O cânone.
É comum ler, da boca de certa militância desmiolada, mas também de alguns professores de literatura armados até os dentes de desconstrucionismo, descrições do cânone literário como uma espécie de maquinação escusa arquitetada por especialistas decrépitos e temerários, mas também é comum ler, da boca, agora, de jovens reacionários recém-matriculados em cursos online de latim, descrições desse mesmo cânone como uma espécie de emplastro Brás Cubas capaz de sanar todos os males de que padece nossa cultura: “um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”.
Eu diria, porém, que por mais que o cânone felizmente conte com alguns mecanismos de defesa para amainar a infestação de pulgas, ele ainda não conta com uma assessoria de imprensa que pelo menos faça frente a descrições exageradas, entre alarmistas e exultantes, sobre seu funcionamento. Para desfazer alguns desses mal entendidos, vale a pena aplicar um remédio que, se nada tem de emplastro, ao menos conta com efeitos medicinais suficientes para desobstruir o fluxo das ideias: etimologia. Cânone vem do grego κανών, originalmente as barras de madeira que endireitavam escudos, a exemplo de quando Homero, descrevendo o escudo que protegeu Idomeneu da lança arremessada por Deífobo, fala de δύω κανόνεσσʼ ἀραρυῖαν. Com o tempo, a palavra passou a ser usada de forma figurada como sinônimo de padrão ou modelo, por exemplo o padrão gramatical, métrico e até mesmo literário. É nas mãos dos pais da Igreja Católica que “cânone” ganhará o sentido de catálogo oficialmente aceito das Sagradas Escrituras.
O princípio por trás do cânone religioso, segundo Agostinho, mistura tanto o critério da autoridade quanto o do uso: “Tenebit igitur hunc modum in Scripturis canonicis, ut eas quae ab omnibus accipiuntur Ecclesiis catholicis praeponat eis quas quaedam non accipiunt. In eis vero quae non accipiuntur ab omnibus, praeponat eas quas plures gravioresque accipiunt, eis quas pauciores minorisque auctoritatis Ecclesiae tenent”. Textos como o evangelho de Tomé sobre a infância de Jesus ou as cartas trocadas entre Paulo e o filósofo romano Sêneca não fazem parte do cânone bíblico e hoje são tidos, aliás, como textos apócrifos. Por trás de um juízo assim existem razões de natureza técnica e filológica, resultado de um estudo cuidadoso dos manuscritos e das bases históricas acerca da veracidade do texto, mas também razões de natureza religiosa, concernentes, agora, ao alto escalão do Vaticano.
É bem possível que o ímpeto que move boa parte da militância virtual hoje em dia, ao tratar do cânone seja à direita, seja à esquerda, venha de uma comparação implícita e descabida com o cânone religioso. Enquanto leitores mais progressistas descrevem o cânone como um consenso forjado nas catacumbas de algum monastério (o que, a rigor, não corresponde nem mesmo ao próprio cânone religioso), os leitores reacionários esperam do cânone uma instituição sagrada que deve ser protegida a qualquer custo. Ocorre, no entanto, que embora o cânone religioso, hoje, tenha contornos muito claros, a ponto de qualquer adição que se lhe faça ser reputada como curiosidade, na melhor das hipóteses, ou até mesmo como uma afronta, para dizer o mínimo, com o cânone literário a situação é bem diferente. Há, por certo, um cerne do que se entende por cânone da literatura brasileira, composto, no mínimo, por autores clássicos da estatura de Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade. No entanto, não é preciso dar muita asa à imaginação para que a conversa vá longe e chegue a nomes no mínimo controversos, como, digamos, o de um Casimiro de Abreu. Sucesso em seu tempo e autor estudado no currículo escolar básico, para desespero de nossos estudantes, ninguém, eu suponho, lê Casimiro de Abre hoje em dia com gosto - nem mesmo eu, que tenho preferências pra lá de estranhas e até admiro, pontualmente, poemas seus como “A Valsa”. Outro caso emblemático é o de Joaquim de Sousândrade, ilustre desconhecido para a maior parte dos vestibulandos mas poeta extraordinário que hoje cataloga, em sua fortuna crítica, elogios de gente do calibre de Silveira Bueno, os irmãos Campos e Antonio Medina Rodrigues.
O cânone religioso é o cânone da Igreja Católica, instituição incumbida de, entre outras coisas, preservá-lo. Não parece haver algo assim em relação ao cânone literário, objeto de disputa por praticamente todos os agentes da cena literária. Como dizer que caberia às universidades proteger o cânone, se é de dentro das próprias universidades que saem as críticas mais contundentes ao próprio cânone? Como dizer que caberia à crítica, se ela, dotada de um espírito livre, “der Geist, der stets verneint” do Fausto de Goethe, é o próprio motor da mudança do cânone? A imprensa como um todo, as editoras de alcance nacional e a comunidade de leitores também não parecem capacitadas a defender o cânone com unhas e dentes, para desespero dos reacionários. Além disso, embora o cânone religioso não seja, digamos assim, uma espécie de caixão hermeticamente fechado, já que a descoberta de novos manuscritos legítimos é sempre possível, ele sem dúvidas é muito mais avesso à mudança do que o cânone literário. Só mesmo na utopia passadista de leitores carolas o cânone deveria ser um museu de portas fechadas, aberto a visitação escolar somente em datas comemorativas. Para além do fato de que o cânone literário mudou muito ao longo dos séculos, ele, como tal, precisa estar preparado para o impacto de eventos futuros e certos: a incorporação de grandes autores da literatura contemporânea, a mudança do gosto e as novas descobertas da pesquisa acadêmica. Em todos esses casos, por menor que seja a mudança aparente no cânone, ela sempre traz consigo o potencial de virar o cânone de cabeça pra baixo, mais ou menos como uma forte tacada em uma mesa de bilhar. Como dito uma vez por T. S. Eliot em um ensaio famoso: “The existing monuments form an ideal order among themselves, which is modified by the introduction of the new (the really new) work of art among them”.
Justamente por ser mais aberto e sensível à mudança é que o cânone literário não pode se revestir do sentido religioso, sagrado, inviolável e inatacável que o cânone religioso possui. Quem aceita a autoridade do cânone literário como a de um consenso relevante para o presente - certamente não um consenso absoluto, como dão a entender seus detratores mais exasperados, mas sem dúvidas um consenso, ainda mais quando rumamos ao cerne do que o cânone é -, precisa aceitar, quase como um corolário inevitável dessa afirmação, a possibilidade de que o cânone mude caso o próprio consenso mude. Por mais doído que seja aceitar a realidade elementar de que seu gosto não coincide com o da maioria das outras pessoas e que, justamente por isso, o gosto delas têm mais chance de modelar o que virá a ser o cânone no futuro, é assim, goste ou não, que a banda toca, e não será ganindo contra os investidas hipotéticas de uma Escola do Ressentimento que você mudará algo. No entanto, é preciso também reconhecer que, por ser consenso, o cânone literário não tem nada a ver com aquela tramoia escusa que se entreouve na crítica mais engajada. Disse agora há pouco que, embora o cânone das Escrituras tenha contado com a autoridade dos pais da Igreja Católica para desenhar os seus contornos, o cânone literário não pareceu contar com algo do tipo, e, quando observamos a formação do cânone brasileiro mais de perto, por mais que possamos identificar algumas figuras sem dúvidas influentes em sua formação, como, por exemplo, a de um Sílvio Romero ou a de um Antonio Candido, nada disso significa dizer, nem de longe, que eles teriam sido os responsáveis diretos pelo desenho atual do cânone da mesma forma que nomes como Eusébio de Cesareia foram para com o cânone religioso. Não custa lembrar, afinal, que o próprio Sílvio Romero escreveu um livro destinado a desancar Machado de Assis da posição de corifeu da literatura brasileira da época: “Filho retardatário do romantismo, Machado de Assis não é, nem podia ser, um dos novos apóstolos do sistema no Brasil”.
Quando a pesquisa acadêmica e a crítica com espírito desbravador redescobrem autores relevantes infelizmente soterrados nas areias do tempo, por mais que esse esquecimento possa, por vezes, ser creditado à mentalidade tacanha de priscas eras, isso não significa dizer que a crítica, ainda hoje, mantenha essa mesma mentalidade. A reação empolgada, aliás, com que muitas vezes a crítica contemporânea recebe a edição de um manuscrito inédito de uma escritora negra até então pouco conhecida já desmente a tese de que o cânone literário foi, e ainda é, uma masmorra ladeada por gárgulas. Eu diria, na verdade, que as coisas são ainda mais tristes: um bom livro que não seja bem recebido, ou que ganhe críticas mesquinhas a seu respeito, ou mesmo que tenha o azar de ser publicado sem gente que o divulgue de forma minimamente adequada, é um livro que, com o correr de mais algumas gerações, corre o risco de cair no esquecimento, sem que para isso as gerações futuras precisem agir de forma deliberada para mantê-lo nesse estado. Não custa lembrar, afinal, que embora o trabalho do crítico contemporâneo, de perceber, com olhos de águia, o que está acontecendo na cena literária, seja um trabalho árduo, o trabalho do pesquisador futuro, de se lançar em um maremoto de arquivos para resgatar vozes submersas no turbilhão da História, é trabalho redobrado e para o qual nem sempre haverá energia suficiente.