Eneida, Canto XI, verso 1.

O latim é uma língua sintética. Implica dizer que você reconhece a função sintática que uma palavra exerce dentro da frase a partir não da posição que ela ocupa e sim pela marcação morfológica que apresenta. Numa frase como "Cão morde homem", trocar o cão e o homem de lugar é o suficiente para transformar um acontecimento banal numa notícia jornalística. Em latim, nem tanto: "Canis mordet hominem" nos diz que "canis", cão, é sujeito, e que "hominem", homem, é objeto direto, a partir do que uma simples checada na marcação morfológica no finalzinho das palavras nos diz, de modo que seria possível trocar os termos de posição sem mudar o sentido: "Hominem mordet canis" continua sendo a mesma coisa.

Pois bem. Na boa poesia, é claro, os recursos expressivos de uma língua são exploradas com o intuito de afetar a sensibilidade do leitor de maneira inteligente. Um único exemplo basta:

Oceanum interea surgens Aurora reliquit

É o verso de abertura do Canto XI da Eneida. Temos, aqui, uma forma habilidosíssima de desenhar a paisagem toda pela simples disposição das palavras.

A tradução literal seria algo como: "Enquanto a Aurora raia, o Oceano é abandonado". Uma tradução mais trabalhada: "O Oceano, raiada a Aurora, é posto a sós". Parece simples, mas observem que "Oceanum" é objeto direto, pois está no chamado caso acusativo. Logo, temos que procurar por um verbo que complete seu sentido. "Surgens" não é pois diz respeito à Aurora. Só pode ser, portanto, a última palavra: "reliquit". Notaram? Entre "Oceanum" e "reliquit" nós temos nada mais, nada menos que o verso inteiro! É como se Virgílio quisesse nos mostrar a vastidão do Oceano e, no meio dele, a ação transcorrendo.

É quando entra em cena o segundo detalhezinho deste verso magnífico. A palavra que ocupa a exata metade do verso, ou seja, a terceira palavra num verso composto de cinco, é "surgens", "nasce". Imaginem a cena: água por toda parte e, bem ali no meio, o dia que nasce.