Entre a tradução poética e a tradução filológica.
Damos o nome de tradução filológica àquela, desprovida de pretensões artísticas e via de regra presa ao sentido literal do texto, que é produzida por especialistas em trabalhos acadêmicos típicos de estabelecimento textual, comentário ou análise literária, e o nome de tradução poética àquela, elaborada por escritores com a veia criativa aflorada, que se destina a entregar em português um texto que produza efeitos de sentido análogos aos do original. Entre uma e outra já foi travada, em priscas eras, uma verdadeira guerra fria entre catedráticos empedernidos de literatura greco-romana e poetas desmiolados refestelando-se nas várzeas da função poética. Com o passar do tempo, porém, e a consolidação dos Estudos Clássicos e dos Estudos de Tradução em muitas universidades brasileiras, e o desgaste de um conflito recolhido em sua insignificância, e o próprio fato de os combatentes de um e outro lado terem provado de seu próprio veneno, essa conversa saiu de moda. Hoje um especialista pode produzir uma tradução poética mesmo em âmbito acadêmico e um poeta cioso de sua responsabilidade fazer amplo uso da literatura especializada como estímulo para a criatividade.
Meu objetivo aqui é apenas exercer minha função ancestral de crítico, isto é, a de ser um legítimo estraga-prazeres. Até que ponto é possível unir tradução poética e tradução filológica? Claro está que aquele cabo de guerra de décadas atrás já não é mais viável, mas fico me perguntando se a busca por uma espécie de aurea mediocritas seria realmente tão desejável assim. Isso não seria uma ilusão? Não estaríamos tentando misturar compostos químicos essencialmente distintos e, pelo menos em certo sentido, pelo menos quanto aos resíduos no fundo do frasco, irreconciliáveis entre si? Não seria melhor que cada um fizesse bem o que se propusesse a fazer, sem ficar olhando de soslaio para o jardim do vizinho? Antes mesmo de ponderado, um híbrido entre filologia e poesia com toda facilidade pode se revelar inconsistente.
Uma marca típica da tradução poética é que ela não costuma vir acompanhada de estudos introdutórios rechonchudos nem de notas de rodapé caudalosas. Nada mais estranho para uma tradução filológica da gema, cuja única função, a mais das vezes, é a de servir de batedor que prepare o terreno e dê uma colher de chá ao leitor, ou, ainda, a de diplomata entre especialistas e garanta que nossa interpretação gramatical de uma passagem em grego antigo é a mais transparente possível para quem está tendo a infelicidade de ler aquilo. Nessa história, o que se entende por meio termo seria uma espécie de tradução envelopada em notas um pouco mais copiosas do que o normal (não, claro, a ponto de o editor arrancar os cabelos ou de o leitor comum fechar a brochura num estalo) e que admite soluções literais só até onde o decoro acadêmico permite, com, sempre que possível, uma aliteração acanhada ou uma paronomásia fortuita dando as caras para animar a festa.
Será esse o Eldorado da tradução? A banca avaliadora talvez até se convença com o fraseado sedutor prometendo uma mistura saudável entre responsabilidade acadêmica para com o sentido literal e respeito aos tímpanos do leitor, mas, na prática, a impressão que fica é que a tradução não chegou nem lá nem cá. É dizer, ela não deslumbra os artistas mais exigentes, que esperam da poesia uma tecnologia de ponta capaz de redefinir as fronteiras de um idioma, e também não serve ao acadêmico que precisa ingerir doses homeopáticas de filologia com teor alcoólico mais forte. Funcionam bem, eu diria, como traduções destinadas a um público de leitores velhacos particularmente interessados em cultura clássica; leitores dispostos a pagar um pouco a mais por uma edição de luxo, sob a esperança de galgar mais alguns degraus do Hélicon sem necessariamente escalar toda a montanha dos estudos clássicos. O especialista poderá fazer bom uso de um material assim, mas, pelo menos a princípio, não será alimentando sua pesquisa com livros destinados a um público um pouco mais restrito, mas ainda assim amplo, que ele produzirá ciência de ponta. Os leitores mais exigentes de poesia também terminarão a leitura com a sensação de que o texto teria sido tanto mais agradável quanto mais firme fosse a mão do tradutor, e, no fim do dia, o que se avista do cimo da montanha é uma cena literária em que a falta de mais traduções tenta ser contornada por canivetes suíços. Matar dois coelhos em uma só cajadada talvez faça sentido agora, mas, “Had we but world enough and time”, e traduções não precisariam ficar em cima do muro na esperança de ocupar mais de uma casa no tabuleiro, na ausência de outras peças que façam esse serviço.
Traduzir é fazer escolhas. O que se espera de um tradutor maduro é que ele tenha consciência do que está fazendo. Se prometeu A mas não tira o olho de B, as chances de que entregue uma bizarrice inconsistente são altas. Uma coisa é que seu editor atenda a seus pedidos e te dê um pouco mais de espaço para cabriolar na bibliografia alemã, conquanto entregue algo escrito, de cabo a rabo, pensando não em seus pares e sim em leitores leigos; uma coisa é que você, “on the viewless wings of Poesy”, alce voos mais altos, mas refreie o impulso quando o sussurro das Musas for mais alto que a voz do original, e, seja num caso, seja noutro, sabendo de antemão que jamais agradará leitores nos extremos que precisam de outro tipo de tradução; e outra coisa bem diferente é que você, aprendiz de feiticeiro, misture todos os ingredientes no caldeirão e espere servir aos convidados um elixir que agrade a todos os paladares. Repito: traduzir é fazer escolhas e, como todo adulto dono de si sabe muito bem, escolhas significam perdas. O original cedo ou tarde cobra seu preço, seja do especialista que jura de pé junto que traduzir de forma literal é sempre a melhor escolha, inclusive quando seu texto é um primor de sonoridade, seja do poeta que desfigura a obra em uma caçada implacável por rimas impertinentes. Em algum momento as veredas hão de se bifurcar, e não será tentando a todo custo atar as duas pontas que você vai retomar o prumo.