Et foras ploravit, de Francisco Botelho.

ET FORAS PLORAVIT
José Francisco Botelho.

I.

1. "Três vezes esta noite negarás
Meu nome", disse a voz suave e terrível,
E Pedro respondeu: "É impossível."
(Porém, naquele instante, Caifás,

2. Hirsuto, à luz da tocha, ergueu a mão.)
Terrível, suave, a Voz tornou: "Amigo,
Antes que o galo cante, isto eu te digo,
Três vezes ao meu nome dirás não."

3. Mais tarde, em meio ao horto cor de lua,
Emboscou-os a armada companhia.
Querendo comprovar sua valentia,
Pedro investiu, brandindo a espada nua.

4. Parece que era bom espadachim,
Pois, dum golpe, uma orelha foi cortada.
Mas a voz o deteve: "Baixa a espada.
Tens muito o que fazer, mas não assim."

5. Prosseguiu a coorte em meio às trevas,
Na senda que a Jerusalém descia.
Mas Pedro foi seguindo a companhia,
Guiado pelo claro das lanternas.

6. O grupo que avançava, e o homem sujo
De sangue e suor, a pé na trilha escura,
Eram parte da noite convoluta
E estranha que cobria meio mundo.

7. Porém a parte dominava o todo,
Como a pedra num lago arremessada
Que concentra os anéis n'água encrespada,
Ou a brasa central que agita o fogo.

8. Feito uma brasa obscura, a noite ardia;
Girava a água do Tempo, obscuramente;
As horas surdas eram sua torrente,
Seu torvelinho, a véspera do Dia.

9. Mas sobre a inquietude perdurava
Um enorme silêncio, quase inteiro.
Somente no Sinédrio se escutava
Grito e murmúrio. Os servos, no terreiro, 

10. Acenderam um fogo. Estava frio.
Pedro seguira o bando até o portão;
Sentou-se junto ao fogo. E ali, no chão,
Deixou pender o olhar fundo e vazio. 

11. Vagava numa estranha distração
Desde que seu rabino fora preso:
Difusa mescla de leveza e peso,
Sombria luz ou clara escuridão. 

12. Na bainha, dormia a espada vã,
E sua mente escapava pelas margens,
Derramando-se além dos arrabaldes,
Às vastidões, à espera da manhã. 

13. Nos ermos, o chacal sentia fome,
E o mocho tinha os olhos muito abertos.
Arquejavam florestas e desertos
Nessa noite em que o mundo estava insone.

14. E já sentia Pedro não ser Pedro,
Apenas mais um náufrago noturno.
E qual de nós, de espírito soturno,
Já não sentiu ser outro, embora o mesmo?

15. E assim Pedro fitava as frágeis tramas
De faíscas e sombra, absortamente,
Quando uma serva, ao lado, de repente,
Inclinou-se e o fitou à luz das chamas.

16. "Eu te conheço. Andavas anteontem
No templo, com aquele galileu".
Pedro, emerso do sono, estremeceu
E disse: "Eu não conheço aquele homem."

17. Do outro lado do fogo, um almocreve
Ouvindo-o, riu e disse: "Companheiro,
Teu sotaque te entrega por inteiro,
Pois todo galileu arrasta o esse."

18. Pedro ergueu-se. A fogueira crepitava.
"Não sei do que me fala esse lacaio".
Dito isso, afastou-se pelo pátio,
Vendo as sombras minguar. E o céu clareava. 

19. Pedro espiou, à porta do salão:
Lá dentro, um vulto, seminu, de costas,
Sob insultos e cuspes, as mãos postas
Em dois grilhões, olhava para o chão. 

20. Alguém esbarra em Pedro, bruscamente,
E o fita bem no rosto. É um dos guardas.
"Eu te conheço. Ergueste a tua espada
No horto, e parecias mais valente." 

21. "Não era eu", diz Pedro, "Não sei nada..."
Mas sua voz se corta: um veio claro
Percorre o céu cinzento, e ao longe o claro
Cantar do galo fere a madrugada. 

22. Um galo só, distante talismã
De um arrabalde estranho, estranho e longe,
Cantando o sol antes que o sol desponte:
O invisível senhor da antemanhã. 

23. Acorrentado e nu, Jesus voltou
O rosto para Pedro. E a luz se erguia.
Pedro fugiu, fugiu na aurora fria,
Correu à viela escura e lá chorou. 

II.

1. Qual deles era Pedro? O que cortou
2. O rosto do inimigo no jardim,
3. Ou este, que três vezes renegou
4. O Nome, antes que a noite chegue ao fim? 
5. Mas poderia Pedro ser a Pedra
6. Onde todos, valentes e covardes,
7. Em meio à noite grande e às fundas trevas,
8. Vêm inclinar as maltratadas faces,
9. Se não houvesse em Pedro esses dois Pedros,
10. O que enfrentou a multidão armada,
11. E o que, aos tropeços, foi-se noite adentro
12. Para chorar sobre a calçada amarga? 

13. Um homem vive a vida sem saber
14. Quem é, nem mesmo se existiu de fato,
15. E adentra a Eternidade sem prever
16. O que vai encontrar do outro lado.
17. Mas quando nossas roupas são rasgadas,
18. E nos cospem, nos tiram pelo chão,
19. Quando temos as costas chicoteadas,
20. Arrebentando músculo e tendão,
21. E o mundo inteiro escorre pelo corpo
22. Transformado em saliva e sangue e suor,
23. E o que somos é um velho galho torto,
24. Amarrado num varapau maior,
25. E a pele ardida se recolhe e se abre,
26. E a carne surge à brisa da manhã,
27. Toda palavra é sal, fel e vinagre,
28. Toda memória é convoluta e vã
29. – E ao homem resta apenas seu Pecado,
30. Que é a mesma Virtude à contraluz. 

31. Isto Pedro entendeu, ao ser pregado
32. De cabeça pra baixo em sua cruz.

§

> Será mais cômodo pra mim separar a primeira parte do poema por estrofes e a segunda por versos.

> A tradição de poemas narrativos é extensa em nossa língua. Permanece viva pela prática sem fim da cantoria popular. Nem sempre, porém, recebe destaque dentro dos circuitos literários mais consagrados, e, quando recebe, dificilmente da mão de poetas que recorrem à versificação tradicional. Dois exemplos que também trilham o caminho de Francisco Botelho são Leonardo Antunes em sua dupla coroa de sonetos e Emmanuel Santiago em sua A legenda de Robert Johnson.

> O título é a tradução da Vulgata para o final do capítulo 26 de Mateus, um dos mais extensos do Evangelho. O poema como um todo se baseia nesse capítulo, versículo 34 em diante.

> A chave de leitura do poema não é muito difícil de ser encontrada. É a pergunta no início da segunda seção: o que fez Pedro, até então valente, ficar tão acabrunhado momentos depois? Quero propor a leitura de que existe uma mudança profunda na ordem das coisas que joga o mundo como um todo para a escuridão. A crucificação de Cristo é uma noite terrível em que a humanidade entrou. Como sabemos, Cristo ressuscita e com ele, a promessa da vida eterna. Isso não quer dizer que tudo se resolva no final e a humanidade esteja salva. Só estará salvo quem mergulhar na sua própria noite e, assim, abraçar a luz da Virtude, a manhã de Cristo.

> 1.2. Suave era o jeto de dizer, mas terrível era o conteúdo. Essa mescla de elementos aparentemente contraditórios será frequente no poema.

> 1.3. A resposta de Pedro no Evangelho é diferente: "Ainda que me seja necessário morrer contigo, de modo algum te negarei" (tradução Almeida). A diferença é bem nítida. A frase de Pedro envolve uma oração concessiva que reforça o sentido da principal, enquanto no poema encontramos somente a afirmação enfática: isso é impossível. Como será visto adiante, rejeitar o Pecado como uma impossibilidade não é a atitude correta. É preciso abraçá-lo e se penitenciar por seus próprios atos. Envolve o reconhecimento de que somos imperfeitos e que não merecemos a graça de Deus.

> 1.4, 2.1. O poeta domina bem a técnica narrativa ao incluir entre parêntesis o que acontecia nos bastidores: Caifás já se preparava para o interrogatório de versículos depois. Cristo sabe o que irá sofrer e já antecipa a Pedro qual será seu comportamento. As trevas que envolvem Pedro nesta primeira parte são as da ignorância.

> 2.1. Hirsuto provavelmente é uma descrição figurada do jeito intratável de Caifás. De todo modo, a luz de tochas é significativa. O poema todo fará contrastes entre as trevas e a luz. Nem sempre o valor desses elementos é simples. Aqui, por exemplo, a luz de tochas acentua um caráter de emboscada. Intuitos nefastos estavam sendo colocados à luz.

> 2.2. O ritmo agora é diferente do verso 1.2. Além do andamento do verso ser binário, os adjetivos estão em posição de tópico na frase. Isso lhes dá ênfase. Além disso, aspecto importantíssimo, sua ordem é mudada: primeiro terrível e depois suave. Na primeira ocorrência, a voz era suave mas o conteúdo depois se relevou terrível; agora, repetida a frase, o conteúdo, já conhecido, é terrível, mas a voz permanece suave.

> 2.2. Não deixar também de notar que a palavra "voz" aparece, agora, com maiúscula.

> 2.4. Notar que "não" fecha a estrofe. A organização da frase dá ênfase para essa palavra.

> 3.1. Gostei muito da ambientação em "horto cor de lua". Ela sugere a escuridão do cenário, iluminado apenas pela lua. Isso mostra de novo que o poeta tem um domínio narrativo excelente.

> 3.3. O evangelho de Mateus não especifica quem exatamente puxou a espada. Isso é dito expressamente por João. O poeta diz que o apóstolo o fez para provar a valentia. A pose de Pedro até então no poema é uma pose forte. Ele rejeita enfaticamente as palavras de Cristo e quer estufar o peito diante do perigo. Isso será importante para contrastar mais tarde seu comportamento.

> 4.1. Mais uma mostra da técnica do poeta ao contar uma história. Até então, de um modo geral, o narrador demonstrava ter domínio completo sobre a narrativa, a ponto de inclusive dizer o que acontecia em outra parte da cidade durante o diálogo entre Cristo e os discípulos. Aqui, porém, ele modaliza a narrativa com "parece que". Isso adiciona uma pitada de ironia na pose de Pedro na estrofe anterior e, mais tarde, no comentário de um dos soldados, quando Pedro já se achava abatido pelo flagelo de Cristo.

> 4.3. A repreensão dada por Cristo é muito famosa. A palavra "voz" voltou a ser escrita em minúscula. Essas idas e vindas são significativas, primeiro pois Cristo em si só é nomeado no final da primeira parte e segundo pois adicionam um tipo de carga dramática específica a essa voz. Ela não é simplesmente a voz de um personagem; é uma voz mais profunda, que penetra o íntimo da consciência.

> 4.4. A tarefa de Pedro é ser a Pedra sobre a qual a Igreja será fundada. Isso vai aparecer na segunda parte do poema.

> 5.1. Seguir pelas trevas é ambientação básica de cenário, já que os personagens saem do horto, mas é também uma imersão num plano terrível de acontecimentos.

> 5.4. O claro das lanternas, agora, contrasta com a luz da tocha que iluminava o Caifás. Serve, como sempre, de ambientação da narrativa, mas também adquire um sentido figurado uma vez que indica que Pedro parece estar tomando consciência de algo mais profundo.

> 6.3-4. "Convoluto" é um adjetivo importante no poema. É aquilo que está envolvido em várias voltas. Vem do particípio do verbo "convolvo" em latim. O sentido é meio que o mesmo. O adjetivo denota um tipo específico de movimento e uma espécie de sombra que se lança sobre as coisas. As trevas vão se intensificando e o cenário se torna pesado, a ponto de Cristo ser mencionado como um homem coberto de suor e sangue. Essa maneira vaga e genérica de se referir a Jesus dá um toque insólito para o texto e ambienta bem os acontecimentos, já que parece sugerir que os presentes tratavam Cristo como um homem qualquer. Não tinham saído das trevas que os circundavam.

> 7. Ou seja, a parte daquela noite convoluta era a parte central dos acontecimentos. Penso que é relativamente simples entender o motivo dessa comparação, uma vez que a crucificação é para os cristãos um acontecimento capital na história da humanidade. A imagem da pedra arremessada na água é eficaz em sugerir que o acontecimento retratado teria repercussões muito amplas, sempre, contudo, ao redor de um mesmo círculo central de fatos.

> 8.1. É possível que essa brasa obscura continue a brasa que fecha a estrofe anterior. A leitura funcionaria assim: a brasa da estrofe 7 serve de metáfora para uma parte que domina o todo. Esse tema já é por si só um desenvolvimento da imagem da estrofe 6, sobre uma parte da noite que cobria o mundo. Como agora o poeta compara a noite que ardia a uma brasa obscura, me parece lícito dizer que as brasas são as mesmas. De todo modo, acho igualmente plausível que se leia uma e outra como brasas distintas, desenvolvendo imagens que extraem, cada qual a seu modo, referências a um fogo que se agita à medida que é atiçado (a brasa do final da estrofe anterior) e a um fogo aparentemente cálido ou, no mínimo, secreto (a brasa desta estrofe).

> 8.2. Novamente uma mescla de ideias. Note que o adjetivo "obscura" se transforma agora num advérbio de modo. Os verbos sugerem um movimento insano dos acontecimentos que escapa à nossa compreensão e controle.

> 8.3-4. Os versos se contrastam basicamente de três maneiras: pelas ideias apresentadas, pela estrutura sintática e pelo ritmo. Sobre a estrutura sintática, o verso 4 inverte a ordem do anterior, pondo o predicativo antes do sujeito, e ainda por cima elide o verbo de ligação. Já a respeito do ritmo, o andamento do verso 3 é binário e o do verso 4 um tanto mais espaçado, inclusive trabalhando com a proparoxítona "vértice" em posição de cesura do decassílabo.

> 9.1. A inquietude pode ser a de Pedro ou a do clima geral da ocasião. O propósito do poeta não é descrever em minúcia o flagelo de Cristo e, sim, mostrar a desordem das coisas e o impacto daquele acontecimento. Tudo parece ter ficado de pernas pro ar. Por isso a escolha do verbo "perdurava" é particularmente significativa. Se o poeta usasse algo como "desabava", por exemplo, ele deixaria de marcar uma certa duração dos acontecimentos, que pode ser tomada tanto no sentido puramente narrativo (isto é, alguém estava sendo torturado não muito longe dali) quanto no sentido figurado (isto é, os acontecimentos das estrofes 7 e 8 continuam espichando seus reflexos).

> 9.2. O advérbio "quase" é um toque de mestre.

> 9.3-4. Aliteração em S no verso 3 e, no verso 4, a ausência de artigo deixa indeterminado o grito e o murmúrio. É um contraste dramático. Os personagens não sabiam exatamente o que ocorria no Sinédrio, mas nós sabemos bem.

> 10. O fogo ambienta o cenário e assinala uma transição. Ao mesmo tempo, permite que os personagens reconheçam Pedro, que, agora, está imerso em seus pensamentos. Houve uma transição que fará o poeta mais tarde se perguntar o que houve com aquele Pedro impetuoso que gabava-se de sua valentia. As metáforas transtornantes dos versos anteriores revelam uma mudança profunda na ordem das coisas e na personalidade de Pedro também.

> 11.3-4. Novamente, mescla de elementos contrários. Agora, porém, interiorizados em Pedro. Ele está confrontando suas trevas interiores, ruminando as palavras de luz vindas da voz suave e terrível. Notar em especial o adjetivo "difusa", ou seja, mescla disseminada, espalhada. Não é uma inquietação pontual.

> 12.1. A espada antes foi chamada de nua. É uma maneira comum de se referir às armas quando saem da bainha. Agora, porém, além de dormir, a espada é vã. A luta espiritual que Pedro travava já não precisava dela. Além disso, as palavras de Cristo mais cedo no poema deixaram claro que o encargo de Pedro não é pela via armada.

> 12.2. A mente de Pedro virou alguma coisa de líquido. Isso vai bem com a imagem da água estrofes antes. Sugere maravilhosamente bem, ainda, que ele perdia o controle. Estava entregue. Ficamos em dúvida sobre se sua negação será realmente deliberada.

> 12.4. Essa manhã não é apenas a manhã de fato. É, principalmente, a luz de um verdadeiro Dia, a luz que dissipa as trevas de sua mente. Versos atrás o poeta disse que a água do Tempo girava de maneira obscura e que seu torvelinho era a véspera do Dia. Ou seja, essa véspera tem um significado profundo na ordem dos acontecimentos e, segundo a teologia cristã, na história da humanidade.

> 13.1-2. Ambientação algo macabra. O mocho é uma coruja muito associada ao sobrenatural. É significativo que ela esteja com os olhos muito abertos.

> 14.1-2. Notar que a palavra Pedro ocupa as duas posições centrais do decassílabo: a da cesura e o final. A dissolução do personagem está realizada e adentrou o íntimo de sua consciência. A imagem do náufrago noturno é uma imagem desesperadora, em parte pelo seu caráter metafórico num poema que aprofunda na esfera espiritual e em parte pelo uso do quantificador "mais um". Isso dá a entender que existiam outros. Ou que existirão outros.

> 15.1-2. O jogo de luz e sombra ambienta o cenário e realça, mais uma vez, o drama interior que se passava na alma de Pedro. Será o responsável por permitir que outros personagens o reconheçam.

> 16.3. No retrato dado pelo poeta, Pedro não parece ter se dado inteiramente conta do que acabou de ouvir. Sua negação tem origem basicamente nisso - ele não está inteiramente acordado. Está entorpecido, imerso em pensamentos e por isso nega Jesus. Os significados são profundos. Não porque eximam Pedro de culpa. Não é isso. É mais porque dizem que ele não pareceu ter consciência clara de quais as implicações de negar ou afirmar Cristo. Estava imerso numa noite e num sono que era profundo a ponto de abarcar o mundo todo. Prova disso é que no final da estrofe 13 o poeta nos diz que o mundo estava insone.

> 17.4. No evangelho de Mateus um dos que reconhecem Pedro diz que o sotaque o denunciava.

> 18.1. A fogueira, agora, parece assinalar o clímax da passagem.

> 18.4. As sombras que minguam são as do dia, como o final do verso deixará claro. Mas são também as sombras na cabeça de Pedro.

> 19.2. Cristo é tratado como um vulto agora. É um toque de mestre narrar assim. Primeiro pois Pedro, na verdade, está espiando, então de fato é plausível que ele só esteja vendo mesmo um vulto. Mas também é significativo pois sabemos bem quem é aquele vulto - e o cenário só se torna mais terrível justamente por isso. O poeta não se deteve nas descrições sobre a paixão de Cristo por concentrar sua câmera em Pedro e privilegiar um retrato indireto do acontecimento em si. A metáfora da pedra arremessada na água é mais uma vez importante para entender o motivo disso: a crucificação em si é somente a pedra que acerta a água; as repercussões são, de fato, o mais importante.

> 20.4. A ironia aqui dispensa comentários.

> 21.1. Note que agora Pedro já não responde de forma tão enfática quanto no início do poema. Sua voz hesita, o que é marcado pelo uso de reticências num poema que, de maneira geral, é muito contido em sua pontuação, preferindo usar de maneira elegante outros recursos que sugiram a atmosfera sentimental do texto.

> 21.2-3. A repetição do adjetivo "claro" em posição de rima deve ser tratada com cautela. Realça um acontecimento muito esperado ao longo do poema, mas, também, revela duas posições diferentes do adjetivo. Na primeira, ele é um simples adjetivo descritivo que fala de um veio que surge no céu cinzento (perceba que a cor cinza está entre o branco e o preto). Na segunda, porém, é um adjetivo predicador em posição marcada, tanto por vir antes do infinitivo quanto por ocorrer em cavalgamento entre os versos.

> 22. A estrofe toda faz menção ao famoso poema de Cabral, Tecendo a manhã. Ele começa com "Um galo sozinho não tece uma manhã". Note que o poeta usa "Um galo só" e mantém a rima nasal.

> 22.3. Galos realmente cantam antes que o sol desponte. O amanhecer estava acontecendo ainda; basta observar o veio claro na estrofe anterior.

> 22.4. "Antemanhã" é a palavra exata. Significa grosso modo o mesmo que alvorecer, só que dando destaque para o que ocorria momentos antes do nascimento do dia propriamente dito. A revelação ainda não está completa.

> 23.1. Primeira vez que o nome de Jesus é dito. Ainda, é a primeira vez em que seu rosto é revelado para nós. Antes ouvimos apenas uma voz, vimos um homem e um vulto.

> 23.2. A nudez de Cristo se associa à luz que enfim se ergue. Pedro compreende. O quê? É o que a próxima seção indagará.

> 23.4. Novo jogo de luz. Quando o cenário já estava claro, Pedro opta por se abrigar na escuridão.

*

> 1. Essa é a pergunta central do poema. Ele contrasta dois caracteres distintos de Pedro. Qual deles era o verdadeiro? Por trás dessa pergunta, podemos nos indagar: que mudança profunda houve? O que Pedro entendeu para realizar a mudança? O que está em jogo é apenas uma questão de covardia ou de um ensimesmamento mais profundo?

> 4. A noite que chega ao fim é de fato a noite do cenário, mas representa também a noite que se abateu sonbre o mundo. Negar o Nome, como sugeri antes, é relativamente justificável uma vez que Pedro estava imerso em pensamentos; ao mesmo tempo, aponta que ele não havia se dado inteiramente conta do peso daquele Nome. Não havia se dado conta da luz e nem das trevas.

> 5. A passagem do evangelho é bastante famosa. Creio que dispensa comentários. Vale notar que as palavras Pedro e Pedra ocupam posições de destaque no verso assim como no início da estrofe 14 da parte anterior.

> 7. O nome dessa figura de linguagem é hendíade: uma única ideia expressa por dois nomes. Parece ser vizinha do pleonasmo. No entanto, se o falante a escolhe, é porque não é gratuita. Além de aprofundar a dimensão da noite, ela acrescenta caracteres específicos: o fato da noite ser grande pode até mesmo dar a entender que ela extrapola os limites do relógio natural, e o fato das trevas serem fundas aponta claramente para a imersão espiritual num abismo interior.

> 8. Isto é, todos vão à igreja para abaixar o rosto em penitência. O fato das faces serem maltratadas revela que as dores de Cristo são também as da humanidade.

> 9. Novamente o nome Pedro em posições enfáticas do decassílabo.

> 11-12. Destaco o advérbio "adentro" e o adjetivo "amarga". Acho que são escolhas habilidosas. Como sugeri antes, a ida de Pedro para chorar na calçada foi voluntária. Não é mais apenas uma noite que se abate; é um ato de abraçar a escuridão, abraçar o próprio Pecado e se reconhecer como um pecador. É só assim que a graça da salvação pode ser concebida.

> 13. Em "vive a vida" temos o que se chama de objeto cognato, isto é, um complemento verbal desdobrado da própria ação lógica do verbo principal. Parece mais uma vez com pleonasmo, mas, se foi usado, tem um porquê. Muitas vezes esse objeto cognato especifica a ação verbal. É bem o que acontece aqui. Não se trata apenas de viver, mas viver uma vida + sem saber etc etc.

> 15. Observar agora o verbo "adentrar", irmão do advérbio no final do verso 11.

> 17-26. Uso contínuo de orações coordenadas que dão agilidade ao texto. Essas ações todas avolumam o peso da imagem tratada.

> 17-20. Os castigos são basicamente físicos nesses versos.

> 21-22. A descrição agora ganha ares figurados. A aliteração em S amarra em especial o final do verso 22, como que sugerindo o escorrimento. O poeta coloca a gente na posição de Cristo, e por isso se permite falar do mundo inteiro que escorre pelo corpo. Precisamos ter dimensão da paixão dEle.

> 23-24. Tenho a impressão que existe uma passagem da Bíblia que fala de galhos tortos. O Eclesiastes diz que o que é torto não pode se curvar, e acho que é esse mesmo livro que fala que o que Deus entortou ninguém pode curvar. De todo modo, dou destaque para o ritmo do verso 24, que consegue desenhar pra gente o galho torto num varapau graças à distribuição de acentos na terceira, oitava e décima sílaba.

> 25. A carne que se recolhe e se abre é uma descrição crua do corpo flagelado mas é também uma descrição simbólica do gesto de Pedro, que se recolheu com o raiar do dia e se abriu ao choro, ao arrependimento.

> 26. Basicamente o mesmo que o comentário anterior. Existe de um lado uma descrição física, da carne flagelada de Cristo que agora é banhada pela luz da manhã, e existe ainda a sugestão figurada de que essa carne possa ser a de Pedro, ou a de qualquer um de nós, que ao se abrir para a ferida, recebe a luz da manhã.

> 27. Ou seja, toda palavra lacera na carne do torturado. Não são palavras que vão contornar a situação, assim como não será por exemplo a memória ou a espada. Penitência. A palavra implícita é essa.

> 28. Observe o uso de dois adjetivos importantes no poema: convoluta e vã. O primeiro falava de uma noite que se abateu sobre tudo e o segundo remetia à espada de Pedro, que, valente num primeiro momento, adormeceu depois.

> 29-30. A paixão de Cristo releva uma coisa: o Pecado. Revela que não somos merecedores do amor de Cristo. A ressurreição não anula isso; ela, na verdade, aprofunda a dimensão desse amor, pois revela que Deus ainda assim nos ama. A imagem da contraluz é ótima. Acho que muitas coisas podem entrar em jogo a partir dela. Por exemplo o contraste de elementos. Ou então, para ser mais preciso, o contraste entre o Pecado e a luz da Virtude, o jogo daquilo que Bruno Tolentino uma vez chamou de a aspereza do real, ou seja, o claro-escuro que compõe a existência humana.

> 31-32. Saber o que o apóstolo entendeu é uma pergunta que cabe mais à teologia do que à crítica literária. Dois eixos, porém, me parecem básicos: ele entendeu que palavras não bastam por ser preciso mergulhar nos abismos da alma e se recolher nas sombras para, só assim, talvez ser merecedor da graça do amanhecer em Cristo. E entendeu também que a relação entre a virtude e o pecado não é bem a de opostos inconcebíveis, mas, antes, que um é a contraluz do outro, e que é somente o mergulho nas trevas individuais que dá a alguém o vislumbre da Luz.