Uma frase de Érico Nogueira.

A leitura da vez está sendo a tese de doutorado do Érico Nogueira sobre os Idílios do Teócrito. Além de finíssimo estudo conduzido por uma das mentes mais arejadas e bem equipadas do nosso tempo, a tese se faz acompanhar de traduções esmeradas. A impressão que tenho, já quase terminando a leitura, é a de que estou diante de todo um requinte de análise e uma como que coragem de raciocínio meio raras no meio acadêmico.

Explico: a postura tradicional da pesquisa de ponta é a de se armar até os dentes de bibliografia especializada e preencher ou afunilar toda e qualquer afirmação mais abrangente com no mínimo uma nota de rodapé a tiracolo, o que na prática implica dizer que o classicista vai se ver às voltas com um mísero iota subscrito num fragmento miúdo. O Érico parece fazer uma coisa um pouquinho diferente, e creio que a frase a seguir ilustra isso muito bem. Basta dar uma espiada na elegância de estilo, praticamente palpável graças ao uso do pronome relativo e da vírgula no trecho "que caracterizam, e de que se distinguem", basta observar o Érico encadeando a sintaxe sem se curvar aos escrúpulos acadêmicos de um fraseado a passo curto e basta vê-lo na segunda metade se permitir deliciosos momentos de imprecisão que fisgam nossa atenção e nos embalam no ritmo cuidadoso e vagaroso do raciocínio. Já fiz uns bicos como revisor e posso afirmar uma coisa pra vocês: frase assim, em trabalho acadêmico, com esse cuidado de construção e com esse prazer, esse sentimento à vontade em meio a estruturas complexas; é coisa rara, meus amigos.

As duas composições, porém, são igualmente importantes para a caracterização da família poética que dissemos ser a de Teócrito, já que ambas se pretendem alternativas à epopeia homérica tradicional, que caracterizam, e de que se distinguem, cada uma à sua maneira ― expediente esse, note-se bem, o de distinguir-se de Homero por isto ou aquilo, e propor uma poesia nova, diferente da dele neste ou naquele aspecto, que talvez possa considerar-se o ato inaugural, não só da poesia de Hesíodo, Teócrito e outros poetas preocupados com a verdade, senão também, presumivelmente, de boa parte da poesia antiga.

Muito bem. "As duas composições", isto é, Hesíodo em sua Teogonia e Teócrito nos Idílios, tal como discorrido mais cedo nas páginas introdutórias da tese. "porém", conjunção devidamente ilhada por vírgulas, seguida de "são igualmente importantes para a caracterização da família poética que dissemos ser a de Teócrito". Os escrúpulos estilísticos da pós-graduação pedem para que encerremos o período com um ponto final, afinal de contas o leitor, esse bicho sempre nivelado por baixo e sempre tomado por paspalho sem um pingo de curiosidade, o leitor, vejam bem, o leitor pode se perder no meio da frase.

Oh, sim. Claro.

A opção por encadear a sintaxe ("já que") deixa transparecer que o fluxo do raciocínio desempenha um papel de destaque. E é isso. A coragem de raciocínio a que antes me referi reside nem tanto na radicalidade da tese, nada bombástica em tempos de relativização dos orifícios anais, mas sim no gesto de se permitir guiar pelo ritmo do pensamento e não apenas pela dosagem homeostática de conteúdo. Não podemos pausar a frase pontuando-a num momento de descoberta tateante, quando abrimos o escopo de análise e nos permitimos vislumbrar, a partir da genealogia daquelas duas composições, o venerando espectro a que se contrapõem, o de Homero. Porque é justo aqui, nesse momento, após o avanço de uma oração subordinada que poderia ser muito bem desatracada do elo sintático, que chegamos a "que caracterizam, e de que se distinguem". O uso do pronome relativo não transparece apenas domínio no uso do idioma ou concisão e agilidade. Dá a ver também ainda mais claramente o ritmo com que o pensamento vai sendo construindo, como se uma e outra oração desconstruíssem cada uma das palavras do sintagma "epopeia homérica tradicional".

Então a primeira metade da frase chega ao fim, permitindo-se um primeiro momento de imprecisão ("cada uma à sua maneira"), e chegamos ao terreno lacunar da segunda. Qualquer pesquisador mais ranzinza veria com péssimos olhos a inclusão de "por isto ou aquilo" no seio de uma tese de doutorado. De minha parte, digo que o que é admirável no jeito como o Érico faz a coisa é que ao invés de denotar amadorismo ou falta de escrúpulo de sua parte, revela, pelo contrário, estar mais preocupado não com a descrição exaustiva do que seria esse tal expediente e, sim, no avanço do raciocínio, no desdobrar paulatino de um elegante encadeamento sintático em capacidade de análise que nos faz ir de Hesíodo e Teócrito para o coração da poesia antiga.

Vale.