Reza, de João Filho.
João Filho
1. Esquece que és fracasso e turbação,
2. balança desmedida que se preza
3. e menospreza; apruma o coração
4. e reza, reza, reza, reza, reza.
5. Esquece que és cansaço e escuridão,
6. que a hora mais volátil também pesa.
7. Faze da ladainha o teu arpão
8. e reza, reza, reza, reza, reza.
9. Dentro do carro, à noite, sem cenário,
10. desertos ou dilúvios, calmaria,
11. a cada dia conta o teu rosário.
12. O corpo, a voz, o rosto e a volição
13. redunde para a longa travessia -
14. faze da tua vida uma oração.
> Primeiro de tudo vale a pena notar direitinho a conjugação verbal do imperativo de acordo com a norma padrão. Dá um recorte clássico ao poema e aproveita bem o que esse jeito de conjugar um verbo oferece. Nem sempre o ganho é muito claro. Rezar, por exemplo, não muda muito na segunda ou terceira pessoa do imperativo: reza tu, reze ele. O mesmo com esquecer: esquece tu, esqueça ele. Com o verbo fazer, porém, a diferença é notável: faze tu, faça ele. O uso da forma de segunda pessoa, incomum para o imperativo do verbo no português brasileiro, extrai melhor o som da consoante Z e a conecta ao imperativo de rezar.
> 1. Uma bela aliteração em S. "Turbação", isto é, tumulto, confusão, caos.
> 2. "Balança" contrasta bem com "turbação" no final do primeiro verso. E até serviria pra botar ordem na casa, não fosse o adjetivo "desmedida", que ressalta de maneira especial o desajuste das coisas: des-medida.
> 3. No final do verso 2, a expressão "se preza" nos dá a entender que a balança, apesar de tudo, é prezada de algum jeito. Mas o início do verso 3 desmonta essa expectativa de maneira admirável: ela se preza E menospreza. Mais uma vez, a ênfase está no desajuste das coisas: preza x menos-preza.
> 3. Ainda nesse verso, observar direitinho que "aprumar-se" é o mesmo que se endireitar. O poeta só não usou esse segundo por causa da métrica, mas a ideia é: pegar toda a desordem e colocar em linha reta. Dar um norte pra vida. Qual seria?
> 4. Rezar. A repetição obsessiva da palavra mostra que é a única solução que importa e que é o único caminho a ser seguido. Lembra também uma espécie de ladainha religiosa.
> 5. Novamente a aliteração em S. A estrutura do verso é a mesma do 1. Isso parece repetir a estrutura da reza, como se ela se organizasse em blocos ou contas de um rosário textual.
> 6. "Volátil", isto é, fugaz, passageira, inconsistente. O advérbio também ressalta que, apesar dessa leveza da hora, ela também tem peso e implicações na vida da pessoa.
> 7. O uso do imperativo regular faze prepara terreno para a consoante Z no verso seguinte. "Ladainha" é a palavra certa para o tipo de sugestão que fica na nossa cabeça quando relermos o próximo verso. Por fim, "arpão" é uma das melhores rimas do texto, já que se conecta à caça marinha de maneira muito enfática. O arpão não é uma ferramenta de pesca qualquer. É usada em pescas de escala maior e em aventuras. Podemos contrastar com a leveza da "hora mais volátil" no verso anterior. Agora as coisas ficam mais sérias e o indivíduo precisa se lançar nos abismos da alma. Não esquecer, ainda, que todo o imaginário da pesca desempenha um papel muito importante na teologia cristã.
> 9-10. A sucessão de cenários em que a reza deve ocorrer é interessante. Não acho que apresentem conexão nenhuma e nem mesmo muita relação entre si. Isso é bem visto numa passagem como "desertos ou dilúvios", duas paisagens de forte conotação bíblica.
> 11. Talvez cada um dos imperativos reza possa ser lido como uma parte do rosário. É possível. De todo modo, a ideia por trás dos versos é que em todos os cenários possíveis, o rosário deve ser contado. Não deixa de ser significativo notar que o rosário, por precisar ser contado, é um elemento de ordem que se contrapõe a toda a desordem das estrofes anteriores.
> 12. Novamente uma enumeração apertada de elementos. "Volição", no final, vem do latim "volo", querer. É um termo muito usado na filosofia. De seu composto "voluntas" veio vontade em português.
> 13. Algumas publicações digitam de maneira errada "redunda". "Refunde" significa o mesmo que aprofundar: ou seja, aprofundar todas as coisas do verso 12 para se preparar para a travessia que vem a seguir. Mas penso que aqui existe uma sugestão muito forte de que refundar é o mesmo que reinventar e fundar novamente: re-fundar. A jornada muitas vezes precisa disso.
> 14. Esse verso é resultado lógico de se você tomar o verbo refundar como sinônimo de reinventar. Afinal de contas se você reinventa o corpo e o desejo, por exemplo, está transformando a sua vida numa oração. De todo modo, a oração é um momento complexo que envolve não apenas um pedido a Deus. Isso é o de menos. A verdadeira oração é um ato de reconhecimento, contrição, humilhação e só depois elevação. Quando o poeta pede para que se esqueça que somos fracasso, por exemplo, não é porque não sejamos. Sim, nós somos - mas podemos ser mais no amor de Cristo. Fazer da vida uma oração, portanto, é reconhecer toda a complexidade que o ato da oração, em sua plenitude, envolve, e, principalmente, colocar sua vida nas mãos de um Ser muito maior.