Fúria e tradição.
Não é lá muito comum publicarem um livro de poemas abertamente satíricos. Os poetas até costumam escrever de vez em quando um ou outro verso mais ácido, mas isso quase sempre entre trabalhos mais, digamos, sérios. Quando acontece de alguém ter a iniciativa de escrever uma sátira, ela geralmente chega envelopada pelas credenciais de um dos lados do tiroteio ideológico. Em certo sentido, é razoável que a sátira tenda a sair nessas circunstâncias, já que o impulso político é e continuará sendo um dos principais motores da sátira. Mas não custa lembrar que nem toda sátira é por definição política: ela pode zombar apenas por zombar algum figurão do pedaço que tenha uns traços bem risíveis. Além disso, há poetas satíricos, mais corajosos, que parecem pegar um pouco dos dois caminhos e satirizar a tudo e a todos, da esquerda à direita. Brasil ópera-bufa, de Luís Fernando Blaschke (ed. Patuá, 2021, aqui), é um desses.
Todos os poemas do livro são metrificados e rimados com muita habilidade. José Francisco Botelho fala do virtuosismo técnico do autor fazendo "acrobacias sobre si mesmo", Emmanuel Santiago cita um "domínio técnico já bastante maduro da versificação tradicional e das formas fixas", e Leonardo Antunes o compara a um Aristófanes de nossos tempos: "alguém capaz de feitos poéticos que ombreiam ou superam os dos grandes mestres de seu tempo, mas que prefere fazer graça do mundo". Estou inteiramente de acordo com essas opiniões. Você encontra no livro algumas das rimas mais engraçadas dos últimos tempos, coisas como "Facebook" com "batuque, muque e truque" ou "esfíncter" com "Sara Winter". O resultado é que o emprego das formas fixas tradicionais, além de demonstrar muito domínio por parte do autor, revela também uma estratégia inteligente para arrancar nosso riso.
Pense assim: uma coisa é você fazer uma piada do jeito que bem entender, mas outra é você fazer uma piada dentro da camisa de força da métrica. Quando lemos um poema com todos os rigores da fôrma, criamos expectativa à medida que os versos avançam, no sentido de que esperamos que os versos tenham esse ou aquele ritmo e rimem assim ou assado. Mas quando o poema é satírico e cômico, ele pode brincar com isso de maneiras muito criativas, tirando por exemplo uma cartada inesperada da cartola. É o que acontece no poema abaixo, "Fúria e tradição". É um soneto inglês perfeito, com todas as rimas e sílabas poéticas no lugar. O tipo de efeito cômico que tenho em mente são rimas como entre "conspurca" e "burca" ou "biquíni" e "elimine", ricas do ponto de vista dos manuais de versificação mais tradicionais (substantivo e verbo, classes gramaticais diferentes), mas também ricas por serem surpreendentes e criativas.
Verão. No litoral, cada cidade
Fervilha; a multidão que lá assoma,
Sempre avessa à moral e à castidade,
Faz dela em pouco tempo uma Sodoma.
E essa gentalha vil que lá conspurca
Com sua pública nudez lasciva?
Melhor seria se vestisse burca.
Melhor ainda se nem fosse viva...
Pois sim! Morrer a turba em plena areia,
Tragada para o mar por um tsunami;
Ou vir do céu a chuva que incendeia.
Purgando dessa praga o enorme enxame!
Ó vós que ides à praia de biquíni,
Temei! Que eu rezo a Deus vos elimine.
O livro cobre um período de mais ou menos 5 anos da história política recente, começando com o impeachment de Dilma Roussef e terminando com a gestão criminosa de Bolsonaro durante a pandemia. O soneto está localizado nessa segunda parte da ópera-bufa e imita o que seria a cabeça de um conservador carola indo à praia. A partir desse esboço simples, quero refletir sobre algumas questões que o soneto nos coloca.
De imediato, vale a pena refletir sobre quem ele está imitando e como está imitando. Proponho essa reflexão pois, embora seja bastante óbvio que o soneto ridicularize um público reacionário e piegas, que acha um absurdo ver as outras pessoas de biquíni (?), por outro lado não me parece que ele esteja apenas imitando essas pessoas. Minha desconfiança tem um porquê bem simples: o soneto é bem escrito, e, como eu disse, tem todas as rimas e sílabas poéticas no lugar. Mas não só. Um verso como "Purgando dessa praga o enorme enxame!" tem um ritmo iâmbico perfeito, uma sílaba átona seguida de outra tônica, o que dá um ritmo de leitura muito gostoso.
A constatação é simples: um reacionário não conseguiria escrever um soneto desses. Mais do que isso: ele sonha em conseguir escrever um poema assim, rimando com "conspurca" ou então apagando de forma elegante a conjunção no verso final, "Que eu rezo a Deus [que] vos elimine". É como se o poeta estivesse emprestando o melhor da sua técnica para realizar, pelo menos do ponto de vista formal, os desejos do público conservador. Então a pergunta que fica é: como isso pode continuar sendo sátira? Vamos até deixar as coisas mais interessantes. Supondo que você lesse o poema sem saber que está num livro de poemas satíricos. Você também não sabe quem é o autor, qual seu posicionamento político nem nada disso. É possível dizer com exatidão que o poema é satírico?
Nessas circunstâncias, é claro que não daria. O que faz um poema ser ou não satírico é a intenção do artista. Se tiramos isso tudo da jogada, o que resta é um poema que deve ser descrito em outros termos, muito reveladores, aliás, para a reflexão que estou propondo. Ou seja, nós constataríamos que o poema está escrito numa linguagem elevada, mas falando de uma situação que parece ser muito bobinha e trivial. E estou inteiramente de acordo com essa conclusão; é exatamente aqui que quero chegar.
A sátira em Brasil ópera-bufa via de regra não ridiculariza a linguagem do outro. Muitas vezes há, pelo contrário, um verniz bastante sério na coisa, no sentido de que a linguagem do poema dá a entender que seu assunto merece toda atenção. Se você se concentrar apenas na primeira estrofe do soneto, pode achar que o poeta está se preparando para falar de alguma coisa realmente preocupante. Mas, à medida que o poema avança, vamos percebendo que não há nada de tão alarmante assim. É quando a sátira começa a mostrar as suas garras. O poeta não precisa retratar as pessoas satirizadas como se fossem animais que mal dão conta de unir lé com cré, mas apenas dar um pouquinho de corda e deixar que elas falem sozinhas. Como as ideias são naturalmente ridículas e irracionais, o toque da sátira muitas vezes é sutil, algo como permitir que o discurso seja transposto para o plano poético com todas as pompas para que, justamente por isso, ele entre em colapso. Apenas a título de comparação, tome um outro exemplo, "A queda de uma estrela", uma sátira agora à esquerda petista:
Tétrico é o futuro agora
Co'a nossa Estrela caída.
Hoje o sol trouxe uma aurora
Amarga e morna e sem vida.
Um primeiro de setembro
Que antever jamais eu pude:
Único na história, eu lembro,
E nem me mandem que a estude!
Resta ainda uma esperança?
Indago, e não vem socorro.
Devo adeus dar à criança
Atrás da qual há um cachorro?
O poema todo se desenrola num estilo pra lá de trágico, a começar pelo próprio adjetivo "tétrico" logo de cara. Esse clima de desolação completo, como se estivesse falando de uma coisa terrível, é de imediato contrastado com um trecho muito famoso de um discurso da ex-presidenta. Mas veja que até chegar lá, o poema funciona bem e é até bastante fiel à ideia de quem acha que o impeachment foi um golpe que pôs fim à democracia brasileira. O que quero que você perceba é que, embora o final seja o momento em que a ficha finalmente cai e nós percebemos o quão patético é aquele quadro, isso já estava sendo armado ao longo do poema todo.
Por isso acredito que a sátira em Brasil ópera-bufa nos dá uma lição importante. Não nos diz para abandonar por inteiro as ideias do outro lado da trincheira. Na verdade, sugeri que os poemas tendem a fazer o contrário ao levar bem a sério as ideias políticas do seu alvo. Penso que o aguilhão da sátira está justamente aqui: tão logo a ficha cai e nós enfim percebemos o quão ridículo era tudo aquilo, podemos olhar para trás e ver que muitas outras coisas antes também eram ridículas. Infelizmente é o que acontece quando tomamos um tempo para nos envolver de maneira irracional com a política: levamos a sério ideias que no fundo não mereciam tanto crédito assim e que, se tivéssemos olhado direitinho, teriam se mostrado idiotas desde o primeiro momento.