A camoniana de Guilherme de Almeida.
Tempos atrás fiz um comentário muito de passagem e despretensioso sobre Guilherme de Almeida aqui no blog, elogiando o livro Você como o seu ápice e explicando melhor o porquê de achar isso. Na ocasião falei, salvo engano, que a seção camoniana era um exercício relativamente interessante que servia mais para enriquecer a fortuna crítica de Camões do que, propriamente, a do Guilherme.
Não sei dizer se fui injusto. Justiça ou injustiça, afinal, não chegam a ser um bom critério para avaliar as escolhas de um crítico, que precisa, bem, escolher. Como dizer que um crítico é injusto por fazer o que deve fazer? Acho que no fundo sigo com a mesma posição; a diferença é que o espírito meio enfezado com que fiz esse comentário desanuviou um pouco da minha cabecinha e hoje eu tendo a olhar de uma maneira um pouco mais benévola esse conjunto de sonetos que o Guilherme escreveu imitando a linguagem e o estilo seiscentista. Quero tentar expor sucintamente minhas razões. Um exemplo, ainda hoje dos meus preferidos:
Claros fios de prata em minha fronte,
Que tanto me abreviais a vida breve,
E os dias, que me leva o tempo leve
E que eu não quis contar, mandais que conte:
Se até mesmo do pranto a pura fonte,
Por que verter não possa quanto deve,
Vosso frio rigor converte em neve,
Quem há aí que vos fuja, ou vos afronte?
Esquecestes, entanto, brancos fios,
Que, quanto mais sois brancos, e mais frios,
Mais própria em vós se espelha a maravilha
De um sonho meu de luz, dourado e eterno:
Pois o sol é mais sol quando é inverno,
E a neve é menos neve quando brilha.
Que fique claro. Tenho aqui comigo uma edição muito simpática da camoniana do Guilherme publicada pela coleção Rubaiyat quando nem meus pais eram nascidos. Eram livros elegantes com lombada de couro e uma diagramação clássica, dos quais tenho, além dessa edição da camoniana, outra dos poemas traduzidos do Bandeira. Reli não sei quantas vezes essa sequência de sonetos e eu mesmo num passado obscuro cheguei a me ensaiar no mesmo exercício, sem, é claro, todo o brilho do poeta paulista. Para além da diferença abissal de talento, penso que eu tinha na época uma concepção muito inocente sobre esses sonetos, que guardavam para mim, quando muito, uma espécie de mistério pelo fato puro e simples de empregarem com tamanha perfeição a linguagem do mestre. Não conseguia na época apreciar por exemplo a tessitura sonora tão agradável de versos como "E os dias, que me leva o tempo leve", fazendo a gente de fato ser puxado pela mão e embarcar em lembranças queridas, ou então o baile de conceitos ora confrontados, ora aprofundados, ora, de um jeito que o Guilherme faz muito bem, os dois ao mesmo tempo, como quando em "tanto me abreviais a vida breve" o poeta a um só tempo acentua o encurtamento da existência e o contrasta com a vida que se alonga.
O que o Guilherme está fazendo com sua camoniana, para ir direto ao assunto, não é simplesmente uma imitação servil. Eu quero sugerir, não sei se lá com muita razão, mas pelo menos sugerir que essa leitura do Guilherme acentua e por vezes exagera uma faceta muito interessante de Camões, que nos permite lê-lo não mais como o austero autor renascentista e sim como um maneirista. Parece chocante enxergar Camões assim, especialmente se levarmos em conta que para alguns dos nomes mais influentes do neoclassicismo o Camões era um autor afetado, ou seja, ele padecia vez outra de alguns dos vícios lamentáveis da poética barroca. Mas, quando levamos em conta que o barroco foi merecidamente revalorizado pela crítica moderna, então é razoável que autores do calibre de Jorge de Sena ou Vítor Aguiar tenham empreendido análises brilhantes sobre Camões e o barroco. Um dos pontos levados por essa leitura é o de que o contraste entre os opostos, que por óbvio não chega a ser uma invenção do barroco, ganha um papel de destaque na articulação do texto já que representaria algumas rachaduras na individualidade do homem que seriam escancaradas com o romantismo e a chegada da modernidade.
Quando me atinei para isso, confesso que a camoniana do Guilherme cresceu muito dentro de mim. O Soares Amora, mais conhecido como dicionarista, autor de antologias e um dos cabeças por trás do Telecurso segundo grau, tem um ensaio ótimo sobre essa sequência de sonetos no qual defende a inteligência com que o poeta paulista imitou Camões. Penso que essa inteligência apontada pode ser lida de uma forma até mesmo mais enfática, no sentido de que o Camões que Guilherme enxerga é um essencialmente barroco que tem muitas de suas características realçadas em parte pela leitura do Guilherme e em parte pela própria sensibilidade do poeta, que no embate entre contrários e na cisão das coisas enxerga os próprios contrastes da existência humana e de vez em quando o vislumbre de uma harmonia produtiva e reflexiva desses conceitos. Nesse sentido penso que o argumento do soneto acima é simplesmente extraordinário, já que consegue transformar o caráter, por assim dizer, morto e estagnado do inverno em algo belo, "um sonho meu de luz, dourado e eterno", já que é precisamente pelas provações do inverno que o sol de um amor se faz mais intenso e a terra, ausente dos adornos embriagantes da primavera, consegue mostrar suas singelas belezas com maior intensidade.
Compare-se com o belíssimo soneto de aniversário do Vinicius, no qual o estilo de raiz camoniano, que perpassa seus sonetos de um modo geral, está muito presente:
Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.
Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.
Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.
E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.
A matriz temática dos dois sonetos é parecida, mas não idêntica. No poema de Vinícius o que encontramos é a afirmação de um amor eterno para além da contingência corpórea. O choque entre contrários está obviamente delineado por exemplo na primeira estrofe; no entanto, graças ao simples uso do subjuntivo de caráter jussivo, a ideia passada é a de que a vida pode até passar "sempre dividida / Entre compensações e desenganos" (destaque total para o último substantivo, deliciosamente setecentista), que isso não vai fazer muita diferença uma vez que o amor do poeta é muito maior do que tudo isso. Jogos verbais como aquele do primeiro verso do primeiro terceto despontam de uma maneira muito discreta, dando a entender que a leitura que Vinícius faz do legado camoniano é sensivelmente distinta daquela que Guilherme faz. Não estou certo, por exemplo, de que a oposição entre o caráter passageiro da vida e o caráter eterno do amor seriam resolvidos pelo Guilherme numa chave irônica como a da passagem "este amor meu de criatura" (irônica: como um amor que não envelhece pode ser chamado como "de criatura"?). É por isso que o contraste do verso final, entre ver tudo envelhecer e ele próprio não envelhecer, aparece no sentido de uma superação para além do contexto da carne e do corpo, ao passo que no soneto do Guilherme esse contraste não me parece transcender tão facilmente o inverno da existência. Pelo contrário, é justamente pela velhice e pelo embranquecimento dos fios que o poeta consegue perceber mais claramente o seu sonho de luz.
Não sei dizer se fui injusto. Justiça ou injustiça, afinal, não chegam a ser um bom critério para avaliar as escolhas de um crítico, que precisa, bem, escolher. Como dizer que um crítico é injusto por fazer o que deve fazer? Acho que no fundo sigo com a mesma posição; a diferença é que o espírito meio enfezado com que fiz esse comentário desanuviou um pouco da minha cabecinha e hoje eu tendo a olhar de uma maneira um pouco mais benévola esse conjunto de sonetos que o Guilherme escreveu imitando a linguagem e o estilo seiscentista. Quero tentar expor sucintamente minhas razões. Um exemplo, ainda hoje dos meus preferidos:
Claros fios de prata em minha fronte,
Que tanto me abreviais a vida breve,
E os dias, que me leva o tempo leve
E que eu não quis contar, mandais que conte:
Se até mesmo do pranto a pura fonte,
Por que verter não possa quanto deve,
Vosso frio rigor converte em neve,
Quem há aí que vos fuja, ou vos afronte?
Esquecestes, entanto, brancos fios,
Que, quanto mais sois brancos, e mais frios,
Mais própria em vós se espelha a maravilha
De um sonho meu de luz, dourado e eterno:
Pois o sol é mais sol quando é inverno,
E a neve é menos neve quando brilha.
Que fique claro. Tenho aqui comigo uma edição muito simpática da camoniana do Guilherme publicada pela coleção Rubaiyat quando nem meus pais eram nascidos. Eram livros elegantes com lombada de couro e uma diagramação clássica, dos quais tenho, além dessa edição da camoniana, outra dos poemas traduzidos do Bandeira. Reli não sei quantas vezes essa sequência de sonetos e eu mesmo num passado obscuro cheguei a me ensaiar no mesmo exercício, sem, é claro, todo o brilho do poeta paulista. Para além da diferença abissal de talento, penso que eu tinha na época uma concepção muito inocente sobre esses sonetos, que guardavam para mim, quando muito, uma espécie de mistério pelo fato puro e simples de empregarem com tamanha perfeição a linguagem do mestre. Não conseguia na época apreciar por exemplo a tessitura sonora tão agradável de versos como "E os dias, que me leva o tempo leve", fazendo a gente de fato ser puxado pela mão e embarcar em lembranças queridas, ou então o baile de conceitos ora confrontados, ora aprofundados, ora, de um jeito que o Guilherme faz muito bem, os dois ao mesmo tempo, como quando em "tanto me abreviais a vida breve" o poeta a um só tempo acentua o encurtamento da existência e o contrasta com a vida que se alonga.
O que o Guilherme está fazendo com sua camoniana, para ir direto ao assunto, não é simplesmente uma imitação servil. Eu quero sugerir, não sei se lá com muita razão, mas pelo menos sugerir que essa leitura do Guilherme acentua e por vezes exagera uma faceta muito interessante de Camões, que nos permite lê-lo não mais como o austero autor renascentista e sim como um maneirista. Parece chocante enxergar Camões assim, especialmente se levarmos em conta que para alguns dos nomes mais influentes do neoclassicismo o Camões era um autor afetado, ou seja, ele padecia vez outra de alguns dos vícios lamentáveis da poética barroca. Mas, quando levamos em conta que o barroco foi merecidamente revalorizado pela crítica moderna, então é razoável que autores do calibre de Jorge de Sena ou Vítor Aguiar tenham empreendido análises brilhantes sobre Camões e o barroco. Um dos pontos levados por essa leitura é o de que o contraste entre os opostos, que por óbvio não chega a ser uma invenção do barroco, ganha um papel de destaque na articulação do texto já que representaria algumas rachaduras na individualidade do homem que seriam escancaradas com o romantismo e a chegada da modernidade.
Quando me atinei para isso, confesso que a camoniana do Guilherme cresceu muito dentro de mim. O Soares Amora, mais conhecido como dicionarista, autor de antologias e um dos cabeças por trás do Telecurso segundo grau, tem um ensaio ótimo sobre essa sequência de sonetos no qual defende a inteligência com que o poeta paulista imitou Camões. Penso que essa inteligência apontada pode ser lida de uma forma até mesmo mais enfática, no sentido de que o Camões que Guilherme enxerga é um essencialmente barroco que tem muitas de suas características realçadas em parte pela leitura do Guilherme e em parte pela própria sensibilidade do poeta, que no embate entre contrários e na cisão das coisas enxerga os próprios contrastes da existência humana e de vez em quando o vislumbre de uma harmonia produtiva e reflexiva desses conceitos. Nesse sentido penso que o argumento do soneto acima é simplesmente extraordinário, já que consegue transformar o caráter, por assim dizer, morto e estagnado do inverno em algo belo, "um sonho meu de luz, dourado e eterno", já que é precisamente pelas provações do inverno que o sol de um amor se faz mais intenso e a terra, ausente dos adornos embriagantes da primavera, consegue mostrar suas singelas belezas com maior intensidade.
Compare-se com o belíssimo soneto de aniversário do Vinicius, no qual o estilo de raiz camoniano, que perpassa seus sonetos de um modo geral, está muito presente:
Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.
Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.
Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.
E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.
A matriz temática dos dois sonetos é parecida, mas não idêntica. No poema de Vinícius o que encontramos é a afirmação de um amor eterno para além da contingência corpórea. O choque entre contrários está obviamente delineado por exemplo na primeira estrofe; no entanto, graças ao simples uso do subjuntivo de caráter jussivo, a ideia passada é a de que a vida pode até passar "sempre dividida / Entre compensações e desenganos" (destaque total para o último substantivo, deliciosamente setecentista), que isso não vai fazer muita diferença uma vez que o amor do poeta é muito maior do que tudo isso. Jogos verbais como aquele do primeiro verso do primeiro terceto despontam de uma maneira muito discreta, dando a entender que a leitura que Vinícius faz do legado camoniano é sensivelmente distinta daquela que Guilherme faz. Não estou certo, por exemplo, de que a oposição entre o caráter passageiro da vida e o caráter eterno do amor seriam resolvidos pelo Guilherme numa chave irônica como a da passagem "este amor meu de criatura" (irônica: como um amor que não envelhece pode ser chamado como "de criatura"?). É por isso que o contraste do verso final, entre ver tudo envelhecer e ele próprio não envelhecer, aparece no sentido de uma superação para além do contexto da carne e do corpo, ao passo que no soneto do Guilherme esse contraste não me parece transcender tão facilmente o inverno da existência. Pelo contrário, é justamente pela velhice e pelo embranquecimento dos fios que o poeta consegue perceber mais claramente o seu sonho de luz.