Intelectuais devem falar de política?
Há quem diga que sim, os intelectuais devem falar de política uma vez que tudo é política, no sentido básico de que ela influencia qualquer coisa na nossa vida. Já outros dirão que não: a política é um assunto mesquinho por definição e muito pior que, por exemplo, poesia ou arte. Quero defender um caminho um pouco diferente. Entendo que o intelectual deve falar de política pois esse é um dever do próprio cidadão, mas, antes mesmo de criar qualquer imperativo ou coisa do tipo, minha preocupação é afastar os argumentos contrários e ao mesmo tempo mostrar que existem boas razões para que o intelectual se engaje no debate político.
Se possível, gostaria de me concentrar mais no segundo argumento. Embora eu concorde que intelectuais devem sim se engajar no debate político, não é por achar que tudo é político e nem que a política influencia tudo na nossa vida. Uso o termo "política" me referindo única e exclusivamente ao estado moderno, até mais especificamente pensando no executivo e no legislativo. Imagino que os que defendem o segundo argumento estão de acordo com essa ideia, ou seja, a de que existem estudos, debates e assuntos artísticos que claramente não são políticos. O que eles fazem é concluir que, como as coisas são assim, então essas áreas podem servir como uma espécie de refúgio contra a política. Seria sem dúvidas um exagero querer ampliar essa conclusão demais, dizendo que toda e qualquer discussão artística é sempre um refúgio para discussões políticas, pois me parece claro que existem pelo menos algumas que são, pelo contrário, políticas. Mas podemos elaborar uma versão moderada da ideia: se pelo menos parte da discussão artística não envolver política, o que acho bastante razoável, então isso poderia servir de refúgio. Sendo assim, como a política é algo mesquinho, o melhor que você faz é se alojar no reino da arte, pois ali estará a salvo de encontrar o rosto detestável de algum candidato. Mas vamos refletir um pouco sobre a primeira premissa: será mesmo que a política é por definição mesquinha e de menor importância que, sei lá, a arte?
Se possível, gostaria de me concentrar mais no segundo argumento. Embora eu concorde que intelectuais devem sim se engajar no debate político, não é por achar que tudo é político e nem que a política influencia tudo na nossa vida. Uso o termo "política" me referindo única e exclusivamente ao estado moderno, até mais especificamente pensando no executivo e no legislativo. Imagino que os que defendem o segundo argumento estão de acordo com essa ideia, ou seja, a de que existem estudos, debates e assuntos artísticos que claramente não são políticos. O que eles fazem é concluir que, como as coisas são assim, então essas áreas podem servir como uma espécie de refúgio contra a política. Seria sem dúvidas um exagero querer ampliar essa conclusão demais, dizendo que toda e qualquer discussão artística é sempre um refúgio para discussões políticas, pois me parece claro que existem pelo menos algumas que são, pelo contrário, políticas. Mas podemos elaborar uma versão moderada da ideia: se pelo menos parte da discussão artística não envolver política, o que acho bastante razoável, então isso poderia servir de refúgio. Sendo assim, como a política é algo mesquinho, o melhor que você faz é se alojar no reino da arte, pois ali estará a salvo de encontrar o rosto detestável de algum candidato. Mas vamos refletir um pouco sobre a primeira premissa: será mesmo que a política é por definição mesquinha e de menor importância que, sei lá, a arte?
Não acho uma boa resposta. É verdade que debates estéticos costumam ser mais saudáveis que debates políticos, mas note que usei um rechonchudo "costumam". Nem sempre é assim que acontece. O debate estético muitas vezes é cheio de ironias, maledicências e panelinhas as mais detestáveis possíveis. Além disso, mesmo que as coisas de um modo geral apontem que o debate político é via de regra degradante, isso diz mais a respeito das condições do debate do que sobre a matéria debatida. Ou seja, política é um assunto como outro qualquer, que demanda muito da nossa atenção por definir rumos da nossa vida nos próximos anos.
Quando digo que os intelectuais devem falar de política, é pensando antes de mais nada no dever que todo cidadão tem de falar sobre política. O argumento aqui é até bastante simples: um desinteresse total em relação a política pode nos levar a tomar decisões sem refletir muito bem nas consequências ou então a delegar à maioria essa função, o que muito provavelmente irá afetar nossa vida num futuro próximo ou, ainda, afetar a vida de várias outras pessoas. Em nenhum desses casos a opção de simplesmente se alienar em relação à política se mostrou lá muito racional. O raciocínio é: não é nada racional tomar de qualquer jeito uma decisão importante ou mesmo decidir simplesmente não tomá-la; decisões políticas são decisões importantes; logo, tomar de qualquer jeito ou decidir não tomar uma decisão política não é racional.
De todo modo, como dito no início do texto, acredito que existem razões especialmente relevantes para que os intelectuais devam falar de política. Em primeiro lugar, eles podem dar contribuições bem embasadas dentro das suas áreas de atuação. Quem esteja a par de discussões estéticas, por exemplo, pode dar uma boa contribuição para o debate sobre investimento estatal em cultura. Em segundo lugar, uma vez que intelectuais estão acostumados a um debate de ideias, eles podem contribuir para elevar o nível do debate. Quem está a par das discussões mais recentes sobre filosofia estética já está acostumado a pesar argumentos contrários, a analisar as questões de outros ângulos, a aprofundar num conceito, a medir as consequências etc, virtudes que são mais do que necessárias no debate político.
Nada disso, claro, garante que os intelectuais de fato irão fazer isso. Infelizmente sabemos que é mais do que possível que no fim das contas eles se mostrem bastante grosseiros durante o debate político e não exibam aquelas virtudes que adoramos ver em outros textos. Mas mesmo que isso venha a acontecer, não é por um problema inerente à ideia pura e simples do intelectual participar no debate e sim por problemas de irracionalidade. O resumo da ópera é que estou dizendo ser plausível esperar que intelectuais contribuam com mais razão ao debate, mas se por acaso um ou outro fizer o contrário e não contribuir em nada, isso não muda o feitio básico do meu argumento, ou, pelo menos, não oferece nenhuma razão contrária a que não devam se engajar. Digamos apenas que isso diz mais sobre o tipo de intelectuais que eles são.
Quero agora considerar algumas objeções possíveis a essa ideia. A primeira delas diz que a política pode contaminar as outras áreas da produção intelectual. Dois filósofos que até então discutiam de maneira amistosa suas ideias sobre poesia podem, se a política se infiltrar demais nas suas vidas, começar a discordar em absolutamente tudo. É sem dúvidas um problemão, mas tão logo percebemos que o que está envolvido aí não é inerente ao debate político em si, mas, de novo, à maneira como ele foi conduzido, penso que as coisas se esclarecem. O que quero dizer com isso é que é um pressuposto básico para um debate político racional não confundir discordâncias políticas com discordâncias em outras áreas. O motivo é relativamente simples: política é uma coisa muito ampla e vai de segurança e economia até educação e cultura. A discordância sobre qualquer um desses tópicos não significa que vamos discordar em relação a todos os demais. Saber fazer essa diferença dentro da própria discussão política é tornar o debate mais racional. A questão só se acentua ainda mais quando comparamos um debate político com um debate estético, nos quais a discordância ocorrida num dos lados não necessariamente gera discordância lá no outro. Se o debate de ideias for racional, então veremos o oposto: críticos de orientação política de esquerda concordando com ideias ditas por um outro de direita, por exemplo.
Uma segunda objeção irá sugerir que intelectuais são figuras públicas que costumam ter uma aura de autoridade. Eles podem manipular as pessoas a seguirem suas visões, o que é no mínimo perigoso. Aqui é preciso separar um pouco as coisas. É esperável que intelectuais sirvam como autoridades epistêmicas, no sentido simples de que muitos de nós são levados, com boas razões, a confiar no que eles dizem. Como não temos conhecimento na área e reconhecemos a expertise daquele intelectual, então damos peso a sua opinião. Isso por si só não é uma coisa escandalosa, mas, na verdade, é algo até bastante esperável.
O problema é que essa ideia, por si só, não quer dizer que devemos confiar em intelectuais a qualquer custo. Podemos ser leigos, mas contamos com meios de medir quando um intelectual defende algo que está na contramão do que toda a comunidade científica diz. Além disso, mesmo sem conhecer com minúcias os detalhes mais técnicos da questão, podemos ver quando um intelectual apela para formas irracionais de conquistar nossa confiança. É o que temos visto na boca de muitos especialistas receitando cloroquina mesmo com tantas evidências contrárias.
De todo modo, o problema, mais uma vez, não é inerente à ideia pura e simples de um debate político. O ideal seria que o debate qualificado entre intelectuais aumentasse o nível e, por tabela, fizesse as pessoas perceberem que essas questões precisam ser discutidas de maneira racional. Se o público, pelo contrário, quiser apenas seguir um intelectual qualquer, o problema não é nem tanto da entrada do intelectual no debate político, e sim de uma necessidade irracional que o povo tem de se agarrar a qualquer autoridade que seja. Uma maneira de mostrar isso é projetar um cenário possível: o debate político realizado por intelectuais é saudável, mas o público, por alguma razão, busca polarizar a qualquer custo. As estratégias que precisaríamos adotar para desmanchar um mal entendido assim são outras, mas certamente não é por causa da presença em si de intelectuais que as pessoas estão polarizadas.
Por fim, quero esclarecer algumas coisas. Se o intelectual não entrar no debate político, ele não necessariamente está sendo um traidor, um covarde ou coisa do tipo. Existem bons motivos para não entrar num debate político. Considerando que o ambiente costuma ser muito desgastante, não só podemos como devemos saber o momento certo de nos afastar desse debate para o bem de nossa própria sanidade mental. Além disso, existem contextos nos quais o intelectual é ignorante em relação à questão política debatida, e, nesses casos, a opção mais racional é realmente fechar a matraca. Se o Congresso está discutindo a aprovação de uma nova alíquota de um imposto rural, não faz sentido exigir que o intelectual se posicione, ainda que a matéria afete nossa vida por exemplo aumentando o preço da abobrinha.
Mas veja que essa situação é bem diferente de uma disputa presidencial. Na discussão sobre a alíquota, a matéria é muito restrita e afeta nossa vida só indiretamente. Numa eleição para presidente, pelo contrário, o que está em jogo afeta nossa vida de maneira muito direta e abrangente. Quase todas as áreas da esfera política, aliás, serão afetadas. Se mesmo nesse caso o intelectual opta por não se engajar no debate político, ele estará deixando de cumprir um dever cívico e, mais do que isso, um dever da própria vida intelectual. Quero fechar propondo o seguinte raciocínio:
Se um intelectual se engaja num debate político e tenta torná-lo mais racional, então ele contribui com um ambiente mais racional.
Se um intelectual contribui com um ambiente mais racional, então ele cumpre o que se espera de uma vida intelectual.
Portanto, se um intelectual se engaja num debate político e tenta torná-lo mais racional, então ele cumpre o que se espera de uma vida intelectual.