Sobre escrever, de Ricardo Aleixo.
SOBRE ESCREVER
Ricardo Aleixo
1. Escrever porque esta é,
sem sombra de dúvida,
a melhor hora
para escrever.
2. Não escrever porque esta,
verdade seja dita,
é a melhor época
para não escrever.
3. Escrever porque esta,
convenhamos,
não é a melhor ocasião
para escrever.
4. Não escrever porque este,
antes e acima de tudo,
é o melhor turno
para escrever.
5. Escrever porque este,
só um cego não vê,
é o melhor tempo
para não escrever.
6. Não escrever porque este,
apesar dos pesares,
é o melhor mês
para escrever.
7. Escrever porque esta,
até segunda ordem,
não é a melhor noite
para não escrever.
8. Não escrever porque este,
em última instância,
não é o melhor século
para não escrever.
> 8 estrofes, sendo que o poeta alterna entre uma razão para escrever e outra para não escrever. Todo primeiro verso, com exceção do de abertura do poema, encerra com o demonstrativo "esta". No verso 2 o poeta modula a razão que será dada e, no verso 3, ele sempre repete o sintagma que envolve o adjetivo "melhor" qualificando um substantivo de sentido grosso modo temporal (hora, época, noite etc). O verso 4 é uma repetição de parte do primeiro verso, constituindo uma espécie de estrutura em anel.
> Essa estrutura aponta que os elementos centrais de construção de sentido são: 1) um enquadramento correto principalmente das negações; 2) o tipo de modulação realizada no segundo verso; e 3) os contrastes realizados.
> 1. A estrofe é enfática. A modulação do verso 2 é bem forte.
> 2. Penso que as estrofes negativas oferecem, num primeiro momento, um desafio maior para a leitura. Podemos simplificar a proposição da seguinte forma: "esta é a melhor época para não escrever". Significa dizer que tudo que pode concorrer para que alguém não escreva, esta época oferece; logo, ela é a pior época para escrever. É isso o que justifica o "não escrever" da abertura.
> 3. Uma resposta para o que foi dito antes. Se esta não é a melhor hora para escrever, então justamente por isso a escrita se faz necessária. A estrofe, portanto, captura alguma coisa do elemento negativo da estrofe anterior e o transforma num dado positivo de resistência. O tom de resposta me parece claro no "convenhamos".
> 4. Se é o melhor turno, isso pode deixar as coisas fáceis - e por isso é preciso não escrever. A modulação do verso 2 volta a ser categórica: "antes e acima de tudo".
> 5. Acho essa uma estrofe perigosa. A base da resposta dada é o mesmo que lemos na estrofe 3: é preciso resistir. Vale a pena compará-la com a estrofe 2. Esta época é a melhor para não escrever - ela oferece, digamos, todos os entraves. Por isso, não vamos escrever. Mas, como diz a estrofe 5, se esse é o melhor tempo para não escrever, então por isso mesmo é preciso escrever. Mas e quanto à modulação do verso 2? É difícil chegar a uma resposta. Ela opera sobre a afirmação de que esta é a melhor época para não escrever ou opera sobre o que veio antes, isto é, que, justamente por ser a melhor para não escrever, é que é preciso escrever? Na primeira opção, a pessoa seria cega pois não veria, digamos, a podridão das coisas; na segunda opção, todavia, seria cega por não ver na escrita um ato de resistência. Muito provavelmente as duas opções atuam juntas aqui.
> 6. Basicamente o mesmo que 4, com diferença na modulação. "Apesar dos pesares" implica dizer que, mesmo se considerarmos a podridão da época, apontada na estrofe anterior, ainda assim é o melhor mês.
> 7. Novamente um problema de negativas, parecido com o da estrofe 2. Vamos simplificar: "esta não é a melhor noite". Ou seja, é uma noite ruim. Vamos prosseguir, mas agora com a substituição: "esta é uma noite ruim para não escrever". Ou seja, não escrever seria uma opção ruim para esta noite, já que ela é, por si só, uma noite ruim. Justamente por isso é preciso escrever. Se fosse uma noite boa, a afirmação seria outra... Ou, como diz a modulação do verso 2, "até segunda ordem". É um estágio que depende, digamos, da edição de uma normativa contrária. Um estágio provisório, por assim dizer.
> 8. O poeta dá a mesma razão da estrofe 7, mas sob a conclusão de que não se deve escrever. A diferença fundamental está na modulação do verso 2. Se na estrofe anterior falávamos de "até segunda ordem", agora falamos de "em última instância". Um apontava para um estado de coisas provisório, que poderia ser revogado ou modificado a depender das ações empenhadas; o outro, no entanto, fala de um limite, de como, no fim, não se deve escrever tendo em vistas esses tempos.
> É possível imaginar uma nova estrofe que prossiga a cadeia? Penso que o poema nos deixa com essa opinião. Estivemos acostumados a esperar que uma estrofe com afirmação positiva ("Escrever [sim] porque...") surja desmontando as afirmações negativas do que se disse até então. Se os tempos são ruins, a escrita é uma forma de resistência; assim, mesmo que em última instância não se deva escrever, este parece mesmo assim ser um motor para a escrita.