Esquerda e direita na literatura.

Já faz um tempo que não me interesso em acompanhar a literatura contemporânea com afinco - o afinco de outrora, quando o bloguinho era atualizado em um ritmo aventureiro, o afinco do neófito, para quem todo lançamento é um acontecimento, o afinco de quem procura na literatura qualquer outra coisa, menos literatura, mas também, confesso, o afinco quase nenhum de quem tem mais o que fazer. A literatura mudou demais desde que comecei esse trabalho vital há mais ou menos dez anos; o Formas Fixas foi testemunho de muito do que aconteceu de lá pra cá, e o estudioso de épocas futuras que desejar compreender alguma coisa do que aconteceu nesse meio tempo terá aqui, espero, uma fonte relativamente valiosa de estudo.

Quando comecei a escrever crítica literária e a praticar quase diariamente o triatlo da tradução no começo da década passada, minhas preocupações eram me exercitar tanto quanto possível na ginástica entre duas línguas e, no caso específico da poesia contemporânea, entender o que estava acontecendo e fazer frente contra duas opiniões muito em voga na época, ambas, a bem da verdade, um repeteco esmorecido do que vinha sendo dito desde a década de 90 pelo menos. A primeira, que alardeava de um jeito no fundo saudosista e terapêutico sobre a crise da poesia contemporânea, eu redargui mais de uma vez de diversas maneiras, de que destaco aquela que sempre me pareceu a única maneira verdadeiramente legítima de lidar com o problema: isto é, comentando poemas que me pareciam notáveis e tentando, tanto quanto possível, convencer os outros a respeito das qualidades que encontrei ali. Já no que diz respeito à segunda ideia também muito em voga naquele período, direcionada à crítica literária em si, e que curiosamente não só parece ainda estar na ordem do dia, como, aspecto ainda mais intrigante, vem me fazendo dar o braço a torcer (assunto, quem sabe, para outro texto); contra ela investi, também mais de uma vez, com textos densos e supérfluos sobre a natureza da crítica e sobre outros tantos espaços que vinham ganhando força, destaque especialíssimo para os jovens que se punham diante das câmeras em cenários improvisados para falar de literatura.

Olhando em retrospecto, consigo apontar pelo menos um motivo para ter me interessado por poesia contemporânea sem que isso tenha me causado úlcera no estômago. Em vista dos problemas que temos hoje, era de fato plausível dedicar boa parte do tempo de um estudante de Direito para a reflexão fugidia sobre que tipo de poesia e que tipo de crítica estamos produzindo hoje e poderemos produzir amanhã. No entanto, quem acompanhar a evolução dos textos publicados no bloguinho não deixará de perceber que as publicações foram ganhando outro tom, e aquelas, por exemplo, dedicadas à natureza da crítica cederam lugar a comentários pontuais sobre alguns quiproquós da cena literária e outras tantas diatribes vindas da boca de militantes aguerridos e reacionários carolas.

Por quê? Não é um tema em que me apraz deter. Da segunda metade da década pra cá, o país assistiu à derrocada do longo projeto político da esquerda petista e, em seguida, a uma corrida maluca por ocupar o inquieto e desesperançoso espaço vazio na cabeça dos eleitores. Se, por um lado, a pauta política, econômica, social e cultural escapou por entre os dedos de uma esquerda aturdida para cair no colo de uma direita muito diferente daquela a que estávamos acostumados - uma direita que não teme dizer o seu nome e que abre a golpes de foice uma clareira bibliográfica até então desconhecida -, por outro esses breves anos turbulentos parecem ter servido menos para mudar em definitivo os rumos da política brasileira recente e mais, creio eu e cremos nós, para acirrar os ânimos e cindir o país ao meio.

A literatura não passou incólume a esses acontecimentos. Eu, que já me apelidei jocosamente de um parnasiano enrustido e, como tal, fujo como o diabo da cruz de quem matraqueia que tudo é política, da taxa de criminalidade à figurinha da Copa, eu, vejam vocês, preciso pelo menos ter a decência de não dar murro em ponta de faca e reconhecer que a poesia participa da vida pública, às vezes de maneira literal e combativa, e, mais até do que isso, que épocas há em que os artistas parecem se ver encurralados a se engajar nessa empreitada nem que por auto-defesa. Virginia Woolf, lá se vão uns cem anos atrás, comentava a mesma coisa a respeito do número acachapante de literatura política em tempos de guerra. O que me parece notável nessa história toda é que as trincheiras vêm produzindo não apenas poemas destinados a alçar os estandartes de um dos lados do tiroteio ideológico, mas, mais do que isso, que elas vêm construindo verdadeiros sistemas literários com certo grau de autonomia, ou, caso prefiram um fraseado mais cuidadoso, sistemas que se estranham, se repelem e muitas vezes se definem a partir do antagonismo puro e simples.

Mais à esquerda, o poeta, assistindo irem por água abaixo as utopias a custo desenhadas por toda a primeira década do novo milênio, assumiu com urgência e uma pitada de desespero uma postura combativa em que o poema se torna um meio poderoso de resistência contra a barbárie que se instalou no país. Isso explica a guinada participativa e mesmo panfletaria de muitos nomes da cena literária, do decano ao estreante, repetidas vezes seguindo a cartilha da poesia política mais empedernida, isto é, glosar um acontecimento chocante dos últimos tempos na aposta, nem sempre lá muito plausível, de que a poesia - justo ela! - servirá para dar uma sobrevida àquilo. Como, porém, a união entre poesia e política não é novidade deste milênio, mas, se levarmos em conta apenas a história literária recente de nosso país, já encontrava expoentes nos poetas engajados da primeira metade do século XX ou até mesmo na poesia marginal batendo de peito aberto contra os anos de chumbo, é comum que esse poeta de esquerda encontre maneiras mais sutis e requintadas de posicionar as farpas políticas de seus versos, arriscando-se, muitas vezes, em unir memória íntima e trauma recôndito a discurso público e participação na vida coletiva. Traduzindo para o jargão da tribo, escrever poesia em uma época como a nossa é um ato de resistência não apenas por aquilo que o poema denuncia como, ainda, pelo fato puro e simples de ter sido escrito por quem a necropolítica a todo custo tenta eliminar.

O tipo de crítica que se faz mais à esquerda vem procurando, já há algumas décadas, uma maneira mais abrangente de ler literatura. Para infortúnio de formalistas ressequidos como eu, já não basta mais a análise formal ou a investigação do contexto cultural em que o poema veio a lume; precisamos também entender o que esse poema testemunha, ou seja, de que modo o cruzamento de dados íntimos e biográficos, de um lado, e dados políticos e públicos, de outro, redunda em um texto que nos dá uma perspectiva única a respeito de um acontecimento. Por isso categorias como o lugar de fala e reivindicações justas por catálogos mais plurais são tão frequentes hoje em dia. Editoras independentes costumam ter mais facilidade em atender a essa demanda, enquanto os grandes centros literários ainda claudicam nessa direção. Como, porém, este já não é mais um apontamento ouvido somente nos corredores universitários, mas também uma reivindicação de leitores como eu e você, é comum que este seja um tema na ordem do dia.

As coisas mudam bastante quando vamos de mala e cuia para o sistema à direita, a começar pelo fato de que tal reivindicação é, quando muito, adaptada às necessidades de artistas que estão menos preocupados com a presença de minorias sociais nas listas do vestibular e mais com o predomínio alarmante de comunistas manufaturados nas cúpulas do foro de São Paulo. O lugar de fala e o verso prosaico, direto, despido de ornamentos retóricos, cede lugar a uma poesia que procura, por meio das formas fixas tradicionais e, vez ou outra, um verso livre envergonhado, criar obras belas que fixem na cabeça dos leitores algumas das virtudes cardeais para a existência humana. A incumbência da crítica passa a ser menos a de servir de caixa de ressonância para a resistência política, como era mais à esquerda, e muito mais a de uma espécie de preceptora que guie leitores estrategicamente infantilizados a uma compreensão elevada das belezas da Arte e - o que parece ser o principal - qual a moral da história podemos extrair da leitura de um grande livro e de que modo ele pode nos ajudar a manter a cabeça no lugar mesmo com todos os aliciamentos perniciosos de uma sociedade em ruínas.

Um traço curioso dessa crítica literária feita à direita é que ela vem explorando de maneira muito criativa tudo aquilo que as redes sociais podem oferecer em termos de marketing, algo que só muito raramente a esquerda dá conta de fazer. O crítico à direita que pastoreie um rebanho gordo de seguidores consegue muito mais que saber com mais clareza o que esse público quer: ele tem em suas mãos a oportunidade de fazer desse contato direto uma fonte polpuda de renda através de cursos, mentorias e outras bugigangas que lhe desincumbem de bater ponto em blogues ou revistas acadêmicas. As editoras também, por não contarem, na maioria dos casos e pelo menos a princípio, com o respaldo de estruturas faraônicas de âmbito nacional, apostam em saídas alternativas fora do ciclo vicioso da publicação impressa gerando um engajamento que precisa ser chancelado por algum veículo tradicional de crítica; penso em ideias como a de um clube de literatura, a de um financiamento coletivo, a de uma produtora ou mesmo a de poetas divulgando seu trabalho em um modelo de marketing mais uma vez inteiramente pautado nas possibilidades astronômicas de vendas em uma rede social bem gerida.

Que fique claro: isso não é um cardápio. Você não precisa terminar a leitura escolhendo um dos lados, ou, o que é pior, lendo tudo isso que escrevi com a cabeça de quem inicia um texto com respostas prontas eclodindo da casca. Um dos grandes problemas da cisão ideológica tão violenta por que passamos é, justamente, o fato de que esses sistemas literários não se comunicam e não compartilham o que há de melhor um com o outro. Se por um lado a própria cisão foi responsável por desenhá-los e, em certa medida, por permitir que funcionem de maneira mais eficiente, já que agora, e de maneira muito diferente de como era quando comecei a escrever crítica, a cena literária se define de modo mais claro, e, justamente por isso, o consumidor final sabe bem o que esperar dessa balbúrdia toda; se por um lado essa cisão foi bem-vinda pelo menos nesse ponto de vista puramente mercadológico, por outro é razoável (e urgente e necessário) imaginar que cedo ou tarde ela precisará ceder espaço a uma concórdia qualquer. Não é viável manter o país cindido por tanto tempo; os custos políticos e econômicos, mas também sociais e pessoais de uma cisão assim são altos. Prova disso é que, à margem desses sistemas, há um intenso movimento transfronteiriço de artistas que contrabandeiam sua arte por não rebaixarem docilmente a cerviz para o que ditam as cartilhas. São artistas que, por exemplo, procuram uma politização mais elusiva e requintada em seus poemas, em vez do embate direto desgastante e entediante em que muitos jovens incorrem de forma exasperada, mas também são aqueles que recuperam valores tradicionais sem passar pelo didatismo exagerado de quem não confia na inteligência de seu próprio público leitor.