A lista da Fuvest.

A lista de leituras obrigatórias para o vestibular da Fuvest foi recebida com choro e ranger de dentes. Entre 2026 e 2028, os desafortunados vestibulandos encontrarão apenas escritoras mulheres em seu caminho: dos poemas de Narcisa Amália e Sophia de Mello Breyner Andresen até os romance de Rachel de Queiroz e Lígia Fagundes Telles e o Opúsculo Humanitário de Nísia Floresta. Somente em 2029 os alunos voltarão a rever os rostos de nossos velhos conhecidos Machado de Assis e Érico Veríssimo.

Para muitos, enfim é chegado o tempo em que a higiene misândrica feminista foi oficializada e a elegia de Harold Bloom ganhou corpo: “Every teaching institution will have its department of cultural studies, an ox not to be gored”. Não é muito difícil, penso eu, redarguir esse tipo de reação alarmista e desesperada; basta virar a moeda ao avesso e recordar que, até pouco tempo atrás, as listas de leituras obrigatórias selecionavam apenas escritores homens para seus vestibulares. Como felizmente já não estamos mais no século XVII, quando encontrar mulheres envidando os esforços hercúleos de escrever arte em sociedades que lhes impunham todo tipo de obstáculo era uma tarefa no mínimo improvável e que dificilmente completaria toda uma lista de leituras obrigatórias (“Alas! a woman that attempts the pen, / Such an intruder on the rights of men”, escrevia em tom de zombaria a condessa Anne Finch), e como, de algumas décadas pra cá, o número de mulheres se interessando por literatura parece crescer cada vez mais, fica difícil, eu concluo, achar normal qualquer lista ou catálogo recente que não traga consigo uma quantidade qualquer de romancistas e poetas mulheres. Nada disso tem a ver com uma exigência implícita e sorrateira por cotas para a literatura, mas, tão somente, com a maneira como tomamos nota do que está acontecendo na cena literária.

Este é um tempo de mudanças, mas tais mudanças só vêm sendo possíveis porque forçamos nossas retinas a se incomodar com os tons monocromáticos da literatura brasileira e desde então nos propusemos a mudá-la. Não faz muito tempo, por exemplo, escrevi sobre o baixo número de mulheres no pódio de grandes premiações literárias nacionais; embora não tenha acompanhado a situação de lá pra cá, minha percepção pessoal, acompanhando ainda que de longe, é a de que houve melhorias nítidas. Isso, por certo, não se deu apenas por moto próprio das editoras, das bancas de concurso e das cátedras universitárias; o tema da igualdade de gênero saiu das masmorras dos departamentos e hoje está na boca do povo. Ou seja, o debate precisou primeiro conquistar a praça pública e chegar à pauta do dia para, somente então, forçar o sistema literário como um todo a mudar, isto é, levar leitores a se interessarem por poemas e romances escritos por mulheres, críticos a revisitarem seus parâmetros, editores a reestruturarem seus catálogos, livreiros a mudarem as prateleiras de lugar e, por que não?, vestibulares a adotarem medidas enfáticas como a de uma lista composta apenas por escritoras mulheres.

Nunca soube muito bem como eram elaboradas as listas de leituras obrigatórias para o vestibular. Sempre me pareceu claro, todavia, que o critério puro e simples da qualidade artística ou da seleção de clássicos consolidados não parecia dar cabo no assunto, já que livros de literatura contemporânea e mesmo de escritores goianos vira e mexe eram também selecionados. Se não era um absurdo reservar uma cadeira para o escritor goiano em um vestibular goiano, não parece muito razoável achar um absurdo que a escritora mulher tenha também sua vez. O que quero dizer é que, em uma universidade goiana, nada mais razoável que o estudante traga consigo algum conhecimento sobre os clássicos da literatura brasileira, sobre algumas discussões contemporâneas mais salientes e também, é claro, sobre a própria arte produzida na sua região. Com uma lista composta apenas por mulheres, a lógica é parecida e resulta quase como um corolário do que foi dito no parágrafo anterior: o debate sobre igualdade de gênero afia nossa percepção, toca na ferida e exige que metamos a mão na massa caso realmente queiramos ver alguma mudança substancial no sistema literário. Para além de ser uma forma de intervenção que busque corrigir os rumos da produção e consumo de literatura, a lista de leituras obrigatórias da Fuvest também serve como uma espécie de medida afirmativa voltada não apenas à admissão pura e simples de candidatos como, ainda, ao tipo de bagagem que se espera que os alunos tragam.

Seria um exagero, porém, achar que toda ressalva à lista é um recalque machista entranhado na medula óssea do crítico. Uma carta aberta, elaborada por professores de universidades brasileiras país afora, reconhece a importância da discussão sobre gênero e formação do cânone literário, mas pondera a respeito da escolha de uma obra de não ficção em uma lista de leituras tradicionalmente literárias, como é o caso do Opúsculo de Nísia Floresta, ou, ainda, do risco de anacronismo em que um manuseio inadequado da lista pode incorrer: “A transferência de um princípio contemporâneo para a seleção de obras de diferentes estilos e épocas corre ainda o risco de exigir das autoras um objetivo que não propunham em seu momento histórico ou, se sim, certamente o fizeram de modo distinto dos valores atuais”. A carta é ainda mais incisiva e cirúrgica quando comenta que “a adoção de um único critério para a escolha dos livros desconsidera a especificidade da literatura, com risco de corroborar os novos tempos utilitaristas de desvalorização das linguagens artísticas e, sobretudo, o foco na figura do/a autor/a ou nas camadas mais superficiais do texto”.

De fato, o problema de leituras que sobrevalorizam aspectos biográficos e contextuais, ou, caso prefira o jargão da tribo, aspectos identitários, durante a leitura de textos artísticos já foi assunto de mais de uma publicação aqui no bloguinho. Harold Bloom, ao descrever “the current disease of moral smugness that is destroying literary study in the name of socio­economic justice”, característica do que ele batizou de Escola do Ressentimento (“Feminists, Marxists, Lacanians, New Historicists, Deconstructionists, Semioticians” - e quem mais se colocasse em seu caminho), já criticava essa tentativa de “banish the poetic from poetry”. A obra de arte é um objeto de invenção que dá asas, mais do que qualquer outro artefato elaborado por mãos humanas, à criatividade, e, como tal, não pode ser equacionado a ferro e fogo a qualquer elemento externo que lhe influencie. Como dito de forma lapidar por Adorno, “A arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta”. A relação é complexa, e embora o poema seja escrito por um ser humano de carne e osso incrustado em um momento histórico específico, a correnteza da História e as condições materiais da época não determinam o que a arte pode vir a ser. Aqui, precisamente, reside meu dissenso com a militância identitária mais aguerrida e mesmo minha simpatia parcial com a militância (também aguerrida) de Bloom em defesa de “the romance of reading”. A adoção de medidas enfáticas para corrigir os rumos da literatura e tentar torná-la mais igualitária, até onde for possível algo do tipo, nunca foi exatamente um motivo de preocupação para mim; na verdade, com o perdão de estar me repetindo, me parece razoável que precisemos adotar medidas enérgicas para desemperrar as engrenagens do sistema literário. O que realmente me incomoda nessa história é que joguemos a água do banho com o bebê junto, e, ao buscar construir uma cena literária mais inclusiva e plural, precisemos reduzir em importância o espaço do texto artístico, como se o exercício de contextualização política e social fosse o objetivo último da análise literária, ou, pior ainda, como se a leitura literária fosse uma espécie de preâmbulo floreado e, se muito, fascinante para uma crítica social demolidora. Como descrito por Bloom, “Reading a poem or a novel or a Shakepearean tragedy is for them [aos alunos da Escola do Ressentimento] an exercise in contextualization, but not in a merely reasonable sense of finding adequate backgrounds”.

Fazer parte de uma lista de leituras obrigatórias é um passo importante na vida de um autor. Sem dúvidas, é uma forma de consagração, mas, como nem toda consagração vem para o bem, é também uma forma de submeter os versos à tortura de questões de vestibular pouco interessadas na elaboração artística ou, ainda, em aulas de literatura afoitas em engaiolar os livros em escolas e tendências literárias. Horácio já descrevia com pavor a ideia de que o destino de seu livro fosse “ut pueros elementa docentem / occupet extremis in vicis balba senectus”. O que quero dizer com isso é que se a lista em si não me causa arrepio, por ser, ela mesma, apenas um instrumento de seleção, apenas uma forma de exigir dos candidatos um cabedal de reflexões, a maneira como as obras serão dissecadas é, ela sim, a verdadeira fonte de preocupação. Em se tratando, infelizmente, de uma prova de vestibular, o tipo de leitura encabrestada a que professores e alunos precisarão se sujeitar será determinado pela maneira como a banca decidir abordar o texto literário. Eu, que já passei por isso, já consigo imaginar muito bem como a novela termina, e o que poderia ser uma chance valiosa para apreciar os versos inigualáveis de Sophia de Mello Breyner Andresen - “A noite abre os seus ângulos de lua / E em todas as paredes te procuro” - muito provavelmente será apenas uma arapuca intertextual armada em um linguajar hermético.