Bruno Tolentino tradutor. III.

Não acho que exista muito mais do que ser dito a respeito de Bruno Tolentino enquanto tradutor. Ficou faltando, apenas, abordar de que modo ele recria seus próprios poemas, pois, como dito, muito da reflexão que antes fiz a respeito de uma suposta teoria tradutória de Tolentino se baseou em afirmações dele referentes, em específico, a esse ato de tradução própria. É só vermos o caso do poema On Ucello's 'Tryptic of The Battle', incluso como primeira parte de Niccolò da Tolentino, Condottiero, escrito em Oxford, 1972:

          ― "Perhaps we do run parallel
          to death; perhaps we'd trade
          our own recollections of hell
          for a fugue in numbers, all made
          of mannered scars... Yet the best fell.

          Geometry always survives.
          What is the good of asking why,
          blood being what it is ― all hives
          infected with its mocking knives?
          So much I can recall, testify,

          make my own truce with. But he,
          how did he measure it, a rout
          thick at least as his eternity
          where we, the poisèd dead, we
          the ghost of his silence, shout...?"

A recriação, feita em 94, intitulada Sobre o 'Tríptico da Batalha de Uccello':

          ― "É bem provável que corramos paralelos
          à morte. É até possível que trocássemos
          nossas recordações daquele inferno
          por essa fuga delicada em tons de eterno,
          rendas na cicatriz... Mas os bravos e os belos,
          os fortes e os covardes, fizeram-se aos pedaços!

          A geometria, é claro, dura bem mais que tudo.
          E a pouco serve rebelar-nos, porque a Idéia
          é um ídolo intocável e estritamente surdo,
          ainda quando em golfadas irônicas o sangue
          submerja a todas, todas as colméias.
          Um fato de que fui companheiro constante:

          resignei-me à vida, à morte e a um testemunho
          teimosamente oposto ao do algarismo.
          É por isso que agora me pergunto:
          quem era ele, esse senhor de esquadro em punho,
          de compasso na mão medindo a treva, o encontro
          entre o nada e o absimo...?
         
          Matamo-nos, sangramos um ao outro,
          e ali estamos compostos no além-túmulo
          de uma elegância lapidar, a neve em junho,
          a harmonia, o cristal, o contraponto,
          a imitação da fuga... Mas pergunto:
          onde estão meus defuntos?"

Eu nem sequer gosto desse poema, mas me parece meio claro que ele não é muito simples de ser traduzido, em específico a primeira estrofe, que conta com um número eu julgo até importante de palavras-chave: parallel, recollections of hell, fugue in numbers, scars, sem contar coisas como Yet the best fell. Bast que se observe a versão livre de Tolentino, onde tais expressões são mantidas, em muitos casos sob custa de transformação radical das ideias de versos seguintes, como no caso de "paralelos", que, por força rímica, obriga o poeta a um "os bravos e os belos" no penúltimo verso da estrofe. Mas, se fôssemos cair pelo menos num rascunho, poderíamos chegar a:

           ― "Paralelos vamos, porventura,
           à morte, ou trocamos as mais
           fundas lembranças infernais
           por fuga em números, que é pura
           cicatriz. E o melhor!... não dura.

          Já a geometria ― irá durar.
          O que há de bom em questionar,
          se o sangue é o que é ― e os enxames
          se infectam de adagas infames?
          Eu tenho muito a atestar,

          e a minha trégua, eu a suscito.
          Mas como ele o mediu?, dissenso
          quase denso igual seu infinito
          onde, espectros de seu silêncio,
          mortos estáveis, damos um grito...?"

Um rascunho, claro, onde o problema não reside nem tanto nos versos que abrem e fecham o poema, ou seja, versos de nove sílabas num todo de oito ― afinal de contas, Tolentino sempre usou uma medida rítmica muito elástica em suas traduções e em não poucos momentos de sua poesia (e acho que o uso do alexandrino espanhol, que faz dessa elasticidade uma mola mestra de seu funcionamento, o atesta de maneira admirável). O início, por exemplo, apresenta um hipérbato muito contrário à índole da poesia do autor, que, sempre citando aquele dictum de Pound de que a boa poesia deveria ser pelo menos tão bem escrita quanto a boa prosa (logo, de forma clara, sem qualquer inversão sintática que fosse, à maneira do estilo miltoniano), prezava pela frase escorreita. Ou então, na segunda estrofe, a transformação de mocking knives em "adagas infames": não estou lá muito certo que "infame" consiga traduzir o mesmo sentido de mocking, embora consiga alguma coisa. Enfim. A questão não é nem tanto essa. Não sei se com um verso de dez sílabas eu conseguiria manter mais coisas ― por exemplo as repetições enfáticas de he e we na última estrofe. Acho, na verdade, que eu provavelmente me embananaria, ainda mais se observarmos um verso como o segundo da segunda estrofe, cuja ideia pode ser traduzida pro português de maneira muito mais direta que o próprio inglês. (E sim, só aqui já observamos que isso de aumentar o número de sílabas diante de uma tradução para um poema em inglês pode ser uma faca de dois legumes.) Eu digo é mais no sentido de: observe como Tolentino radicalizou seus procedimentos prosaicos e seus procedimentos livres ao longo da tradução. Quer dizer: se por um lado ele transforma a fugue in numbers em "essa fuga delicada em tons de eterno", o que é uma maneira livre de traduzir o original (perdendo, até mesmo, a noção geométrica e abstrata que a fugue in numbers traz consigo, importante para a crítica metafísica que o poema em inglês empreende), por outro ele passa a maior parte da última estrofe numa sucessão de imagens que serve como um enchimento inexistente no original, é claro, mas que é capaz de detonar com toda aquela compressão poética que o poema em inglês apresentava.

Mas isto é quanto às traduções de poemas de própria lavra. Há um último caso a ser comentado en passant, interessantíssimo, que é o da tradução de Tolentino para A máquina do mundo, de Drummond. Ainda naquela mesma seção de seu prefácio em que Tolentino diz, de passagem, suas ideias sobre tradução, ele comenta:

Outrossim, à medida que ia sendo tentado a inserir sem contrapartida alguns poucos textos em língua alheia a que até hoje não me parece haver encontrado satisfatória voz vernácula, no mesmo espírito, se no sentido inverso, vim a considerar minha versão inglesa daquele instante dramático na obra de Carlos Drummond de Andrade, A máquina do mundo, decididamente a case in point; conquanto inicialmente concebida para fins didáticos, decidi-me por dá-la aqui sous bénéfice d'inventaire, cautelosamente propondo-a como personal reading.

O que é engraçado nessa história toda é que de um modo geral a tradução de Tolentino é mais fiel ao original de Drummond do que o geral de suas traduções. Nela, como o leitor pode ver, existe uma tentativa de rimar os tercetos brancos de Drummond, ainda que de forma bem livre, o que não deixa de ser um problema justamente porque os tercetos drummondianos, que, conforme a crítica de forma unânime aponta, evocam os tercetos dantescos (pela correlação entre a forma terceto e a imagem da máquina do mundo), ao serem destituídos de um esquema rímico que espelhava uma estrutura maior (ou seja, a lógica encadeada da terça rima em Dante representando uma espécie de sublimação), parecem também espelhar, por si sós, a desolação do eu lírico. Não seria muito difícil para Tolentino chegar a um tipo de linguagem que remetesse a um recorte clássico (camoniano, em Drummond, bastando que se cite versos como "para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia") ao mesmo tempo em que mantivesse a sobriedade dos versos brancos, mesmo porque o verso branco possui pontos de apoio poderosíssimos em língua inglesa, se nos lembrarmos da mighty line em Shakespeare ou dos versos brancos de Milton (que são, certamente, um ponto de apoio ainda melhor). Além do mais, as traduções mais célebres da Divina Comédia em inglês são em versos brancos, bastando que se lembre da versão de Longfellow e, recentemente, da versão de Mark Musa para a Penguin. É algo parecido com o fato de que a tradução de Tolentino fecha com um último verso isolado, que, no mecanismo da terça rima, é um verso que funciona como uma espécie de síntese e de ponto final na carga poética do poema, ao passo que, em Drummond, graças à sua supressão, nós ficamos com uma sensação de inacabamento um pouco mais acentuada.

Apesar disso, existe um número elevado de soluções altamente criativas por parte de Tolentino, fazendo de sua tradução um verdadeiro must read, ou, no mínimo, algo a ser mais divulgado, ainda mais se tratando de uma tradução daquele que foi já foi eleito o melhor poema brasileiro de todos os tempos. O primeiro verso do original, por exemplo, se vale de um verbo relativamente célebre: "palmilhar", que, segundo o Houaiss, possui as acepções de andar a pé e percorrer detidamente, a primeira acepção datada de 1862 e a segunda de 1720. A escolha de Tolentino não podia ser melhor: trudging, que, segundo o Oxford, é andar de maneira laboriosa (a palavra sendo datada de 1547). Já stony one é uma referência importantíssima, remetendo à imagem da pedra que, como qualquer brasileiro sabe, é central para a poesia de Drummond. hoarse-timbered bell para "um sino rouco" é também uma tradução eficaz, inclusive mais sonora que o próprio Drummond, o que, bem visto, é o modo que Tolentino encontrou de já começar a corresponder à aliteração em S do verso 3 e 4: "um sino rouco // se misturasse ao som de meus sapatos", traduzido para "a hoarse-timbered bell // joined its tolling to the measured sound / of my leaden soles".

E assim vamos, estrofe por estrofe, descobrindo momentos felizes. Todavia, como nas duas outras postagens da sequência, não vou ficar me alongando muito. O leitor está em boa companhia. Tolentino responde de forma criativa e instigante ao chamado do original, fornecendo este que talvez seja o ponto alto de sua carreira enquanto tradutor.


THE MACHINE OF THE WORLD
(A personal reading)
trad. Bruno Tolentino.
em: O mundo como Idéia, Globo, 2001, p. 167-171.

As I went on one day trudging alone
down a street of Minas, a stony one,
at close of eve a hoarse-timbered bell

joined its tolling to the measured sound
of my leaden soles; as birds fell
and soared through barren skies, upon the ground

their silhouettes blended with the dark;
a darkness greater still was coming down
from mountainside as from myself now,

my desillusioned self; out of a stark,
utter silence ― I cannot fathom how ―
the machine of the world suddenly started

to open up unto my very eyes ―
eyes shrunk from all dreams of such a prize,
pained at the very thought of having asked.

Circumspect, majestic all the way,
it opened with no sound impure, or glare
to human eyes impossible to bear;

nothing would force itself nor dismay
my pupils long wasted in the task
of surveiling a desert, nothing asked

of my exhausted mind to work out
an entire reality transcending
all image of itself sketched out

on the face of the mysteries, on the abyss.
It opened quietly, in perfect calm inviting
what senses-intuitions were amiss

yet still haunted him who long since
had lost them, nor desired to have them back
to repeat the same and ramdom lacks

while circumnavigating that or this;
it invited them all, called on their throng
to try again, to apply themselves strong

and mighty upon the pure feast and wring
out of a cornucopia past all song
the full mythical nature of all things.

It told me so (though no voice nor breathing
nor echoes nor percussion testified
that from a mountainside a single sigh

was addressing a miserable, nightly being):
“What you sought in yourself or far above
those narrow confines, what wouldn’t do

though you humbled yourself often enough
‘til at the last moment you withdrew,
regard, attend, examine ― all these riches

beyond the pricelles pearl, this science which
is hermetic, formidable and sublime,
this total explanation of life,

this primal, singular nexus past all rhyme,
all of it unconceivable to you,
so evasive it was, so out of reach

even after you burned your best and worst
on the last, outermost and ardent quest ―
see, contemplate it all, open your breast

and hold it, keep it all with you at last!”
The bridges most superb, the buildings past
all conceivable craft, all though of first

or last causes gone beyond all pitch,
all resources and means of earth steep
― all passions, all impulses, all of pain

and whatever defines us human beings
then proceeds through animals and plants
to soak in the angry sleep of minerals deep;

what will turn round the world until again
is engulfed in the wholesome, all too plain
geometrical order of all things,

and the absurd original, its enigmas
more truthful and higher still than all the grandest
monuments ever built to truth on earth;

ant the memory of the gods, and that solemn
sentiment of death which mars all birth
as we see it flowering through the stem

of even the most glorious thing alive
― everything in a glimpse was there to drive
my senses back to a realm august

finally given to the human gaze…
Why, as I was too reticent to cast
an eye, as I would offer no reply

to such a marvel calling unto praise
a faithless, undesiring, sad, ungrateful
and consequently hopeless outcast

(too tired to be told of things higher
or else to let go of shadows baleful
as filter through all rays in brighter skies),

my defunct beliefs far below
weren’t as quick as to colour or to repaint
a face neutral: faith was too slow

to build a newer face upon the faces
I go on demonstrating pale and faint
to each path I tread upon of late;

as if another being, a distant mate
of the one I had been, had now replaced
for years countless what of me became,

I resigned my will and thus abandoned
what I might have wanted ― no command
was offered: as some flower, say a rose

reluctant to being open is well nigh close,
as though a tardy gift were now too bland
to be longed for ― how much less

possessed! ― I set my eyes upon my feet
and proceeded uncurious, void of sense
and tired, quite tired and quite unfit

to behold any splendour, any gift.
Night had finally landed, thick and strict;
a quiet darkness was all round, all dense,

almighty… The machine of the world
recomposed itself as slow and wordless
as it had been repulsed. I weighed the cost:

my hands hanging be my sides, tense,
my whole body bending on the road
of old, stony Minas, there I strolled

evaluating what I had lost.



A MÁQUINA DO MUNDO
Carlos Drummond.
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.