Lírica grega, hoje.
Guardarei umas lembranças muito bonitas desse livro publicado pelo Trajano Vieira anos atrás. Primeiro pela ocasião em que o adquiri: numa viagem muito agradável que fiz com minha esposa ano passado para São Paulo. Não foi nem a minha e nem a primeira vez dela nela na selva de pedra. Conseguimos ficar pouco menos que uma semana por lá, o bastante para batermos perna na Paulista, nos esbaldarmos com as guiozas da Liberdade e contrastarmos a opulência faraônica das grandes redes de livraria com o ambiente tão aconchegante da Martins Fontes, que foi onde comprei o livro.
Em segundo, pela proposta muito íntima e pessoal que o Trajano oferece com sua seleção de poemas e fragmentos favoritos da poesia grega antiga. Digo não só levando em conta que o tradutor arrisca a pele embarcando isso e não aquilo, como, ainda, pela maneira como a antologia é por si só um testemunho emocionado do seu convívio com grandes figuras das nossas letras como Haroldo de Campos e Francisco Achcar. Nesse sentido penso que colocar essa antologia do Trajano ao lado por exemplo de trabalhos levados a cabo pelo Décio no começo da década de 90 pode ser instrutivo, no sentido de que diante de um livro assim averiguar as coincidências ou a, vá lá, fidelidade com o original não parece ter a mesma graça que sentir a repercussão dos textos pela caixa torácica do tradutor.
É um apontamento importante de ser feito. Muitas soluções do Trajano são estratégias de alguém que sabe que está correndo riscos e realizando escolhas. Todo tradutor faz isso. A questão é que o tipo de tradução que o Trajano diz praticar, uma tradução criativa, se caracteriza por escolhas radicais que visam corresponder à excelência técnica do texto antigo. Há um ensaio importante da pena do grande linguista russo Roman Jakobson em que ele defende a ideia de que se você for parar pra ver direitinho, é claro que traduzir poesia é impossível, é claro que manter todas aquelas engrenagens a pleno vapor é em última instância inviável - e é justamente por isso que você não pode exatamente traduzir e sim recriar. Um exemplo:
Vento
precípite nos cimos entre pinhos
Eros
seu símile
agita em mim o que é o meu espírito.
É o fragmento 47 de Safo, que há muitos anos atrás me encantou profundamente quando o li na versão memorável do Péricles Eugênio. O Trajano adota aqui um verso livre e dá uma ênfase quase que obsessiva a proparoxítonas e a uma recorrência do som da vogal I, dando a entender como que uma espécie de queda cercada de uma forte ventania sibilante. Essa recriação sonora do texto numa estrutura coesa e de muito impacto traz à mente, de imediato, as versões do Haroldo de Campos para alguns fragmentos da Safo, rascunhadas quando o Haroldo era aluno de grego do Francisco Achcar. Depois, como muitos já sabem, ele se tornaria aluno do Trajano, usando um método de grego muito peculiar do Clyde Pharr, todo baseado em Homero. Compare o fragmento acima com a tradução do Haroldo para o 34:
em torno a Selene esplêndida
os astros
recolhem sua forma lúcida
quando plena ela mais resplende
alta
argêntea
Tradução elogiada, e com muita razão, pelo Francisco Achcar, que, segundo diz o Trajano em seu prefácio, gostava de lê-la em suas aulas para o ensino médio. É um dos pontos altos da tradução de literatura grega entre nós.
Um exemplo também muito revelador é o fragmento 105c também de Safo, um dos pontos altos da antologia:
Como o jacinto nos cimos
que o pastor repisa,
jaz na leiva a flor porfíria.
A proximidade sonora de palavras como "jacinto" e "cimos" eu imagino que seja facilmente explicável somente averiguando os exemplos que dei até então. O mesmo pode ser dito em relação a "repisa", uma forma de acentuar novamente o som da vogal I. Ora: é quando rastreamos esses propósitos internos do texto que entendemos a opção por "flor porfíria". Por mais que a maioria das traduções opte por "flor púrpura", "porfíria" é a mesmíssima palavra do grego, colhida graças à função sonora importante que desempenha. Situação um pouco diversa é com "leiva", um termo muito mais específico e bem ambientado que o original χαμαί, que designa apenas chão, solo.
Outro exemplo também muito peculiar é o do fragmento 521 de Simônides, um belo lembrete que a poesia antiga nos dá:
Homem que és, nada afirmes da aurora que avizinha,
tampouco, em presença da fortuna de alguém,
digas que ela há de ser.
Mosca longuialada,
nem ela tem metástase tão rápida.
Não se trata nem tanto de comentar o composto "longuialada", já que se trata de uma técnica relativamente comum dentro da tradução dos clássicos que por vezes o Trajano radicaliza talvez até demais, a exemplo de quando nos aparece com "avipúrpurocultas" num fragmento de Íbico. Gostaria mesmo é de chamar a atenção para o termo "metástase". É exatamente o termo que aparece no original grego, geralmente traduzido como "mudança brusca" ou algo do tipo. A diferença, claro, é que metástase tem hoje dentro a biologia um sentido muito diverso, de modo que apostar que um termo assim possa de algum modo sugerir uma mudança brusca é no fundo a mesma aposta que um poeta (que tal você, Augusto dos Anjos?) faria caso se visse diante da mesma oportunidade. Para além do erro ou do acerto de uma opção assim, a escolha da palavra revela muito a respeito da oficina do tradutor e acaba contribuindo para a eficácia sonora do verso, já que compacta duas proparoxítonas num espaço quase que contíguo dentro do verso decassílabo, agilizando a leitura.
Se estes dois me parecem ser somente alguns exemplos de bons momentos do livro, noutros o Trajano aparece com resultados simplesmente inexplicáveis. Vejamos o caso da primeira estrofe do fragmento 31 de Safo:
A aparição de alguém sentado à tua frente
equivale a de um deus. O prazer que há no som
de tua fala repercute em seu ouvido.
Como visto no caso do fragmento 47, que consistia originalmente de dois únicos versos, o Trajano não está tão preocupado em manter o mesmo número de versos do original ou mesmo de manter algum tipo de coerência métrica. Está mais preocupado com a criação do que chamei antes de uma estrutura coesa, com sonoridades que repercutam entre si e sugiram ao leitor parte do prazer que o tradutor sente lendo o original. Não é, todavia, nem de longe o que ocorre aqui. Enquanto no original encontramos uma sonoridade que já foi descrita como encantatória e diáfana, o tom inteiramente prosaico da tradução é um desnível que não faz jus a outros momentos da obra. Na verdade eu acho até no mínimo curioso e revelador contrastar essa versão com a da professora Giuliana Ragusa, apresentada pelo Trajano em seu prefácio como um projeto oposto ao seu e, deduzimos, menos criativo ou artístico:
Parece-me ser par dos deuses ele,
o homem, que oposto a ti
senta e de perto tua doce fa-
la escuta,
Não só muito mais compacto como muito mais bem resolvido sonoramente, no que basta sentir as agradáveis recorrências sonoras por exemplo da consoante P nos dois primeiros versos, T nos dois últimos ou da vogal E no primeiro.
Em segundo, pela proposta muito íntima e pessoal que o Trajano oferece com sua seleção de poemas e fragmentos favoritos da poesia grega antiga. Digo não só levando em conta que o tradutor arrisca a pele embarcando isso e não aquilo, como, ainda, pela maneira como a antologia é por si só um testemunho emocionado do seu convívio com grandes figuras das nossas letras como Haroldo de Campos e Francisco Achcar. Nesse sentido penso que colocar essa antologia do Trajano ao lado por exemplo de trabalhos levados a cabo pelo Décio no começo da década de 90 pode ser instrutivo, no sentido de que diante de um livro assim averiguar as coincidências ou a, vá lá, fidelidade com o original não parece ter a mesma graça que sentir a repercussão dos textos pela caixa torácica do tradutor.
É um apontamento importante de ser feito. Muitas soluções do Trajano são estratégias de alguém que sabe que está correndo riscos e realizando escolhas. Todo tradutor faz isso. A questão é que o tipo de tradução que o Trajano diz praticar, uma tradução criativa, se caracteriza por escolhas radicais que visam corresponder à excelência técnica do texto antigo. Há um ensaio importante da pena do grande linguista russo Roman Jakobson em que ele defende a ideia de que se você for parar pra ver direitinho, é claro que traduzir poesia é impossível, é claro que manter todas aquelas engrenagens a pleno vapor é em última instância inviável - e é justamente por isso que você não pode exatamente traduzir e sim recriar. Um exemplo:
Vento
precípite nos cimos entre pinhos
Eros
seu símile
agita em mim o que é o meu espírito.
É o fragmento 47 de Safo, que há muitos anos atrás me encantou profundamente quando o li na versão memorável do Péricles Eugênio. O Trajano adota aqui um verso livre e dá uma ênfase quase que obsessiva a proparoxítonas e a uma recorrência do som da vogal I, dando a entender como que uma espécie de queda cercada de uma forte ventania sibilante. Essa recriação sonora do texto numa estrutura coesa e de muito impacto traz à mente, de imediato, as versões do Haroldo de Campos para alguns fragmentos da Safo, rascunhadas quando o Haroldo era aluno de grego do Francisco Achcar. Depois, como muitos já sabem, ele se tornaria aluno do Trajano, usando um método de grego muito peculiar do Clyde Pharr, todo baseado em Homero. Compare o fragmento acima com a tradução do Haroldo para o 34:
em torno a Selene esplêndida
os astros
recolhem sua forma lúcida
quando plena ela mais resplende
alta
argêntea
Tradução elogiada, e com muita razão, pelo Francisco Achcar, que, segundo diz o Trajano em seu prefácio, gostava de lê-la em suas aulas para o ensino médio. É um dos pontos altos da tradução de literatura grega entre nós.
Um exemplo também muito revelador é o fragmento 105c também de Safo, um dos pontos altos da antologia:
Como o jacinto nos cimos
que o pastor repisa,
jaz na leiva a flor porfíria.
A proximidade sonora de palavras como "jacinto" e "cimos" eu imagino que seja facilmente explicável somente averiguando os exemplos que dei até então. O mesmo pode ser dito em relação a "repisa", uma forma de acentuar novamente o som da vogal I. Ora: é quando rastreamos esses propósitos internos do texto que entendemos a opção por "flor porfíria". Por mais que a maioria das traduções opte por "flor púrpura", "porfíria" é a mesmíssima palavra do grego, colhida graças à função sonora importante que desempenha. Situação um pouco diversa é com "leiva", um termo muito mais específico e bem ambientado que o original χαμαί, que designa apenas chão, solo.
Outro exemplo também muito peculiar é o do fragmento 521 de Simônides, um belo lembrete que a poesia antiga nos dá:
Homem que és, nada afirmes da aurora que avizinha,
tampouco, em presença da fortuna de alguém,
digas que ela há de ser.
Mosca longuialada,
nem ela tem metástase tão rápida.
Não se trata nem tanto de comentar o composto "longuialada", já que se trata de uma técnica relativamente comum dentro da tradução dos clássicos que por vezes o Trajano radicaliza talvez até demais, a exemplo de quando nos aparece com "avipúrpurocultas" num fragmento de Íbico. Gostaria mesmo é de chamar a atenção para o termo "metástase". É exatamente o termo que aparece no original grego, geralmente traduzido como "mudança brusca" ou algo do tipo. A diferença, claro, é que metástase tem hoje dentro a biologia um sentido muito diverso, de modo que apostar que um termo assim possa de algum modo sugerir uma mudança brusca é no fundo a mesma aposta que um poeta (que tal você, Augusto dos Anjos?) faria caso se visse diante da mesma oportunidade. Para além do erro ou do acerto de uma opção assim, a escolha da palavra revela muito a respeito da oficina do tradutor e acaba contribuindo para a eficácia sonora do verso, já que compacta duas proparoxítonas num espaço quase que contíguo dentro do verso decassílabo, agilizando a leitura.
Se estes dois me parecem ser somente alguns exemplos de bons momentos do livro, noutros o Trajano aparece com resultados simplesmente inexplicáveis. Vejamos o caso da primeira estrofe do fragmento 31 de Safo:
A aparição de alguém sentado à tua frente
equivale a de um deus. O prazer que há no som
de tua fala repercute em seu ouvido.
Como visto no caso do fragmento 47, que consistia originalmente de dois únicos versos, o Trajano não está tão preocupado em manter o mesmo número de versos do original ou mesmo de manter algum tipo de coerência métrica. Está mais preocupado com a criação do que chamei antes de uma estrutura coesa, com sonoridades que repercutam entre si e sugiram ao leitor parte do prazer que o tradutor sente lendo o original. Não é, todavia, nem de longe o que ocorre aqui. Enquanto no original encontramos uma sonoridade que já foi descrita como encantatória e diáfana, o tom inteiramente prosaico da tradução é um desnível que não faz jus a outros momentos da obra. Na verdade eu acho até no mínimo curioso e revelador contrastar essa versão com a da professora Giuliana Ragusa, apresentada pelo Trajano em seu prefácio como um projeto oposto ao seu e, deduzimos, menos criativo ou artístico:
Parece-me ser par dos deuses ele,
o homem, que oposto a ti
senta e de perto tua doce fa-
la escuta,
Não só muito mais compacto como muito mais bem resolvido sonoramente, no que basta sentir as agradáveis recorrências sonoras por exemplo da consoante P nos dois primeiros versos, T nos dois últimos ou da vogal E no primeiro.