A secreta união dos contrários.
Poema extraordinário de um grande poeta contemporâneo, Wladimir Saldanha. Quem me acompanha sabe que eu já estou careca de tanto dizer que para o poeta inexperiente, o que está no começo da estrada, numa fase muito gostosa em que você tem o privilégio de ler Drummond pela primeira vez, a sedução da literatura clássica, se por um lado desempenha um papel decisivo e fundamental na formação da cabecinha do efebo, por outro pode ser tremendamente deletéria especialmente quando o camaradinha cai no canto da sereia de certa ala conservadora que tenta te vender a tese de que a poesia brasileira morreu e não há mais ninguém escrevendo poesia que preste. Pelo contrário, é quando você galga alguns degraus na compreensão do fenômeno poético que você passa a entender que o mergulho nos clássicos não exclui o entusiasmo pela produção contemporânea, uma vez que ler os contemporâneos é em muitos sentidos ler uma forma de sobrevivência muito poderosa dos clássicos na nossa cultura, e, portanto, entender uma maneira de ser do próprio clássico, como, ainda, num ponto de vista mais prático, é simplesmente deixar que a ficha caia e saber que as pessoas que escrevem muito melhor do que você não são apenas aquelas que acumulam mofo na lápide, mas, também, o poeta vivo, às vezes pouca coisa mais velho que você, às vezes até mais novo do que você.
ÁGUA-VIVA
Difícil é saber
o que, sendo translúcido,
é ácido,
o que, sendo flébil,
é açoite
o que, sendo nado,
bruxuleia
porque, sendo nada,
é vida.
Repito: extraordinário. Deixe-me tentar convencê-lo dessa minha opinião.
O poema descreve muito bem o que uma água-viva é, pelo menos até a última estrofe. Afinal de contas a água-viva é por exemplo transparente, mas se você pisa em uma, ela te queima: portanto, ampliando a imagem, ácida. Ainda, ela é toda molenga, e, portanto, flébil; mas, mais uma vez, se você de forma descuidada trava contato com uma, ela te machuca. Do mesmo modo, ela é nado, ou seja, ela nada, e, justamente por isso, ela bruxuleia. Mas o que dizer da inversão profunda da última estrofe? Ela, é claro, é surpreendente. Mas será que ser surpreendente é tudo? Não. Ela é surpreendente e memorável porque é reveladora e reilumina o poema inteiro.
Veja: o que é a vida? Pergunta complexa, eu sei. Mas você não concorda comigo que ela é, no mínimo, uma mescla de momentos bons e momentos ruins? Podemos ir além. É mais do que mescla: ela é um conjunto indissociável de momentos alegres e felizes, de uma luz clara e de uma luz escura que se abatem sobre a espécie humana. Estamos aqui, agora, comentando um poema extraordinário enquanto pessoas sofrem, muito longe do consolo qualquer que a poesia talvez possa oferecer. Como saber o que é um momento feliz se num simples instante tudo pode mudar? O tema da fragilidade da vida humana é um tema recorrente em toda a literatura ocidental. Simônides comparou a alegria humana a uma mudança mais brusca do que a de uma mosca de asas compridas. É realmente difícil saber qualquer coisa nesse profundo reino de inconstâncias.
A água-viva serve de uma espécie de metáfora para o claro-escuro da realidade, aquilo que o Bruno Tolentino chamou muito bem de a aspereza do real. Por trás do que seria a realidade aparente dos fenômeno, sua natureza propriamente fenomênica, existe algo de secreto que parece estar acobertado, coisa que a escolha dos tempos verbais na estrutura padrão das frases indica bem: algo está sendo de determinada forma, ou seja, aparenta ser aquilo, é caracterizável daquele jeito, quando, na verdade, pode ser outra coisa diversa. Mas não basta simplesmente adotarmos a leitura que fala de uma essência acobertada pelo fenômeno. Podemos ir além. O uso do gerúndio também aponta que alguma coisa pode ser flébil e açoite ao mesmo tempo, apontando para o que pode ser mais do que uma união secreta: é uma secreta união de contrários.
Mas então aparece a última estrofe, introduzida pela conjunção "porque". É quando o Wladimir reverte a moeda de um jeito muito especial. Até então, ele usou algumas semelhanças fônicas noutros momentos do texto, por exemplo extraindo "ácido" de "translúcido", mas não é nada que se compare ao golpe de mágica que transforma "nado" em "nada" de uma estrofe para outra. Mais até do que golpe de mágica ou truque poético, é um momento particularmente dramático, como se a música singela do poema se encerrasse com uma nota grave. Como pode algo, sendo nada, ser vida?
Não é um absurdo. A filosofia do ocidente já há muitos séculos se vê às voltas com essa questão. O filósofo pré-socrático Parmênides, por exemplo, coloca de forma enfática em seu fragmento 2 o ser e o não-ser em instâncias diversas: o que é, é, e o que não é, não pode ser. Qual a consequência de uma afirmação assim? O não-ser define os limites do ser. Noutras palavras, postura incompatível com o poema que estamos lendo, que opera, como disse antes, uma secreta união de contrários. Essa visão sofrerá uma crítica contundente de Platão no diálogo Sofista, no qual leremos uma defesa da tese de que as coisas que não são, existem, já que elas se relacionam não com o todo do ser mas sim com partes do que o estrangeiro de Eleia chama de "outro": cada parte do outro que é contrastada com o ser, é, precisamente, o não-ser (258e).
Séculos depois encontraremos a discussão levada a cabo por Heidegger sobre a mesma questão. O filósofo alemão primeiro constata que quando falamos do nada, falamos da plena negação da totalidade do ente, o que pressupõe, por óbvio, que tenhamos conhecimento do que seria a totalidade do ente. É justamente rejeitando esse artifício que Heidegger se propõe primeiro pensar o que seria a experiência do nada, entendida especificamente como a da angústia, que é quando o nada se torna mais patente. Ora: a angústia não aparece como uma negação total do ente, mas, pelo contrário, como um momento em que ele se retrai e volta a si mesmo. Voltar a si mesmo significa o instante em que o ser próprio do homem, o Dasein, o ser-aí, é conduzido ao vazio e se desconecta do ente, momento crucial para que o Dasein possa ter a revelação do ente enquanto tal. O racicínio seria particularmente importante para Sartre, que, em sua grande obra O Ser e o Nada, reflete sobre a forma como o ser se depara com o nada e, neste deparar-se, encontra um momento fundamental para que se construa enquanto tal, já que entre o ser que é, o ser em-si, o conjunto por exemplo de memórias, decisões e atos efetivamente ocorridos ao longo da nossa vida e que não podemos mudar, nós sempre nos deparamos com a possibilidade de fazer diferente, com um projetar do ser, agora chamado de ser para-si, sobre o grande em aberto à nossa frente. Com o nada.
O poeta não está obviamente "aplicando" uma teoria para seu poema. O curto e grosseiro esboço de algumas posturas filosóficas diante da questão do ser e do nada tem como propósito unicamente fazer com que o problema reverbere um pouco em nossa cabeça, bem como, principalmente, demonstrar que não são contrários absolutos e irreconciliáveis. Mesmo em Parmênides o não-ser desempenha um papel importante para o próprio ser. O momento da angústia, como em Heidegger, ou, caso queiramos encontrar sinônimos possíveis e talvez provisórios para pensar a questão, a negatividade pura e simples, não é irreconciliável com a plena potencialidade de realização que a vida traz consigo. É também quando a vida se acha em sua negatividade mais radical, no instante em que por exemplo o que deveria ser maleável e doce se transforma em açoite, no instante em que a vida parece se despedaçar e perder o sentido; é também aí que a vida se dá, é também aí que a vida ocorre. Uma lição particularmente profunda executada de maneira admirável por um poema simplesmente extraordinário.
ÁGUA-VIVA
Difícil é saber
o que, sendo translúcido,
é ácido,
o que, sendo flébil,
é açoite
o que, sendo nado,
bruxuleia
porque, sendo nada,
é vida.
Repito: extraordinário. Deixe-me tentar convencê-lo dessa minha opinião.
O poema descreve muito bem o que uma água-viva é, pelo menos até a última estrofe. Afinal de contas a água-viva é por exemplo transparente, mas se você pisa em uma, ela te queima: portanto, ampliando a imagem, ácida. Ainda, ela é toda molenga, e, portanto, flébil; mas, mais uma vez, se você de forma descuidada trava contato com uma, ela te machuca. Do mesmo modo, ela é nado, ou seja, ela nada, e, justamente por isso, ela bruxuleia. Mas o que dizer da inversão profunda da última estrofe? Ela, é claro, é surpreendente. Mas será que ser surpreendente é tudo? Não. Ela é surpreendente e memorável porque é reveladora e reilumina o poema inteiro.
Veja: o que é a vida? Pergunta complexa, eu sei. Mas você não concorda comigo que ela é, no mínimo, uma mescla de momentos bons e momentos ruins? Podemos ir além. É mais do que mescla: ela é um conjunto indissociável de momentos alegres e felizes, de uma luz clara e de uma luz escura que se abatem sobre a espécie humana. Estamos aqui, agora, comentando um poema extraordinário enquanto pessoas sofrem, muito longe do consolo qualquer que a poesia talvez possa oferecer. Como saber o que é um momento feliz se num simples instante tudo pode mudar? O tema da fragilidade da vida humana é um tema recorrente em toda a literatura ocidental. Simônides comparou a alegria humana a uma mudança mais brusca do que a de uma mosca de asas compridas. É realmente difícil saber qualquer coisa nesse profundo reino de inconstâncias.
A água-viva serve de uma espécie de metáfora para o claro-escuro da realidade, aquilo que o Bruno Tolentino chamou muito bem de a aspereza do real. Por trás do que seria a realidade aparente dos fenômeno, sua natureza propriamente fenomênica, existe algo de secreto que parece estar acobertado, coisa que a escolha dos tempos verbais na estrutura padrão das frases indica bem: algo está sendo de determinada forma, ou seja, aparenta ser aquilo, é caracterizável daquele jeito, quando, na verdade, pode ser outra coisa diversa. Mas não basta simplesmente adotarmos a leitura que fala de uma essência acobertada pelo fenômeno. Podemos ir além. O uso do gerúndio também aponta que alguma coisa pode ser flébil e açoite ao mesmo tempo, apontando para o que pode ser mais do que uma união secreta: é uma secreta união de contrários.
Mas então aparece a última estrofe, introduzida pela conjunção "porque". É quando o Wladimir reverte a moeda de um jeito muito especial. Até então, ele usou algumas semelhanças fônicas noutros momentos do texto, por exemplo extraindo "ácido" de "translúcido", mas não é nada que se compare ao golpe de mágica que transforma "nado" em "nada" de uma estrofe para outra. Mais até do que golpe de mágica ou truque poético, é um momento particularmente dramático, como se a música singela do poema se encerrasse com uma nota grave. Como pode algo, sendo nada, ser vida?
Não é um absurdo. A filosofia do ocidente já há muitos séculos se vê às voltas com essa questão. O filósofo pré-socrático Parmênides, por exemplo, coloca de forma enfática em seu fragmento 2 o ser e o não-ser em instâncias diversas: o que é, é, e o que não é, não pode ser. Qual a consequência de uma afirmação assim? O não-ser define os limites do ser. Noutras palavras, postura incompatível com o poema que estamos lendo, que opera, como disse antes, uma secreta união de contrários. Essa visão sofrerá uma crítica contundente de Platão no diálogo Sofista, no qual leremos uma defesa da tese de que as coisas que não são, existem, já que elas se relacionam não com o todo do ser mas sim com partes do que o estrangeiro de Eleia chama de "outro": cada parte do outro que é contrastada com o ser, é, precisamente, o não-ser (258e).
Séculos depois encontraremos a discussão levada a cabo por Heidegger sobre a mesma questão. O filósofo alemão primeiro constata que quando falamos do nada, falamos da plena negação da totalidade do ente, o que pressupõe, por óbvio, que tenhamos conhecimento do que seria a totalidade do ente. É justamente rejeitando esse artifício que Heidegger se propõe primeiro pensar o que seria a experiência do nada, entendida especificamente como a da angústia, que é quando o nada se torna mais patente. Ora: a angústia não aparece como uma negação total do ente, mas, pelo contrário, como um momento em que ele se retrai e volta a si mesmo. Voltar a si mesmo significa o instante em que o ser próprio do homem, o Dasein, o ser-aí, é conduzido ao vazio e se desconecta do ente, momento crucial para que o Dasein possa ter a revelação do ente enquanto tal. O racicínio seria particularmente importante para Sartre, que, em sua grande obra O Ser e o Nada, reflete sobre a forma como o ser se depara com o nada e, neste deparar-se, encontra um momento fundamental para que se construa enquanto tal, já que entre o ser que é, o ser em-si, o conjunto por exemplo de memórias, decisões e atos efetivamente ocorridos ao longo da nossa vida e que não podemos mudar, nós sempre nos deparamos com a possibilidade de fazer diferente, com um projetar do ser, agora chamado de ser para-si, sobre o grande em aberto à nossa frente. Com o nada.
O poeta não está obviamente "aplicando" uma teoria para seu poema. O curto e grosseiro esboço de algumas posturas filosóficas diante da questão do ser e do nada tem como propósito unicamente fazer com que o problema reverbere um pouco em nossa cabeça, bem como, principalmente, demonstrar que não são contrários absolutos e irreconciliáveis. Mesmo em Parmênides o não-ser desempenha um papel importante para o próprio ser. O momento da angústia, como em Heidegger, ou, caso queiramos encontrar sinônimos possíveis e talvez provisórios para pensar a questão, a negatividade pura e simples, não é irreconciliável com a plena potencialidade de realização que a vida traz consigo. É também quando a vida se acha em sua negatividade mais radical, no instante em que por exemplo o que deveria ser maleável e doce se transforma em açoite, no instante em que a vida parece se despedaçar e perder o sentido; é também aí que a vida se dá, é também aí que a vida ocorre. Uma lição particularmente profunda executada de maneira admirável por um poema simplesmente extraordinário.