Salto.
Saí da casa dos meus pais ano passado depois de casar e só conseguia me lembrar de um poema lindíssimo que o Carlito Azevedo escreveu não sei se a respeito da mesma ocasião, mas, suponho, no mínimo parecida. O Carlito é um dos meus poetas preferidos e esse, um dos poemas dele que mais me emocionam:
SALTO
Se alguma pedra pudesse tornar-se lírio
seria esta
Se alguma pedra o salto de um tigre
e não o tigre
seria esta
alguma as letras do alfabeto
seria esta
esta só pontas
que pulsa
coração da casa
que acabas de deixar
para sempre
Consigo me lembrar direitinho, quando certa vez apresentei no ensino médio um trabalho sobre a elipse, uma apresentação feita às pressas logo depois do sino anunciando a próxima aula já ter soado, do sorriso contente e surpreso da professora ao ver o exemplo que tinha buscado em Machado de Assis para ilustrar seu uso. A elipse consiste na supressão de uma palavra ou expressão subentendida pelo contexto. O poema emprega diversos mecanismos que fazem com que o leitor empreenda pequeninos e admiráveis saltos mentais, a começar pelo uso da conjunção "se" e do futuro do pretérito introduzindo períodos hipotéticos. Ainda, repare bem no uso dos demonstrativos, na imagem estranha de uma pedra que possa se tornar num lírio e no pedido ainda mais estranho para imaginarmos uma pedra que se torne o ato de um tigre que salta mas não o tigre em si; tudo isso são maneiras de pedir a nossa cabeça que se esforce um pouco e avance rumo a situações peculiares. Saltos. Pequeninos. Admiráveis.
É então que entra a ferramenta da elipse. Note, no verso três, a construção: "Se alguma o salto de um tigre". Falta o verbo, não falta? O período, porém, não fica sem sentido pois o verbo está no meio de nós - só que por debaixo dos panos, subentendido pelo contexto do poema. A construção anafórica da passagem, repetindo mecanismos de construção hipotética, permite que peguemos a locução verbal "pudesse tornar-se" e apliquemos seus efeitos para o verso três também. No verso seis o processo avança ainda mais, e é a vez da conjunção "Se" desaparecer.
E então chegamos ao trecho final, introduzido por "esta só pontas / que pulsa". A pedra que o poeta pede para que imaginemos deixa de habitar somente o terreno da hipótese e começa a se tornar cada vez mais concreta e palpável. Ela é pontuda e ela pulsa, e tanto em "esta só pontas" quanto em "que pulsa" temos frases que remetem à pedra que o poeta pede para que imaginemos (saltos) ao mesmo tempo em que lançam seu sentido (saltos) para os versos seguintes, "coração da casa / que acabas de deixar / para sempre", nos quais enfim o salto do título se realiza e descobrimos com exatidão qual era a pedra que o poeta pedia para que imaginarmos.
Mas, dor suave que o poema insere na nossa carne, é no exato instante em que colocamos os pés no chão que descobrimos que aquela casa foi deixada para sempre, que descobrimos que os espaços em branco e os vazios da hipótese e da elipse ao longo do texto são ausências também.
SALTO
Se alguma pedra pudesse tornar-se lírio
seria esta
Se alguma pedra o salto de um tigre
e não o tigre
seria esta
alguma as letras do alfabeto
seria esta
esta só pontas
que pulsa
coração da casa
que acabas de deixar
para sempre
Consigo me lembrar direitinho, quando certa vez apresentei no ensino médio um trabalho sobre a elipse, uma apresentação feita às pressas logo depois do sino anunciando a próxima aula já ter soado, do sorriso contente e surpreso da professora ao ver o exemplo que tinha buscado em Machado de Assis para ilustrar seu uso. A elipse consiste na supressão de uma palavra ou expressão subentendida pelo contexto. O poema emprega diversos mecanismos que fazem com que o leitor empreenda pequeninos e admiráveis saltos mentais, a começar pelo uso da conjunção "se" e do futuro do pretérito introduzindo períodos hipotéticos. Ainda, repare bem no uso dos demonstrativos, na imagem estranha de uma pedra que possa se tornar num lírio e no pedido ainda mais estranho para imaginarmos uma pedra que se torne o ato de um tigre que salta mas não o tigre em si; tudo isso são maneiras de pedir a nossa cabeça que se esforce um pouco e avance rumo a situações peculiares. Saltos. Pequeninos. Admiráveis.
É então que entra a ferramenta da elipse. Note, no verso três, a construção: "Se alguma o salto de um tigre". Falta o verbo, não falta? O período, porém, não fica sem sentido pois o verbo está no meio de nós - só que por debaixo dos panos, subentendido pelo contexto do poema. A construção anafórica da passagem, repetindo mecanismos de construção hipotética, permite que peguemos a locução verbal "pudesse tornar-se" e apliquemos seus efeitos para o verso três também. No verso seis o processo avança ainda mais, e é a vez da conjunção "Se" desaparecer.
E então chegamos ao trecho final, introduzido por "esta só pontas / que pulsa". A pedra que o poeta pede para que imaginemos deixa de habitar somente o terreno da hipótese e começa a se tornar cada vez mais concreta e palpável. Ela é pontuda e ela pulsa, e tanto em "esta só pontas" quanto em "que pulsa" temos frases que remetem à pedra que o poeta pede para que imaginemos (saltos) ao mesmo tempo em que lançam seu sentido (saltos) para os versos seguintes, "coração da casa / que acabas de deixar / para sempre", nos quais enfim o salto do título se realiza e descobrimos com exatidão qual era a pedra que o poeta pedia para que imaginarmos.
Mas, dor suave que o poema insere na nossa carne, é no exato instante em que colocamos os pés no chão que descobrimos que aquela casa foi deixada para sempre, que descobrimos que os espaços em branco e os vazios da hipótese e da elipse ao longo do texto são ausências também.