O que é uma cultura desenvolvida?
Ouvimos dizer às vezes que uma cultura desenvolvida é aquela que produz grandes obras. Mas esse raciocínio não dá conta do recado, já que é perfeitamente possível criar grandes obras de arte até mesmo no pior dos cenários. Além disso, quando a gente enfatiza demais os grandes artistas, esquecemos que existe uma infinidade de outros, ruins e medíocres, que também merecem ser levados em consideração. Nenhuma cultura sobrevive só de grandes obras. Por isso creio que será melhor substituir essa concepção por outra: cultura desenvolvida é aquela em que os escritores, leitores, livreiros, editores e todos os agentes do meio cultural têm condições melhores de prosperidade. É provável que eu acabe puxando a sardinha pro meu lado e dê muitos exemplos saídos da literatura, mas você pode aplicar essa mesma ideia para qualquer outra área da cultura que bem entender.
O primeiro resultado dessa concepção é que ela se desvincula da ideia da grande obra, mas também da ideia de que uma cultura antiga é sempre uma cultura desenvolvida. É teoricamente possível que uma região cuja cultura surgiu há um século seja hoje culturalmente mais desenvolvida que outra com uma cultura milenar. Se digo que é teoricamente possível, é por reconhecer que esse cenário parece no mínimo inusitado. Se a cultura é milenar, ela acaba atraindo interesses de todos e investimentos dos mais diversos tipos. Mas, bem, a hipótese continua em aberto.
Acho importante também frisar que o fato do desenvolvimento cultural de uma região ser, hoje, menor que o de outra não significa dizer que a cultura produzida ali deva ser desprezada. O grau de desenvolvimento cultural de uma região não é algo que ela adquire a certo ponto da história e depois nunca mais deixa de ter consigo. Uma região pode ser desenvolvida hoje e deixar de ser amanhã. Se não aceitarmos essa hipótese, então estaríamos dizendo que uma cultura não pode nunca entrar em crise, o que não parece ser o caso. De que adianta ter tido há dois séculos um meio cultural rico se, hoje, nenhuma editora consegue manter as contas em dia? De que adianta ter tido uma arquitetura de importância histórica se, hoje, os prédios são depredados e derrubados?
Gosto de lembrar, nessa hora, de um comentário de Sartre sobre a relação entre o passado e o presente. A ideia é mais ou menos o seguinte: dizemos às vezes que uma pessoa ou uma sociedade têm um passado, mas claramente não da mesma maneira que temos um automóvel. Ou seja, não é possível ter o passado como uma coisa externa a nós. Pelo contrário, o passado infesta o presente, mas não tem como ser o presente por razões bastante óbvias: se é passado, já se foi; se vier a ser presente, deixa de ser passado. A resposta de Sartre, portanto, é a de que o passado está sendo no presente, no sentido de que o presente é o seu passado, ou seja, o resultado das escolhas que nos levou até aqui. Podemos continuar esse legado ou podemos romper com ele, mas em todo caso não fazemos isso com algo que esteja fora de nós; quando por exemplo rompo com o passado, estou rompendo comigo mesmo.
Se voltarmos ao exemplo de uma região de cultura milenar, isso fica claro: não é que essa região tenha lá sua cultura milenar como uma espécie de bem que ela obteve a certa altura da história. Na verdade, essa região é o seu passado, mas para que esse passado possa existir, é preciso que o seu presente também exista. Isso parece meio óbvio, mas nunca é demais deixar de frisar que o passado não existe descolado do presente. Claro que, mesmo quando as condições culturais presentes de uma região são péssimas, isso não apaga seu passado, assim como o vício em drogas de um atleta não muda os seus feitos de décadas atrás. É outra coisa óbvia: não podemos mudar o passado. Mas ninguém em sã consciência diria que essa pessoa continua sendo um grande atleta pelo fato puro e simples de que um dia foi. Ele foi um grande atleta e o simples fato de ter sido já é um marco na história do esporte, mas, como Sartre já lembrava, o passado não é o presente, e sim o presente é que é o seu passado.
Se colocamos esses elementos sobre a mesa, então me parece bem razoável reconhecer que existem regiões culturalmente mais desenvolvidas que outras. Não existem regiões que são economicamente mais desenvolvidas? Pois então. Dá pra pegar muito desse raciocínio e aplicar aqui. Quando ouvimos que todas as literaturas regionais do país, por exemplo a goiana e a baiana, são igualmente boas, isso pode no máximo significar que todas merecem em alguma medida nossa atenção, o que sem dúvidas é correto. Mas se avançarmos no sentido de realmente dizer que as duas são tão desenvolvidas quanto, então os problemas da ideia começam a surgir. É só você projetar cenários hipotéticos: embora as regiões A e B tenham culturas que merecem ser igualmente conhecidas, daí não se conclui que a cultura de A é tão desenvolvida quanto a de B. Se em A os artistas sofrem censura, como dizer que sua cultura é tão desenvolvida quanto a de B, que dá liberdade a seus artistas e condições de prosperidade?
Imagino que alguns ainda assim achem a ideia meio estranha. Logo de cara, quero voltar a frisar que o desenvolvimento cultural de uma região não significa que aquela cultura é pobre por si mesma. Vários e vários grandes artistas podem produzir por ali e algumas tradições bem particulares também podem florescer. Também quero sublinhar que o desenvolvimento cultural de uma região não é ameaçado porque muita arte ruim está sendo feita no lugar de arte boa. Como já desvinculamos o desenvolvimento cultural da produção de grandes obras, sabemos que a grande obra pode surgir até em cenários ruins. Mas há um outro motivo aqui também. O raciocínio diz:
Se a cultura é desenvolvida, então ela estimula a entrada de mais gente no meio cultural.
A entrada de mais gente no meio cultural aumenta o nível do debate e as chances de que obras primas sejam produzidas.
Logo, se a cultura é desenvolvida, então ela aumenta o nível do debate e as chances de que obras primas sejam produzidas.
Mas toda essa ideia parece nos deixar com duas pulgas atrás da orelha: não é meio estranho aplicar um raciocínio econômico a um assunto que é cheio de particularidades, como é o caso da cultura? Além disso, pense comigo: uma região pode ser próspera para seus agentes culturais, e, mesmo assim, ter uma cultura uniforme, padronizada. Será que ainda assim devemos chamá-la de culturalmente desenvolvida?
De fato, aplicar um raciocínio econômico puro e simples a questões culturais é complicado. Mas como estou falando apenas das condições de prosperidade de uma cultura, eu meio que abro espaço para que todas as particularidades da cultura sejam levadas em conta. Ou seja, não estou falando só de remuneração de autores, de lucro líquido de editoras ou de crescimento de livrarias. Abro a possibilidade para que outras variáveis sejam colocadas no caldeirão, por exemplo a possibilidade de que o poeta popular consiga vender sua arte e levar uma vida digna. Significa dizer, portanto, que não estou só interessado em saber qual é o montante de dinheiro que a cultura de uma região movimenta no ano. É mais importante saber se todos os agentes culturais estão sendo beneficiados.
Isso ajuda a responder a segunda questão. Se as condições de prosperidade devem atingir a todos os agentes do meio cultural, então não faz sentido que num meio cultural desenvolvido apenas alguns prosperem. Caso isso realmente ocorra, então o que acontece é sutilmente diferente: o meio tem um desenvolvimento econômico grande mas um desenvolvimento cultural pobre. Essa combinação é muito comum. Para que ele também se desenvolva culturalmente, ele precisa gerar oportunidades para que outros artistas, editores, livreiros, artesãos etc etc também entrem no jogo.
Quando isso acontece, é improvável que a cultura de uma região de fato fique padronizada. Mas vamos imaginar que, por algum motivo misterioso, ela fique. Ou seja, aquela região é aberta para todo tipo de cultura: se você quer escrever poemas épicos, tem como; se quer compor sonatas, tem como; se quer abrir um teatro de fantoches, tem como; e por aí vamos. Mas a cultura dali é massificada, no sentido de que os autores produzem apenas romances águas com açúcar, música eletrônica, curtas sobre a fauna local e só. Daria pra chamar essa cultura de desenvolvida?
Penso que sim. Se o que a impede de não desenvolver outras áreas da cultura é um verdadeiro mistério, talvez uma questão pura e simples de interesse dos artistas envolvidos ou, ainda, por uma letargia qualquer, então não se pode dizer que a cultura não seja desenvolvida. Contanto que ela mantenha uma capacidade potencial de abranger outras formas de cultura, então está tudo certo. Uma analogia pode ajudar. Se encontro um jardim só de girassóis, isso por si só não nos leva a dizer que sua terra é pobre. Eu preciso pensar em outras coisas: por exemplo se, caso eu decida plantar uma violeta, ela irá florescer ali ou não. Se sim, ou seja, se eu plantar uma violeta ou qualquer outra flor, ela irá crescer, então o solo é rico, mesmo que hoje só tenha girassóis plantados.