A palavra como estrela.
Natália Agra é uma poeta extraordinária que tenho acompanhado cada vez com mais entusiasmo. Um dos poemas mais lindos de sua autoria é o Estrela-do-mar, publicado, salvo engano, primeiro na escamandro três anos atrás. Diz:
que espetáculo é a palavra crepúsculo!
labirinto-oceano
estrela cadente que valsa céu abaixo
segredos de água-viva
do navio projeto-me em concha, um par de mãos dadas
vieira-vênus:
(explosão da aurora)
que palavra é estrela senão chuva?
É uma forma muito peculiar e bonita de descrever um momento feliz de sua vida. A alegria que a poeta sentiu naquele instante se entranha na palavra a tal ponto que ela consegue estabelecer repercussões emocionais muito intensas. Essa relação com as palavras não é muito absurda de se perceber se notarmos a maneira como acrescentamos um sentido muito íntimo a nosso vocabulário, fazendo com que a relação com a linguagem seja mais do que simplesmente a escolha de termos mais ou menos convenientes e eficazes.
Quando diz, por exemplo, que a palavra crepúsculo é um espetáculo, não está simplesmente adjetivando a palavra, dizendo se tratar de uma palavra muito bonita ou conveniente, mas, na verdade, deixando que se desenrole à nossa frente uma justaposição de imagens que parecem compor elas próprias um espetáculo à beira-mar. Eu posso ir até um pouco além e dizer que nesse espetáculo de cenas, nós encontramos também um espetáculo a nível verbal, por exemplo quando a autora cria um neologismo muito interessante em "labirinto oceano" ou quando humaniza a estrela cadente dizendo que ela valsa céu abaixo.
A sequência das imagens é também digna de nota. Começa com uma paisagem estática, "labirinto-oceano", passa para a valsa da estrela cadente, ou seja, uma cena em movimento, então volta a uma imagem que podemos chamar também de estática, "segredos de água-viva", já que não apresenta verbo nenhum, e, então, um verso que justapõe de forma simutânea duas cenas:
do navio projeto-me em concha, um par de mãos dadas
Indicando que a poeta foi para além daquela instante e o acrisolou numa concha a fim de guardar somente o essencial: o par de mãos dadas. Notável, nesse sentido, que o verso já comece com o objeto indireto, "do navio", e só depois apresente o verbo, por um lado dando ênfase à própria ação de ser projetado, e, por outro, colocando em extremos o navio e a concha. O par de mãos dadas, colocado ao lado do verso sem verbo ou conectivo algum, pontuado por uma vírgula num poema que de um modo geral não usa muito a pontuação, parece dar ênfase no caráter como que de pérola dessa lembrança em específico.
E então voltamos ao movimento das cenas, que parte de uma paisagem estática para outra dinâmica: "vieira-vênus", novamente um composto admirável que retoma o mito do nascimento de Vênus e o deixa como que mais próximo de nós com a menção ao pequeno molusco marítimo vieira. São pequenos animais assim que povoam a fauna marítima que o poema evoca desde o título e que de modo algum se identificam simplesmente com seres biológicos que podemos encontrar em qualquer lugar. O cenário que a poeta descreve é um cenário encantado em primeiro lugar pela lembrança carinhosa e em segundo pela poesia. É por isso que o oceano, por exemplo, é mais do que apenas oceano: é labirinto; e é por isso também que o animalzinho vieira se conecta ao grandioso mito do nascimento da deusa.
Nesse encantamento da paisagem, as palavras que se associam às coisas também explodem em sua carga de reminiscências. O fato de que seja preciso ir além da menção à vieira e acrescentar, a seu lado, a palavra "vênus", indica, por óbvio, que a poeta quer transmitir um conceito que seja adequado aos propósitos do poema e, ao mesmo tempo, que seja compacto o suficiente. Pelo fato de que o hífen faz com que os termos do neologismo comunguem da essência de uma única palavra, então a coloração, por assim dizer, que tanto um elemento, a vieira, e o outro, a deusa Vênus, trazem, ganha uma tonalidade própria, muito mais específica. E a grande questão é que isso não se dá apenas com os neologismos, mas, também, com as palavras ordinárias.
Penso que se olharmos dessa perspectiva, conseguimos entender o motivo da pergunta que fecha o texto. Como uma palavra pode ser estrela? E, ainda que ela possa, por que "chuva"? Ora: ao dizer que a palavra pode ser estrela, ou, como sugerido antes, que ela possa ser um espetáculo, Natália Agra está manejando uma ferramenta clássica da poesia: a metáfora. Não pretendo tecer comentários mais demorados a seu respeito; fiquemos apenas com o bom e velho Aristóteles, que, a certa altura da Poética, seção 1459a, nos conta que um poeta pode aprender a fazer uso da dicção, por exemplo, ou do próprio uso de palavras raras e comuns, mas que ele não pode aprender a usar a metáfora, já que ela é uma grande coisa, e, até mais do que isso, é a marca do gênio: o bom uso da metáfora é saber se atentar para as semelhanças.
A poeta mostra bem que goza desse gênio das metáforas, por assim dizer. Ao dizer que a palavra é estrela, está, claro, dizendo que ela tem um brilho e um encanto próprio. Opera, nesse sentido, a transferência de um elemento estranho que Aristóteles afirma, em 1457b da Poética, ser seu elemento caracterizador, nada muito estranho se considerarmos que a etimologia da palavra é simplesmente levar alguma coisa através. Mas, como ocorre muitas vezes com a metáfora, esse elemento estranho se harmoniza no conjunto metafórico. No poema, essa harmonização da metáfora se dá tanto no sentido de que a própria comparação com a intensidade e o brilho de uma estrela é o único modo de fazer jus à beleza tão extraordinária daquele momento, como, ainda, pelo fato de que se harmoniza com a estrela-do-mar mencionada no título.
Que estrela seria essa? O animal? É possível, já que o poema fala de águas-vivas e vieiras também. Mas apenas? Afinal de contas se a palavra pode ser estrela, então a estrela-do-mar também pode ser uma palavra marítima ou simplesmente uma que evoque os sentimentos vividos naquela ocasião. O mecanismo interno dessa lógica, e à qual eu não seu muito bem se o leitor irá anuir, é que a estrela-do-mar indica no seu íntimo o próprio procedimento da poesia, pois aponta para a pertença especificamente emocional que as palavras têm para nós, fazendo com que a transferência de elementos estranhos própria do mecanismo da metáfora passe a ser vista como uma forma de fazer com que esses elementos retornem, por assim dizer, para casa, voltem a reverberar dentro da gente, tornem-se coerente com nossa vivência.
Se aceitamos essa leitura, então fica razoável aceitarmos que a poeta possa escolher a palavra "chuva" como um exemplo de palavra-estrela. O título de seu livro de abertura, "de repente a chuva", evidencia que se trata de uma palavra especial, mas penso que nesse poema em específico o que está em jogo é seu processo de escolha. Se uma palavra pode ser estrela, e se nisso de ser estrela ela precisa ser especial e evocativa o suficiente, então a escolha da palavra "chuva" se pauta, precisamente, na repercussão emocional que ela consegue acarretar. Não é um mecanismo de escolha absurdo; antes, me parece ser particularmente comum dentro da poesia, que empurra as palavras para um âmbito cada vez mais conotativo.
que espetáculo é a palavra crepúsculo!
labirinto-oceano
estrela cadente que valsa céu abaixo
segredos de água-viva
do navio projeto-me em concha, um par de mãos dadas
vieira-vênus:
(explosão da aurora)
que palavra é estrela senão chuva?
É uma forma muito peculiar e bonita de descrever um momento feliz de sua vida. A alegria que a poeta sentiu naquele instante se entranha na palavra a tal ponto que ela consegue estabelecer repercussões emocionais muito intensas. Essa relação com as palavras não é muito absurda de se perceber se notarmos a maneira como acrescentamos um sentido muito íntimo a nosso vocabulário, fazendo com que a relação com a linguagem seja mais do que simplesmente a escolha de termos mais ou menos convenientes e eficazes.
Quando diz, por exemplo, que a palavra crepúsculo é um espetáculo, não está simplesmente adjetivando a palavra, dizendo se tratar de uma palavra muito bonita ou conveniente, mas, na verdade, deixando que se desenrole à nossa frente uma justaposição de imagens que parecem compor elas próprias um espetáculo à beira-mar. Eu posso ir até um pouco além e dizer que nesse espetáculo de cenas, nós encontramos também um espetáculo a nível verbal, por exemplo quando a autora cria um neologismo muito interessante em "labirinto oceano" ou quando humaniza a estrela cadente dizendo que ela valsa céu abaixo.
A sequência das imagens é também digna de nota. Começa com uma paisagem estática, "labirinto-oceano", passa para a valsa da estrela cadente, ou seja, uma cena em movimento, então volta a uma imagem que podemos chamar também de estática, "segredos de água-viva", já que não apresenta verbo nenhum, e, então, um verso que justapõe de forma simutânea duas cenas:
do navio projeto-me em concha, um par de mãos dadas
Indicando que a poeta foi para além daquela instante e o acrisolou numa concha a fim de guardar somente o essencial: o par de mãos dadas. Notável, nesse sentido, que o verso já comece com o objeto indireto, "do navio", e só depois apresente o verbo, por um lado dando ênfase à própria ação de ser projetado, e, por outro, colocando em extremos o navio e a concha. O par de mãos dadas, colocado ao lado do verso sem verbo ou conectivo algum, pontuado por uma vírgula num poema que de um modo geral não usa muito a pontuação, parece dar ênfase no caráter como que de pérola dessa lembrança em específico.
E então voltamos ao movimento das cenas, que parte de uma paisagem estática para outra dinâmica: "vieira-vênus", novamente um composto admirável que retoma o mito do nascimento de Vênus e o deixa como que mais próximo de nós com a menção ao pequeno molusco marítimo vieira. São pequenos animais assim que povoam a fauna marítima que o poema evoca desde o título e que de modo algum se identificam simplesmente com seres biológicos que podemos encontrar em qualquer lugar. O cenário que a poeta descreve é um cenário encantado em primeiro lugar pela lembrança carinhosa e em segundo pela poesia. É por isso que o oceano, por exemplo, é mais do que apenas oceano: é labirinto; e é por isso também que o animalzinho vieira se conecta ao grandioso mito do nascimento da deusa.
Nesse encantamento da paisagem, as palavras que se associam às coisas também explodem em sua carga de reminiscências. O fato de que seja preciso ir além da menção à vieira e acrescentar, a seu lado, a palavra "vênus", indica, por óbvio, que a poeta quer transmitir um conceito que seja adequado aos propósitos do poema e, ao mesmo tempo, que seja compacto o suficiente. Pelo fato de que o hífen faz com que os termos do neologismo comunguem da essência de uma única palavra, então a coloração, por assim dizer, que tanto um elemento, a vieira, e o outro, a deusa Vênus, trazem, ganha uma tonalidade própria, muito mais específica. E a grande questão é que isso não se dá apenas com os neologismos, mas, também, com as palavras ordinárias.
Penso que se olharmos dessa perspectiva, conseguimos entender o motivo da pergunta que fecha o texto. Como uma palavra pode ser estrela? E, ainda que ela possa, por que "chuva"? Ora: ao dizer que a palavra pode ser estrela, ou, como sugerido antes, que ela possa ser um espetáculo, Natália Agra está manejando uma ferramenta clássica da poesia: a metáfora. Não pretendo tecer comentários mais demorados a seu respeito; fiquemos apenas com o bom e velho Aristóteles, que, a certa altura da Poética, seção 1459a, nos conta que um poeta pode aprender a fazer uso da dicção, por exemplo, ou do próprio uso de palavras raras e comuns, mas que ele não pode aprender a usar a metáfora, já que ela é uma grande coisa, e, até mais do que isso, é a marca do gênio: o bom uso da metáfora é saber se atentar para as semelhanças.
A poeta mostra bem que goza desse gênio das metáforas, por assim dizer. Ao dizer que a palavra é estrela, está, claro, dizendo que ela tem um brilho e um encanto próprio. Opera, nesse sentido, a transferência de um elemento estranho que Aristóteles afirma, em 1457b da Poética, ser seu elemento caracterizador, nada muito estranho se considerarmos que a etimologia da palavra é simplesmente levar alguma coisa através. Mas, como ocorre muitas vezes com a metáfora, esse elemento estranho se harmoniza no conjunto metafórico. No poema, essa harmonização da metáfora se dá tanto no sentido de que a própria comparação com a intensidade e o brilho de uma estrela é o único modo de fazer jus à beleza tão extraordinária daquele momento, como, ainda, pelo fato de que se harmoniza com a estrela-do-mar mencionada no título.
Que estrela seria essa? O animal? É possível, já que o poema fala de águas-vivas e vieiras também. Mas apenas? Afinal de contas se a palavra pode ser estrela, então a estrela-do-mar também pode ser uma palavra marítima ou simplesmente uma que evoque os sentimentos vividos naquela ocasião. O mecanismo interno dessa lógica, e à qual eu não seu muito bem se o leitor irá anuir, é que a estrela-do-mar indica no seu íntimo o próprio procedimento da poesia, pois aponta para a pertença especificamente emocional que as palavras têm para nós, fazendo com que a transferência de elementos estranhos própria do mecanismo da metáfora passe a ser vista como uma forma de fazer com que esses elementos retornem, por assim dizer, para casa, voltem a reverberar dentro da gente, tornem-se coerente com nossa vivência.
Se aceitamos essa leitura, então fica razoável aceitarmos que a poeta possa escolher a palavra "chuva" como um exemplo de palavra-estrela. O título de seu livro de abertura, "de repente a chuva", evidencia que se trata de uma palavra especial, mas penso que nesse poema em específico o que está em jogo é seu processo de escolha. Se uma palavra pode ser estrela, e se nisso de ser estrela ela precisa ser especial e evocativa o suficiente, então a escolha da palavra "chuva" se pauta, precisamente, na repercussão emocional que ela consegue acarretar. Não é um mecanismo de escolha absurdo; antes, me parece ser particularmente comum dentro da poesia, que empurra as palavras para um âmbito cada vez mais conotativo.