O crítico e os holofotes.

Recluso e reservado como sou, poucas ideias me são mais incômodas e improváveis que a de me pavonear nas redes sociais para conquistar um público que dia após dia vem se tornado cada vez mais estranho. Há certo conhecimento de causa nesse comentário, afinal de contas não faz muito tempo eu também me pavoneei por meses a fio, no auge da pandemia, em uma página de latim para falar de declinações e minúcias morfossintáticas. As circunstâncias, é verdade, eram outras, o mundo estava de cabeça pra baixo e eu, por conseguinte, também estava, e, para todos os efeitos, meu papel ali era menos o de crítico e mais o de professor. Mas já naquela época eu me sentia como que movido por uma força centrípeta sedutora e irresistível que me levava a tratar os internautas como meros consumidores em potencial, pois do contrário a página não conseguiria prosperar e as publicações ficariam à deriva no ciberespaço. Pior do que isso (até porque à deriva este bloguinho sempre esteve), por vezes me vinha a ideia de que os próprios leitores gostavam ou no mínimo se acostumaram a ser tratados assim.

Longe de mim dar uma de desentendido e achar um absurdo que a relação entre um professor de latim e seus alunos seja algo lá muito diferente do que tantas outras coisas na vida acabam sendo: a de um profissional liberal para com um público consumidor. Mas longe de mim também erguer a máscara patética do pragmatismo pretenso e dar a entender que a relação de ensino, ou, para os propósitos deste texto, a relação crítica, deva se resumir a isso. As coisas não precisam ser sempre assim, e quando o ensino e a crítica sucumbem à lógica de mercado pura e simples, algo de valioso se perde.

Não estou sozinho em minha percepção de que as redes sociais abriram um espaço valioso de crítica literária (assunto, aliás, de mais de uma publicação aqui no bloquinho), hoje permitindo ao homem de letras um contato direto com o público, longe da via crúcis de pareceristas desinteressados ou de redatores-chefe que afiam suas tesouras na calada da noite. Mais do que isso, uma rede social bem gerida é uma vitrine e uma fonte de renda lucrativa em um patamar que jornal nenhum, a essa altura do campeonato, é capaz de igualar. Enfim a perspectiva mágica e até então utópica de viver falando de literatura, do seu jeito, sem se preocupar com a burocracia do magistério ou com os percalços de uma profissão desvalorizada - aquilo que, para os arautos do apocalipse, segundo os quais a crítica literária se refestelava no fosso completo da irrelevância, até pouco tempo atrás parecia completamente improvável, isso de um crítico literário, em uma só tacada, ganhar o que um professor universitário precisa trabalhar um ano inteiro para receber.

Estão e estiveram errados nisso. Mas o azedume de seus prognósticos não invalida tudo o que disseram; vale lembrar uma última vez que, em se tratando de literatura e também de crítica, nem tudo se resume às transações comerciais. Para fisgar potenciais consumidores desavisados, é comum que essa nova cepa de críticos, em sua maioria conservadores imitando os trejeitos de seus superiores hierárquicos, jogue no caldeirão do marketing uma pose professoral improvisada e um diagnóstico alarmante de como as forças ancestrais da boa literatura andam sendo maltratadas neste país. Até aqui, não há nada de muito diferente do que um vendedor de panelas antiaderentes precisa fazer para queimar o estoque. O estarrecedor nessa história toda, eu diria, não é que o produtor de conteúdo, em sua rotina diária de lançar pérolas aos porcos, trate os leitores como crianças de fralda que não sabem distinguir o bom do mau, o belo do feio, o saudável do indigesto; o que realmente choca é que os leitores aceitem ser colocados nessa posição e esperem de seu Virgílio hiperbólico um guia para literatura e também para finanças, oratória, namoro, pesca, marcenaria e ética.

Crise da crítica, é claro, ou, para usar palavras mais bombásticas, mas também mais reveladoras, aviltamento completo do que Augusto de Campos, aproveitando-se de uma expressão de Ezra Pound, uma vez definiu como “conversa entre homens inteligentes”. É como se a autoridade do crítico influenciador fosse fruto mais dos holofotes ofuscantes lançados sobre si do que do brilhantismo de seus argumentos, a ponto de quando em vez, nos arredores da fonte Aganipe, serem avistados espécimes intrigantes de escritores que não escrevem ensinando escrita criativa, ou, ainda, de críticos sem crítica anunciando cursos que prometem a chave micha para abrir as portas de qualquer poema. Nada mais distante do que a boa crítica deve ser; lembrando o bom e velho Pope, “But you who seek to give and merit fame, / And justly bear a Critic’s noble name, / Be sure yourself and your own reach to know, / How far your Genius, Taste, and Learning go, / Launch not beyond your depth, but be discreet, / And mark that point where Sense and Dulness meet.”

Me permitam fechar o texto elaborando um pouco mais a ideia. Por mais que as credenciais de um crítico importem, e mesmo sua trajetória nas colunas de jornal ou em uma bugiganga virtual qualquer, penso que a crítica literária poderia, não sei se idealmente, mas pelo menos em tese, ser exercida de forma anônima. Depois que a coisa toda foi sacramentada e a crítica está publicada, disponível a qualquer um que tenha olhos de ver e neurônios de refletir, a própria crítica se sujeita ao mesmíssimo tipo de crítica a que se sujeita a obra de arte, é dizer, ela passa a ser uma leitura posta ao crivo da leitura de outros. Nessa condição de panfleto lançado à própria sorte, já não cabe mais ao crítico defender sua opinião de ontem com unhas e dentes contra todo e qualquer senão que se lhe venha a fazer, já que ele próprio, o crítico, pode revisitá-la se entender necessário, ou, até para ser mais exato, deve ser ele próprio o primeiro a fazer coro a quem desancou as impropriedades que foram ditas.

O que quero dizer com isso é que se a crítica tem uma vida própria para além do crítico, então a transformação do crítico numa espécie de celebridade é algo que atenta contra a natureza da crítica, ofício de homens discretos que dão mais valor à vida das ideias do que à pessoa física que as proferiu. Mas é claro que a coisa quase nunca foi assim; as pessoas esperam do crítico uma espécie de guia, e, nisso, é comum que alcem sua figura a uma posição em que qualquer juízo emitido, inclusive aqueles despretensiosos, ditos em momentos de lazer sem compromisso algum com qualquer embasamento razoável, ganham uma relevância especial, uma espécie de força mágica que transmuta o valor dos versos a que se referem pelo ato puro e simples de se referir. Nada disso é invenção das redes sociais; a grande mídia, a cena literária e suspeito que toda coletividade humana vira e mexe colocam alguém nessa posição incômoda de centro das atenções por razões nem sempre as mais justas. Não deixa de fazer certo sentido, claro, já que a crítica exige de nós o que não estamos dispostos a fazer o tempo todo: ponderar de maneira cuidadosa e pausada tudo o que nos é dito e abrir mão, sempre que necessário, da nossa opinião anterior tão logo argumentos melhores sejam postos diante de nós no tabuleiro.

A grande questão é que o bom crítico, ao menos em tese, deve, ele mesmo, fugir dessa gaiola a céu aberto em que nos metem sempre que calha de nossos textos encontrarem ressonância no público. Ele, mais do que ninguém, deve ser o primeiro a corrigir os seus excessos, a zelar pela qualidade de seus argumentos e, principalmente, a ter a decência de não aviltar o seu ofício, lembrando sempre, como disse certa vez Samuel Johnson, que “Applause and admiration are by no means to be counted among the necessaries of life”. Quando o crítico se contenta a expelir opiniões infundadas em caixinhas de perguntas em redes sociais, é porque já não está muito interessado na qualidade de suas opiniões. Para os fins exclusivamente mercadológicos, isso basta, até porque engaja e garante o pagamento em dia da fatura do cartão. Mas, para fins de crítica literária, que é, em tese, o que deveriam estar fazendo, a impressão que fica é das piores, e, não fosse a turba de leitores docilmente acomodados em seus respectivos lugares, não fosse o ruído ensurdecedor de gente esperando da literatura som e fúria, não fosse a luz intensa de holofotes apagando os vícios e confundindo as virtudes, o que sobra é um vendilhão, mas jamais um crítico.