Regnum irae, de Fabiano Calixto.
REGNUM IRAE
Fabiano Calixto
1. faz uma lua sanguínea lá fora
2. o vento morno lambe a figueira
3. desaba um figo e engole o agora
4. último fio da imensa noite inteira
5. o sol, embriagado de tanto outrora,
6. chega vomitando pelas calçadas
7. os primeiros pedaços da aurora
> "Regnum irae", do latim: reino da ira. Alusão a uma música do Sepultura. O poeta descreve um cenário insólito em que os elementos naturais se deslocam de sua esfera semântica tradicional e adotam comportamentos humanos ou no mínimo urbanizados.
> Os versos giram entre as 9 e 11 sílabas poéticas. Isso dá um ritmo cambiante para o poema, mas minimamente reconhecível graças também às rimas e a macios sonoros como a sequência de velares no verso 3, "figo e engole o agora".
> 1. Podemos até pensar que o adjetivo "sanguínea" queira dizer que a lua tem cor de sangue, o que é até possível em alguns cenários. Isso ambientaria bem o poema. Mas, considerando que os demais elementos naturais do poema serão deslocados de suas esferas tradicionais, é mais do que razoável crer que "sanguínea" de algum jeito queira dizer também que a lua se associa ao sangue, e, nisso, seria como que violenta ou macabra.
> 2. O adjetivo "morno" se enquadra bem ao que esperamos de um vento que sopre numa figueira. Todavia, a escolha do verbo "lamber" transforma o vento numa entidade humanizada. Lembra os ventos na mitologia greco-romana, que, apesar de serem forças da natureza extremamente destrutivas, tinham nomes próprios e eram até certo ponto também humanizados.
> 3. A queda do figo continua o movimento básico do poema de estabelecer pelo menos um mínimo de acontecimentos naturais no poema. Isso permite que uma certa ambientação ocorra, ao mesmo tempo que serve de base para que o deslocamento do texto ocorra. No caso, o verbo "engolir", que me parece claramente estar ligado ao sujeito "vento" no verso anterior, continua a humanização do vento, que primeiro degusta e depois deglute, por assim dizer. A aliteração em G reforça a imagem de que algo está sendo engolido. A imagem de se engolir o agora, isto é, um substantivo abstrato, aprofunda a esfera onírica do texto. É um mundo de cabeça pra baixo.
> 4. Acho bem provável que esse último fio tenha sido o figo que acabou de cair. Uma vez que o sol aparece já no verso seguinte, é como se a queda do figo tivesse dado fim à noite. Um elemento formal do texto pode ajudar nesse sentido: a diferença entre as palavras "figo" e "fio" é simplesmente um G, o elemento realçado no fim do verso anterior. Se imaginarmos que não só o agora foi engolido, mas o G também, podemos em certo sentido entender porque agora é só um fio e não mais um figo.
> 5. A embriaguez do sol o humaniza de maneira bem grotesca. Mais uma vez, o elemento abstrato "outrora" tratado como algo concreto acrescenta alguma coisa de insólito e universal para a cena.
> 6. "Vomitando", novamente a tal humanização grotesca.
> 7. A descrição do raiar do dia fecha de uma forma bem impactante esse quadro estranho, para dizer o mínimo. O que é significativo nele é que os elementos naturais e mesmo conceitos abstratos muito amplos como passado e presente são trazidos para a esfera mais imediata, adquirindo caracteres grotescos. Um retrato muito impactante.