Dentro das sombras.

E  graças aos deuses temos mais uma Eneida surgindo no pedaço. Meses atrás a editora Syrinx publicou a tradução do professor da Usp Adriano Aprigliano para o canto 6 da Eneida, a famosa catábase ou descida ao submundo, um dos episódios mais importantes de toda a epopeia latina e ouso dizer, sem peso nenhum na consciência, de toda a literatura já produzida nesse nosso muquifo ocidental.

As diretrizes da sua tradução são no mínimo peculiares. Não é meu intuito, pelo menos não hoje, comentar de maneira mais detida a verdadeira estrutura de ponta que ele emprega, o que me levaria a manusear terminologias como "verso assinarteto". Eu queria me concentrar só mesmo na questão da sintaxe, elaborada de uma maneira interessantíssima. É o seguinte: hoje quando a gente fala em discurso empolado ou quando imagina um corretor de imóveis manuseando tabelas de juros abusivos devidamente escondidos nas entrelinhas de cláusulas contratuais, a gente costuma descrever esse tédio em forma de discurso pelo uso de um vocabulário pomposo e cheio de palavras difíceis cada vez mais contaminadas por anglicismos desnecessários, pela tendência a se buscar sinônimos a todo momento, fazendo com que na cabeça do palestrante seja realmente plausível que "exarar" seja um sinônimo viável em qualquer situação para "dizer", e pelo uso vezes embolado e vezes embolorado de inversões sintáticas.

Pois bem. Em relação à inversão sintática, aquilo que chamamos genericamente de hipérbato ou, caso queiramos ser mais específicos, de sínquise quando atinge níveis patológicos, eu sempre gosto muito de lembrar o comentário feito naquele famoso tratado antigo atribuído durante muito tempo ao Longino e hoje em dia de autoria contestada: Do sublime. A certa altura ele diz que tanto o assíndeto quanto o hipérbato são figuras características do discurso elevado a serem usadas segundo princípios miméticos. Isso porque como o hipérbato se assemelha à fala daquelas pessoas fora de si que realizam mudanças bruscas de sentido, falando agora da taxa de homicídios e instantes depois da maçonaria implantada no alto escalão do governo, então ele deve ser usado com parcimônia e de modo a fazer com que a arte do escritor sequer seja percebida pelo público, tal como, vejam vocês, tal como na natureza, com suas aranhas em tocaia atrás das folhas. Sutileza, discrição, adequação: alguns dos valores basilares para a poesia durante muito tempo.

Bem. As coisas nem sempre foram assim. Quem se põe a ler poesia antiga precisa transpor, dentre outras, a muralha de uma sintaxe elaborada. Até aqui, Longino explica. O curioso é que um pessoalzinho pelo jeito andou gostando da coisa, tanto, que se pôs a torcer a sintaxe de uma maneira nem um pouco discreta. Se em Longino as figuras de linguagem obedecem a princípios miméticos e devem ser empregadas em situações específicas, para esse pessoalzinho a inversão sintática passou a ser um modo de explorar os meandros do idioma, expandindo-o, alcançando zonas em que o ar se torna rarefeito e a produção de sentido ganha colorações distintas.

Uma ocasião em que comumente davam a lume seu engenho e arte era quando iam traduzir os antigos. É até bastante comum encontrar gente muito erudita chegando a construções sintáticas que nos deixam maravilhados em pensar que aquilo então era mesmo possível. Da tradução de Bocage para Ovídio, por exemplo:

Mas porque não a encontra em parte alguma,
Em nenhuma do Globo a julga o triste,
E o pior se lhe antolha ao pensamento.

Conta sobre Ínaco buscando desesperado por sua filha perdida Io. Quem se emaranha em versos assim precisa pôr reparo não só nas engrenagens explícitas da sintaxe, entendendo por exemplo que o sujeito do período é "o triste", como, ainda, num maquinário consideravelmente complexo a todo vapor debaixo dos panos. No segundo verso, "em nenhuma" é advérbio especificando um elemento subentendido na frase: "estar". Logo depois, "do Globo" é adjunto adnominal de outro elemento subentendido: "parte". Bocage, escondendo parte considerável do sentido do verso, na prática afasta a mobília e liga os refletores em direção ao choque dramático entre "alguma" e "nenhuma", mimetizando quem sabe a busca desesperada pela filha. No original encontraremos os advérbios "usquam" e "nusquam" estabelecendo uma relação de sentido tão frutífera quanto:

                            sed quam non inuenit usquam,
esse putat nusquam atque animo peiora ueretur.

Pois bem. É com nomes assim, com procedimentos assim que a recente tradução parcial da Eneida se comunica. Vejamos o que ela tem a nos mostrar:

Sob a só noite seguiam escuros dentro das sombras,
pelos inanes e ocas pelas moradas e reinos,
qual é por lua suspeita, luz que mofina ilumina,
pelas florestas a via, lá onde o céu cala em sombra
Jove e às coisas as cores a negra noite dissipa.

São os versos 268 a 272, uma das passagens mais famosas de todo o poema. O primeiro verso foi elogiado efusivamente por Borges em mais de uma ocasião. Ele contém uma dupla hipálage. Hipálage? Hipálage: figura de linguagem muito pouco estudada no ensino médio que designa um tipo de concordância lógica e não exatamente sintática entre os termos de uma frase. O único exemplo que guardo de cabeça é: "paz dormente de bairro". Eça de Queiroz. "dormente" é um adjetivo que embora esteja devidamente atarraxado à sintaxe de "paz", pela lógica deveria estar ligado a "bairro". Virgílio emprega de maneira admiravelmente complexa essa figura de linguagem no primeiro verso, quando diz que os caminhantes iam escuros sob uma noite solitária. Ora: o adjetivo "escuros", que qualifica os caminhantes, serve logicamente para qualificar a noite, ao passo que o adjetivo "solitária", que qualifica a noite, serve logicamente para qualificar os caminhantes. Vejamos o original latino:

Ibant obscuri sola sub nocte per umbram
perque domos Ditis vacuas et inania regna:
quale per incertam lunam sub luce maligna
est iter in silvis, ubi caelum condidit umbra
Iuppiter, et rebus nox abstulit atra colorem.

João Angelo Oliva Neto, em posfácio à tradução, está coberto de razão ao dizer que o português que o leitor encontrará não é um português visto em lugar algum de nossa literatura. Ele pertence a um terreno inexplorado, ele é o resultado de um experimento de enorme coragem que tenta lançar sondas nas profundezas do que nosso idioma é capaz de proporcionar. Vejam, nesse sentido, que o Adriano não só traduz dupla hipálage de Virgílio como, ainda, se mostra especialmente atento a um duplo sentido do verso notado por Sérvio, um influente crítico romano. No comentário de Sérvio, a interpretação da palavra "sola" no original latino é fundamental: ou consideramos a hipálage ou consideramos que ela teria força de caracterizar o vazio completo do local, servindo de fato como adjetivo à noite e quebrando o nexo lógico sugerido pela hipálage. Na tradução, o efeito é mantido, afinal de contas "só" pode ser tanto adjetivo qualificando a noite como, ainda, advérbio especificando o modo como os caminhantes seguiam. Veja também que a aliteração em S ao longo do primeiro verso inteiro consegue recriar de modo admirável o que encontramos no original em latim, que, além da mesma consoante, conta também com as labiais B e P. De fato. Borges sabia das coisas.

Já no verso seguinte, cujos adjetivos repercutiriam nos ouvidos do tradutor da Vulgata (Gen 1:2, "Terra autem erat inanis et vacua"), a sintaxe se constrói de uma maneira que testa os limites da língua. Que busca saber onde é que a corda arrebenta: "pelos inanes reinos e pelas ocas moradas" se converte em "pelos inanes e ocas pelas moradas e reinos", de modo que entre o adjetivo "inanes" e o substantivo que qualifica, "reinos", há o enxerto integral de uma segunda locução adverbial inteirinha, ela própria dona de uma construção sintática extremamente incomum, qual seja, a colocação de um adjetivo ("ocas") não só antes do substantivo ("moradas") como do conjunto preposição e artigo ("pelas").

Não são procedimentos gratuitos. A experiência de ler o canto 6 da Eneida traduzido por Adriano Aprigliano é a de redescobrir o que em tese deveríamos conhecer com a palma da mão. Afinal de contas não usamos o raio que o parta do idioma direitinho, não sabemos a grafia de algumas palavras (não todas; pelo menos aquelas que não envolvam sufixos gregos), não sabemos os princípios de concordância, não sabemos pedir um misto quente, não sabemos ensaiar um flerte malsucedido? O grande teórico russo Viktor Shklovsky, num texto publicado há mais ou menos cem anos atrás quando ele era pouca coisa mais novo que eu, disse que a função da arte é tornar pétrea a pedra. Isso é possível graças aquilo que Shklovsky chama de estranhamento; é ele que faz daquilo com que convivemos diariamente, ou aquilo com que plausivelmente conviveríamos, uma coisa radicalmente nova, uma coisa que merece nossa atenção a ponto de dissecarmos com bisturi em punho o encaixe de adjetivos a substantivos longínquos.

qual é por lua suspeita, luz que mofina ilumina,

Para:

quale per incertam lunam sub luce maligna

O latim, idioma flexivo ou sintético, de funcionamento diverso do português e da maioria das línguas neolatinas, dá ao poeta a possibilidade de que componha seu fraseado dispondo de maneira muito mais livres as palavras. Horácio, na ode que abre seu segundo livro, despeja por seis versos a fio palavras que compõe um rechonchudo objeto direto de um verbo que só aparecerá no verso sete. No verso virgiliano, curiosamente, a ordem é muito mais direta, bem próxima do que o latim levaria séculos a desenvolver até desaguar no que temos hoje. Note: "per incertam lunam", "sub luce maligna", dois sintagmas devidamente ordenados de modo a nenhum estudante de latim botar defeito, nos quais se enxerga uma singela harmoniazinha na sequência adjetivo-substantivo, substantivo-adjetivo.

Passando os olhos para a direita da página, porém, encontraremos uma disposição intrincada, complexa. Veja: "incertam" se transforma em "suspeita" e "maligna" em "mofina". Mesmo Odorico Mendes, tradutor da mesma linhagem a que Adriano se filia, usa simplesmente "incerta" e "falaz" respectivamente. Pois bem. Confesso que também não me agrada muito o uso de "suspeita", que guarda sentidos que vão muito além da simples ideia de incerteza. No entanto, tem lá sua função, afinal de contas conecta seu ditongo àquele que fecha o verso anterior, "reinos", de modo a amarrar a estrutura de ponta que a tradução usa. O caso de "mofina", a seu turno, de admirável sabor camoniano, já é muito mais interessante. Primeiro pois entra em conexão perfeita com a vogal I em "ilumina" e segundo pois se mostra especialmente atento ao sentido de "maligna" em latim, que não significa o mesmo que seu rebento desgarrado em português, "maligno", e sim algo mais próximo de "malicioso".

É possível realizar saltos ornamentais assim em cada um dos versos da tradução. O leitor desinteressado em mecanismos sintáticos mirabolantes, acostumado, talvez, a uma poesia mais palatável, não exatamente aquela que manuseia habilmente os botões do prazer do leitor e sim uma que se passe por elegante ou pelo menos comedida; esse leitor talvez não vá gostar do livro. Acontece. Algumas discrepâncias de gosto ou são intransponíveis ou levam toda uma longa estrada batida até que sejam vencidas. De minha parte, está sendo gratificante e, por mais estranho que isso possa parecer, divertido pernoitar nos versos de Virgílio recriados pelo Adriano. Vale a pena, a quem tiver a curiosidade de tentar.