Por que considero Leonardo Froés um grande poeta.
Quero expor minhas razões citando um poema chamado "Se me quiser como eu sou, estou às ordens", incluso no seu livro "Trilha", acho que um dos mais recentes:
1. Artesão do possível obreiro
2. numa colmeia de apressados
3. fazedores lento ledor de enigmas
4. e iridescências móveis
5. que atravessam o céu paciente
6. consumidor de anúncios boletins mensagens
7. indecifráveis do longe vítima
8. de mutações sentimentais
9. que desarrumam o mundo
10. e o recriam sócio de empreitadas
11. frustradas porém sentidas
12. como o transcurso da tarde
13. que se enrodilha em nuvens e langor doutor
14. em absurdas ciências
15. que, ao nada explicar, conduzem
16. à alegria do escuro ― ao urro
17. da aceitação animal.
O que me encanta nesse poema, e confesso que em muitos outros do poeta, é sua capacidade extraordinária de organizar as palavras. Nos últimos tempos, a definição mais funcional para mim sobre o que é poesia tem se mostrado ser aquela do romântico inglês Samuel Taylor Coleridge, para quem poesia são as melhores palavras na melhor posição.
De fato, a ordem das palavras no poema é um dos assuntos que mais me encanta. Costumamos prestar muita atenção no caso de poemas que embaralham a sintaxe (coisa que, desde os antigos, damos o nome de "hipérbato" ou "sínquise"), mas muitas vezes até um poema em versos livres e com uma sintaxe pedestre pode ser organizado de maneira admirável. Isso pois a ordem das palavras num poema não é digna de nota somente em contraste com a ordem comum, como se o poema só pudesse exibir uma ordem de palavras reconhecível quando ele de algum modo fugisse do que esperamos encontrar no dia a dia.
Na verdade, minha hipótese, que cheguei a defender num vídeo muitíssimo agradável com o grande Leonardo Antunes, é a de que todo poema cria um sistema de ênfases específico e que, em última instância, ele cria uma ordem preferencial das palavras, de modo que o tipo de desvio e ênfase semântica é somente em parte o que se estabelece com o discurso corriqueiro, pois há ainda que se averiguar de que modo o poema discrepa de outros textos do mesmo estilo, do mesmo autor, do mesmo livro e até mesmo dentro de um único poema.
O poema todo está em versos livres sem pontuação nenhuma. Nós precisamos aplicar pontuações imaginárias e ênfases que nos permitam separar orações e sintagmas no seu interior. Veja:
Artesão do possível obreiro
numa colmeia de apressados
fazedores
Temos aqui duas orações: "artesão do possível" e a segunda iniciada por "obreiro / numa colmeia de apressados / fazedores". Esta será uma tendência geral do poema: apresentar epítetos que caracterizem o poeta, mas de tal modo que um epíteto comece na parte final de um verso e se estenda nos demais até vir a ser quebrado novamente. Assim, depois destes dois epítetos, temos:
[fazedores] lento ledor de enigmas
e iridescências móveis
que atravessam o céu paciente
consumidor de anúncios boletins mensagens
que atravessam o céu paciente
consumidor de anúncios boletins mensagens
Novamente um epíteto que se inicia e que se desdobra numa construção mais complexa. Se nos epítetos anteriores tínhamos sintagmas nominais de extensão pequenina e depois maior, agora temos um epíteto que se inicia com "lento ledor" e conta inclusive com uma oração relativa no seu bojo, "que atravessam o céu". Depois é que começamos um novo epíteto com "paciente / consumidor".
Até então, de um modo geral, penso que é relativamente simples distinguir os limites de cada epíteto. Em "Artesão do possível obreiro", por exemplo, a ordem do português não suporta que depois de um substantivo e um sintagma preposicional venha outro substantivo. Por isso nós intuímos que um outro epíteto começou. No verso "fazedores lento ledor de enigmas", é parecido: depois de "fazedores", um plural, nós colocamos uma pausa implícita pois não faz sentido que de algum modo se encaixe ao singular "lento ledor".
Mas o problema já começa em "que atravessam o céu paciente / consumidor". A hipótese que sugeri antes é a de que cada epíteto começa geralmente no final de um verso e se estende nos demais. Assim, o adjetivo "paciente" tende a iniciar um novo epíteto, no que qualifica "consumidor": é um consumidor paciente. Faz todo sentido dentro da lógica do poema, de apresentar uma visão serena e pacata do poeta - que por si só é uma pessoa serena e pacata.
O problema é que o poeta deixa o adjetivo ambíguo ao deslocá-lo para antes do substantivo. A tendência geral do poema é enquadrá-lo como qualificador do substantivo "consumidor", visto que, na leitura que proponho, um epíteto tende a começar no final de um verso e depois seguir nos restantes, e não começar quando um novo verso começa. Todavia, "paciente" pode muito bem ser adjetivo qualificando "céu": "que atravessam [o céu paciente] / [consumidor]", em vez de "que atravessam [o céu] [paciente / consumidor]".
Vejamos agora o que acontece nos versos 12 a 14:
como o transcurso da tarde
que se enrodilha em nuvens e langor doutor
em absurdas ciências
que se enrodilha em nuvens e langor doutor
em absurdas ciências
O epíteto anterior, que começa com "consumidor", se encerra no verso 13. O finalzinho dele inicia um novo, que começa agora com "doutor / em absurdas ciências". Não é propriamente difícil perceber isso, pois depois de "langor" não faz sentido que "doutor" continue espichando a imagem.
Todavia, a rima interna "langor doutor" é forte, e cria uma conexão sonora poderosa entre essas palavras, poderosa a ponto de aos poucos ir se convertendo em conexão semântica. Sobre isso, recordo que um princípio básico da poesia, muito bem estudado por Jakobson, é o de que as ligações paradigmáticas entre as palavras se projetam sobre as ligações sintagmáticas, o que implica dizer que semelhanças de ordem metafórica, sonora, gráfica etc etc, estão quase sempre nos dizendo alguma coisa. No trecho, penso que há essencialmente um contraste entre "langor" e "doutor", o que faz a ordem dessas palavras no texto ser muito expressiva, ainda mais porque a carga bacharelesca por trás de "doutor" é de imediato anulada com "em absurdas ciências".
Um último comentário:
em absurdas ciências
que, ao nada explicar, conduzem
à alegria do escuro ― ao urro
da aceitação animal.
que, ao nada explicar, conduzem
à alegria do escuro ― ao urro
da aceitação animal.
O poema não tem pontuações. Pelo menos não tinha até aqui, momento crucial em que contamos com uma oração reduzida de infinitivo isolada por vírgulas e um travessão. Tenho algumas hipóteses para isso. A primeira é que os epítetos vão ficando cada vez mais complexos ao longo do texto:
[Artesão do possível] [obreiro
numa colmeia de apressados
fazedores] [lento ledor de enigmas
e iridescências móveis
que atravessam o céu] [paciente
consumidor de anúncios boletins mensagens
indecifráveis do longe] [vítima
de mutações sentimentais
que desarrumam o mundo
e o recriam sócio de empreitadas
frustradas porém sentidas
como o transcurso da tarde
que se enrodilha em nuvens e langor] [doutor
em absurdas ciências
que, ao nada explicar, conduzem
à alegria do escuro ― ao urro
da aceitação animal.]
numa colmeia de apressados
fazedores] [lento ledor de enigmas
e iridescências móveis
que atravessam o céu] [paciente
consumidor de anúncios boletins mensagens
indecifráveis do longe] [vítima
de mutações sentimentais
que desarrumam o mundo
e o recriam sócio de empreitadas
frustradas porém sentidas
como o transcurso da tarde
que se enrodilha em nuvens e langor] [doutor
em absurdas ciências
que, ao nada explicar, conduzem
à alegria do escuro ― ao urro
da aceitação animal.]
O motivo para considerar esses epítetos cada vez mais complexo é triplo: primeiro por causa do tamanho, segundo pois ele começam a incluir em seu interior orações subordinadas (o quinto, por exemplo, que começa com "vítima / de mutações sentimentais", possui em seu bojo orações relativas coordenadas, orações reduzidas de particípio, estruturas comparativas e uma última oração relativa no degrau mais baixo da cadeia sintática), e terceiro pois eles vão espichando não só o núcleo do epíteto com outros termos correlatos: assim, em "lento ledor de enigmas", a oração relativa "que atravessam o céu" descreve não o núcleo "lento ledor" e sim "iridescências móveis", complemento nominal de "lento ledor"; noutras palavras, os epítetos começam falando do poeta, mas logo passam a falar também do ambiente. E isso é mais do que significativo em sua poesia.
Sendo assim, se os epítetos ficam cada vez mais complexos, é razoável que chegue um momento em que eles desenvolvam a pontuação. Propondo uma chave de leitura ousada, eu diria que isso sugere que o poeta dá indícios de controlar e racionalizar a linguagem, dando-lhe uma ordem mais próxima da sintaxe normativa do português, o que obviamente contrasta com o apelo do fim do texto: a aceitação animal.
Uma outra explicação, mais simples, é que eles se valem da ordem de ênfases interna do poema para apresentar uma outra. Ou seja: o poema discrepa, a princípio, da ordem corriqueira das palavras pois ele fere alguns dos nossos instintos como falantes, como o de pontuar um texto ou de iniciar novos epítetos com novos versos. No entanto, logo o poema revela que este é seu sistema de ênfases internos, e prova disso é que quando ele enfim começa a pontuar, ele apresenta um elemento aparentemente normal que serve, ele próprio, de ênfase diferenciada no corpo do texto.
É realmente extraordinário, coisa que, penso, só um grande poeta, dono do seu ofício, consegue fazer. Viva Leonardo!