Calímaco de Cirene.

Partindo da constatação no mínimo fundamental de que poesia é técnica, coisa que um simples vislumbre na etimologia da dita-cuja nos revela, não deve pois causar espanto que para leitor que souber manejar a coisa com cuidado e criatividade, até o que parecia simples pode se revelar surpreendentemente complexo e o que foi engaiolado, digamos, em dois versinhos pode conter muito mais engenho & arte do que reviravoltas narrativas engaioladas num calhamaço. Vejamos o caso do epigrama 19 de Calímaco de Cirene, o qual, inócuo a princípio, revela-se muitíssimo outro após nos apercebermos daquele sutilíssimo mecanismo de construção apontado por Frank Nisetich em sua tradução para os poemas reunidos do poeta:

Δωδεκέτη τὸν παῖδα πατὴρ ἀπέθηκε Θίλιππος
ἐνθάδε, τὴν πολλὴν ἐλπίδα, Νικοτέλην.

Algo como: "O seu filho aos doze o pai, Filipo, deixou / aqui, sua esperança maior, Nicóteles". Cabe nos remetermos de imediato ao comentário de Antonio Candido nas páginas introdutórias de seu Formação da literatura brasileira, que o que de fato conta para o sucesso da obra de arte não é o potencial hidrelétrico do chorume do escritor e nem o estarrecimento do drama pessoal, e sim, precisamente, a técnica. Para tanto, põe na lâmina de ensaio poemas de três autores brasileiros espaçados no tempo, girando em torno da situação trágica de perder um filho, e ao mensurar sua grandeza chega à conclusão que - a técnica. No epigrama de Calímaco, que poderia muito bem entrar no exercício crítico do Candido como elemento capaz de causar a mais profunda vergonha na verborragia de alguns dos autores envolvidos, o que poderia haver de especial no que até então parece ser tão simples?

Creio que já devo ter comentado por alto sobre o funcionamento de línguas como o grego ou latim aqui no bloguinho. São o que chamamos de línguas sintéticas, ou seja, conseguimos saber a função sintática que a palavra desempenha na frase graças a uma marcação morfológica em seu final, bem o contrário do que ocorre com idiomas analíticos tais como o português e a maioria das línguas neolatinas, que dependem da posição do termo na frase e do acompanhamento de preposições para tanto. O horizonte proporcionado por um mecanismo desses, dado pelas línguas analíticas, é que você consegue esparramar as palavras na frase de uma maneira muito mais livre, guiado pelo que efeitos de ênfase, de estilo e possibilidades estéticas em suma podem vir a oferecer.

No epigrama citado, e com isso adentro de imediato no porquê é excelente, encontramos o verbo principal da frase, ἀπέθηκε, próximo ao final do primeiro verso. É um verbo curioso e que designa, nas palavras de Francis Cairns, não apenas um deixar como que abandonando, mas, ainda, um guardar quase armazenando: to set aside, to store up. Ao redor da ação principal do verbo encontramos o sujeito πατὴρ Θίλιππος, isto é, pai Filipo. E aqui, meus caros, e aqui a mágica: se sujeito engloba verbo, por outro lado o objeto da frase, isto é, a criança falecida e seus epítetos (τὴν πολλὴν ἐλπίδα, por exemplo), engloba ambos como se literalmente abraçasse o pai e o preservasse, o resguardasse para sempre num lugar em que a esperança perdida doa menos.

Esquematicamente, e simplificando um pouco a coisa, algo como:

τὸν παῖδα                                           Νικοτέλην.
                πατὴρ                 Θίλιππος
                           ἀπέθηκε

Poesia. Técnica.

Uma proposta de tradução:

Aqui o seu garoto aos doze o pai, Filipo,
preservou, seu sonho maior, Nicóteles.