancho em grande parte o castelinho de cartas da fábula que nos diz que literatura de massa precisa ser frívola para ser acessível, e que só assim o povão pode pelo menos ler alguma coisa; é perfeitamente possível, eu dizia, que você se inicie na vida literária lendo obras de qualidade. Você não precisa se chafurdar num lodaçal para que necessariamente dê o primeiro passo. Literatura de qualidade é um conceito muito amplo, que pode envolver aquilo que foi escrito de forma simples e aquilo que depende de complexas correias mitológicas e etimológicas para funcionar. A diferença é que enquanto uma literatura frívola servirá somente de degrau, da mesmíssima maneira que um caixote de feira serve de apoio para que você alcance o pote guardado em cima do armário, a literatura de qualidade pode eventualmente servir de ponto de partida e também de ponto de chegada.

Um exemplo desta última afirmação pode ser encontrado, sei lá, em Tolkien. Muita gente começa nessa vida de leitor pois o enredo dos livros dele é empolgante ao extremo e pois um labirinto de penduricalhos é vendido para um público embasbacado com reproduções fiéis de armamentos da terra média fabricados em plástico. A questão porém é que Tolkien não é só isso. Ele é também um estilista notável do idioma inglês:

Then Túrin stood stone-still and silent, staring on that dreadful death, knowing what he had done; and so terrible was his face, lit by the lightning that flickered all about them, that Gwindor cowered down upon the ground and dared not raise his eyes.

A partir da qual o leitor pode sentir o genuíno sabor da antiga poesia aliterativa, com o qual só nos resta concluir que embora Tolkien seja acessível, muito mais do que servir como ponto de partida ele serve como de chegada.

Reconheço que estou sendo malicioso em muitas das minhas colocações. E sei que isso é feio. A rigor, como dito de maneira muito sensata pelo Umberto Eco, não é que a literatura de massas ocupe o lugar da alta literatura; ela na verdade preenche um espaço em branco, uma zona a que a alta literatura não tinha meios de chegar. Só peço também para que não me enxerguem como um daqueles catastrofistas que proclamam o fim de tudo só porque se depararam com o que não gostaram. Considero-me, se alguma justiça puder ser feita em minha causa, uma pessoa até bastante aberta a ler qualquer tipo de literatura, e quem se puser a fuçar os arquivos do bloguinho me verá em mais de uma ocasião defendendo até com muita boa vontade a poesia viral produzida na internet, a exemplo de quando resenhei aquele livrinho da Rupi Kaur de um jeito tão benevolente que pareceu, segundo me disseram, que eu tirava leite de pedra.

É só que não quero também ser a droga de um proselitista que finge que tudo tem sua importância e que achatar o valor literário para de algum modo incluir essas baboseiras virais é uma postura sensata. Pelo contrário. Defendo e continuarei defendendo uma democracia de acesso à vida literária e à vida intelectual, o que, na prática, implica dizer que todo tipo de entrave no caminho entre o indivíduo e sua aspiração a escritor deverá ser afastado. Mas é só. A atividade literária, já dizia Harold Bloom, é repressora, e não adianta acharmos que poderemos num tortuosismo crítico colocar o pior da poesia viral em pé de igualdade com, sei lá, os mais agudos epigramas romanos ou as mais saborosas quadras populares.

Seria melhor se deixássemos de ver o público leitor como uma multidão anônima e indistinta de leitores abobalhados que querem o que supostamente é fácil a custo de ser reles, e passássemos a respeitar nesse público o potencial de paixão e curiosidade que ele sempre pode manifestar. O leitor comum ou mesmo o marinheiro de primeira viagem não precisa dessas iscas intragáveis para que se seduza com o que a literatura é capaz de fazer. O mercado literário vai mal pois não se reinventa e acha bonito embasbacar-se com a formação de enormes conglomerados editoriais que arrancam da literatura uma certa paleta de cores e um certo encanto que somente os circuitos locais podem proporcionar, somente a vivência de perto com livreiros, editores e artistas, é capaz de oferecer.