Alarma.
ALARMA
André Capilé
1. os cotovelos duros na janela
2. para confirmar a mãe no presente
3. o velar sem palavra o sono cônscio
4. embora não te deite mais à cama
5. confirma a mãe um estado de espera
6. seguir por fiar da flor os plurais
7. o que de si demuda sem piscar
> Primeira pergunta: alarma é o mesmo que alarme? A princípio sim. Mas então por que alarma? Vou sugerir uma resposta: alarme em português é o dispositivo de segurança. Dificilmente alguém lê alarme e pensa em outra coisa. Só que alarme em tese não quer dizer só isso. Pode ser o mesmo também que um estado de alerta. Essa seria a ideia por trás de escolha por alarma: afastar qualquer relação com o dispositivo de segurança e dar ênfase a esse estado.
> 1. O verso descreve uma típica pose de espera. Até um pouco romanceada, se trouxermos à memória a imagem das princesas medievais esperando na torre dos castelos.
> 2. Quero propor uma chave de leitura para o poema: a gestação cria uma criança mas também cria uma mãe. O termo que o poema usa é espera, igual numa frase como: Fulana está esperando nenê. Pois bem. A espera por um bebê não é só temporal, a mesma espera, por exemplo, de uma receita ficar pronta no forno. O tempo da gestação é o da criança que se forma no útero mas também o da mãe que se forma enquanto tal.
> 2. Vale também notar que o recorte rítmico padrão do poema é o decassílabo heroico, com algumas excessões. Uma delas é esse verso, que tem acento na quinta sílaba, o que dá, portanto, um destaque para a palavra "mãe".
> 3. A ausência de pontuação faz com que a gente fique imaginando umas hipóteses. "o sono cônscio" parece ser compemento verbal de "velar". Acho que é a leitura mais aceitável: a mãe vela sem palavra nenhuma o sono consciente da criança. Mas talvez seja possível inserirmos uma vírgula imaginária depois de "o velar sem palavra" e o colocarmos lado a lado de "o sono cônscio", como se fossem os dois atitudes da mãe. Acho realmente possível fazer isso, em especial levando em conta que as duas partes seriam introduzidas pelo artigo "o".
> 4. Para quem o "te" se dirige? Para a gestante, indicando, assim, que a gestação está em estágio tão avançado que o deitar-se à cama já não é tão simples? É possível. É só o que consigo pensar.
> 5. É importante perceber a mudança da estrutura deste verso com o 2. Naquele tínhamos uma ideia de finalidade: para confirmar. Aqui, pelo contrário, todos os elementos dos versos 3 e 4 confirmam a mãe, um estado de espera (esta última expressão é, para mim, claramente um aposto). O fato de que o verbo esteja no singular não invalida a leitura: é possível que ele concorde só com "o velar sem palavra", no que os demais elementos dos versos 3 e 4 estariam em posição de parêntesis ou coisa do tipo. Ou que seja simplesmente uma concordância implícita.
> 6. Podemos organizar assim: "seguir por fiar os plurais da flor". A primeira dificuldade está na preposição "por": qual o seu sentido? Para mim, um de finalidade: seguir com o propósito de. E quanto a fiar? O verbo pode significar transformar alguma coisa num fio ou, mais amplamente, urdir. É uma imagem delicada. O trabahod a gestação é realmente a trama de uma vida. A flor me parece ser claramente a vida da criança, com plurais remetendo a princípio às pétalas mas também a todos os caminhos que aquela vida pode tomar.
> 6. Outra leitura: fiar no português clássico é o mesmo que confiar. Camões, 1.83.4: "[E busca ... mouro...] De quem fiar se possa um feito grande". Não sei até que ponto se encaixa, já que o verbo nesse caso costuma ser ou transitivo indireto (fiar em) ou reflexivo (fiar-se).
> 7. Demudar é o mesmo que transformar. Ele dá ênfase a um ponto de partida graças ao prefixo "de-", que expele a preposição "de" logo em seguida. O que é que se transforma a partir de si? A mãe e a própria criança, que em seu lento desabrochar criam duas vidas simultaneamente. É uma maneira de ler também os plurais da flor no verso anterior. Ouso acrescentar que essa formação complexa gera um todo a que podemos chamar de Família, dentro da unidade mínima do amor entre a mãe e o filho. De todo modo, é importante também perceber que essa é uma mudança imperceptível a olho nu. Claro que, a certa altura da gestação, fica claro que há uma vida sendo formada, mas o fato de ser visível não é tão importante assim para a gestação em si. É a criação de um tempo e de uma vida que não se sujeitam à lógica das coisas ordinárias.