Chelsea Manning, de Dirceu Villa.

CHELSEA MANNING
Dirceu Villa

1. só você pode, lucidamente. note os cães
2. de patas cruzadas: neles se move primeiro
3. a ponta das orelhas, e a cabeça pondo em
4. direção olhos e faro. detectam algo no ar,

5. erguem-se nas patas, farejam, começam a
6. rosnar. seu corpo vai se tornar um trevo,
7. nova invenção de nome ainda aéreo, seus
8. membros se mudam, o mundo deve mudar.

9. mas demora: agora, só cães que querem te
10. partir em mil pedaços, novo deus agrário,
11. nome divino dos astros, da nova aventura?
12. como viver outro sexo, tirésias, ou fugir à

13. força do assédio, dafne? como cobrir a pele
14. frágil contra tanta agrura, actæon? a receita
15. que rasga a todos, pune ausência no sacrário,
16. hermes, afrodite: que você lute, que você fique.

É um poema extraordinário, mas para o qual não tenho todas as respostas. Em tempos obscuros e intoleráveis como o nosso, creio que a mensagem central do poema ("o mundo deve mudar") é mais urgente do que nunca.

> Chelsea Manning é transexual e ex-militar estadunidense presa por ter vazado informações confidenciais do governo. O processo jurídico foi kafkiano, pra dizer o mínimo. O poeta, em outras publicações, a coloca ao lado de outras figuras políticas notáveis como Julian Assange.

> 1. A lucidez a que o poeta se refere não é só a de uma mente lúcida e inteligente (que certamente é o caso de Manning), mas também a lucidez de quem torna as coisas do mundo mais claras. Ao divulgar informações sigilosas do exército, Manning permitiu que ficássemos mais lúcidos a respeito do que acontece nas entrelinhas do poder.

> 2-6. Os cães fazem menção tanto ao mito de Dafne quanto ao de Acteão, conforme contado por Ovídio. Ver mais abaixo. A descrição é um toque de mestre. O poeta descreve de maneira indireta a cena do ataque: os cães estão parados ("patas cruzadas"), mas logo detectam alguma coisa e saem à caça. O que detectaram? O mito de Acteão nos responde: a própria personagem, que não havia se dado conta do seu estado inteiramente indefeso.

> 6. Não sei dizer por que um trevo. Muitos personagens de Ovídio viram árvores.

> 8. A personagem se transforma em alguma coisa, a princípio como as personagens de Ovídio. Estas, no entanto, se transformam por punição, muitas vezes por estarem à mercê de forças maiores que se abatem sobre elas (como Dafne perseguida por Apolo) ou por um infelicíssimo acaso (como Acteão ao entrar por acaso numa gruta). Ovídio costuma narrar também a consequência trágica dessas metamorfoses: Acteão, mais uma vez, é dilacerado depois de sua metamorfose. Mas a mudança tratada no poema é outra também: é uma que precisa acontecer no mundo. As coisas não podem mais continuar da maneira como estão. O mote central do poema é que todos aqueles que operam mudanças sofrem punições severas. Sua estrutura é ovidiana não só no uso dos mitos tirados do autor romano mas, ainda, pela maneira forma como se arquiteta em eixos de mudança. Todos eles se entrecruzam numa atmosfera de esperança e tragédia. Assim, além da mudança da personagem, sugerida pelas alusões míticas, há a mudança que deve acontecer no mundo e a mudança de sexo de Chelsea Manning. Estas duas últimas sugerem num primeiro momento esperança (a de que o mundo mude com as informações vazadas e que o gesto libertador de abraçar a transexualidade traga alívio), mas a repressão do mecanismo social converte o quadro numa terrível tragédia.

> 8. Vale apontar também a sonoridade cuidadosa do poema. A aliteração em M amarra bem o verso. Em vários outros a estrutura também se amarra em recorrências sonoras muito criativas. No verso 4, por exemplo, vale observar a repetição do A e, em menor escala, do D e do R. Em outros, rimas internas podem ser apontadas, como em "demora - agora" no 9, "pedaços - agrário" no 10 ou "afrodite - fique" no fim.

> 9. A conjunção adversativa encabeçando o início da estrofe é poderosa. O par de rimas internas "demora - agora" é também digno de nota. A mudança precisa acontecer, mas isso vai levar um tempo; por agora, o que acontece é...

> 9. No final do verso, vale também mencionar o pronome "te" como que encurralado no final. Como a força fonética desses pronomes é bem fraquinha, colocá-lo no fim do verso já sugere o seu desaparecimento. Contraste com o possessivo "seus" no fim do verso 7.

> 10-11. Não sei o que esses versos querem dizer. Deus agrário é menção a Osíris? Acho que sim.

> 12-14. As perguntas não esperam uma resposta. Conhecer os mitos envolvidos vai deixar isso claro, em especial no caso de Dafne: não é possível fugir do assédio. E o poeta sabe disso, assim como sabe que não é possível para um transexual viver um outro sexo. Essas perguntas algo retóricas serão contrastadas com os versos 15 e 16, que irão falar de um mecanismo que parece cinicamente sugerir que outras respostas são possíveis para as perguntas (por exemplo a de que é possível sim viver outro sexo).

> 12. O mito de Tirésias é narrado no livro 3 das Metamorfoses de Ovídio. Ele uma vez havia acertado com bastão duas serpentes que copulavam, no que foi mudado em mulher e ficou assim por sete outonos. No oitavo reencontrou as cobras e, ao feri-las novamente, retornou à sua forma original. O mito obviamente faz menção ao fato de Chelsea Manning ser transexual.

> 13. O mito de Dafne é narrado no livro 1 das Metamorfoses de Ovídio. Apolo se apaixonou por ela e a perseguiu. Ovídio compara com um cão gaulês a perseguir uma lebre.

> 14. O mito de Acteão também é narrado por Ovídio no livro 3 das Metamorfoses. Um caçador dedicado, Acteão vê por engano a deusa Diana tomando banho com suas acompanhantes nas águas de uma gruta. A punição que Acteão recebe é ser transformado num cervo. Os cães de Acteão, farejando a presa, perseguem seu dono sem saber de quem se trata. Ovídio se demora nos detalhes sobre o pavor que Acteão sente e a ferocidade dos animais. A grafia "actæon" quer fugir do fonema nasal do nome em português e aproveitar o ditongo "æ", que, na pronúncia reconstituída do latim, é lido como um "ai": ac-tái-on.

> 15. Receita, isto é, o mecanismo, a lógica social que dilacera todos. Isso não muda - mas precisa mudar. A escolha da palavra "receita" leva em conta a contribuição de cada um dos sons da palavra, por exemplo o ditongo ou T, mas também sugere alguma coisa de repetitivo e patético.

> 15. Não sei se compreendi bem o que seria punir a ausência no sacrário. Há uma definição bem clara do que era o "sacrarium" para os romanos: "deve ser notado que uma coisa é um lugar sagrado [sacer], outra é um sacrário. Lugar sagrado é lugar consagrado; sacrário é lugar no qual se põem as coisas sagradas: o que pode ser também em edificações privadas" (D 1.8.9). Não vejo como isso poderia se encaixar na passagem. Pode ser, ainda, menção a algum mito que me escape. De todo modo, o sentido religioso sugere um outro, mais amplo, em que sacrário é qualquer lugar reservado e privado. Pode fazer menção também a lógicas sociais chanceladas pela religião que punem aqueles que não a exercitam.

> 16. "hermes, afrodite": a união dos dois nomes dá em Hermafrodito, personagem também retratado por Ovídio nas Metamorfoses.

> 16. O uso de "fique" é um toque de mestre. O eixo central do poema concatena mudanças; por outro lado, a receita dilacerante tenta encaixar tudo dentro de uma normalidade cínica e assassina. O uso de dois subjuntivos quase duplicados, especialmente num texto que até então não o havia usado, sugere um desejo intenso. Quase uma necessidade. "Ficar" é interessante pois se o eixo do poema é a metamorfose, como desejar que as coisas fiquem? Simples: o eixo do poema é ovidiano também por preconizar nas entrelinhas que a mudança é necessária e que a manutenção da ordem das coisas é inaceitável. Lutar e ficar são o mesmo e, a seu turno, querem dizer: mudar. Dever mudar.