Momento.

Henriqueta Lisboa é sucintamente o que eu chamo de ápice. Dos diversos graus de qualidade poética que existem no reino encantado da poesia, desde aqueles em que somos capazes de apontar passos em falso durante toda a coreografia do texto até aqueloutros, intermediários e talvez ainda mais medíocres, em que o poeta não exatamente erra mas se abstém ou simplesmente não dá conta de fazer algo bom, e galgando ainda patamares maiores a partir dos quais começamos a divisar inteligências rarefeitas, há o topo. O ápice, que é quando um poeta consegue a proeza de concentrar num poema curto as engrenagens da poesia funcionando a todo vapor.

MOMENTO

Entre os sondados cílios
entornando ternura
de águas foscas - a dúvida.

Mas dos trêmulos dedos
ao marfim das delongas
num relâmpago - a dádiva.

A beleza de um poema assim chega a ser misteriosa. Muitas vezes é difícil falar sobre algo que nos encanta, ainda mais quando nossa postura diante de obras de arte costuma ser a de pôr as mãos na cintura e soltar um grunhido de deslumbre. Mas, me lembrando sempre daquela frase que o William Empson escreveu no comecinho do seu livro de estreia, qualquer forma de beleza não explicada me aborrece, e, ao contrário do que diz o senso comum, tremendamente inerte e preguiçoso nesse quesito, não é que explicar um poema, ou tentar entendê-lo, caso queiramos ser mais próximos do que de fato ocorre, o estrague, mas sim, bem pelo contrário, que se revela uma maneira prolongada e dedicada de atenção.

A autora descreve para nós o que seria um momento de epifania ou de súbita descoberta após uma dolorosa e inquietante dúvida. Note a delicadeza, o caráter vago e tênue da expressão "sondados cílios". Não apenas os cílios são por si só um elemento certo modo oblíquo, a parte do olho que empreende os gestos mais singelos e muitas vezes mais significativos, como, ainda, o fato de que tenham sido sondados parece dar a entender que são de algum modo esquivos ou enigmáticos. E não obstante o sejam, são capazes de entornar ternura: veja, sinta, pronuncie: entornar ternura, uma maneira muito compacta e agradável de dizer que esse mistério contemplado de viés pelo eu lírico é de algum modo agradável e reconfortante, apesar de surgido de águas foscas.

Perceba que a maior parte dos elementos dessa primeira estrofe criam uma imagem que se torna consideravelmente hermética. Não sabemos exatamente o que existe entre toda a imagem desenvolvida ao longo da estrofe; só saberemos quando chegarmos exatamente no final dela, que é quando nos deparamos com a palavra "dúvida". Henriqueta Lisboa não parece exatamente metaforizar o que a dúvida seria; penso que ela quer trazer para o leitor uma sensação muito direta e bem construída do que seria o surgimento da dúvida. Por isso o uso da preposição "Entre" abrindo o texto é importante, já que revela para o leitor de imediato em que posição do cenário é que a dúvida irá surgir. Note ainda que mesmo elementos, digamos, certo modo positivos ou reconfortantes, como seria o caso da imagem delicada dos cílios, da ternura em si ou mesmo das águas, sinônimo de frescor e limpidez, estão cercadas de elementos eu chamaria de negativos, capazes de tornar a imagem passada algo como que fechado: as águas são na verdade foscas, os cílios passam a ser apenas sondados e a ternura, pobre dela, a ternura é entornada por tais cílios enigmáticos e, detalhezinho que talvez seja exagero meu por enxergar, a carapaça da paranomásia na expressão "entornando ternura" impede que a ternura se destaque por completo na estrofe.

É quando a mágica acontece. Dos dedos que de maneira trêmula parecem apalpar a dúvida, sondando, podemos supôr, os cílios que entornam ternuras, e do marfim das delongas, uma expressão memorável para retratar a maneira como um olhar demorado ou um momento intenso consegue se petrificar em nossa lembrança; é daí que surge a dádiva, num relâmpago. Se a imagem anterior era uma arrastada graças ao emprego do gerúndio dentro da carapaça da paranomásia, é curioso perceber que na segunda não há verbo nenhum, o que torna sua leitura, tão bem acinzelada de sons nasais e da consoante D claudicando aqui e ali, uma leitura ágil.

A dúvida então se reverte no seu inesperado oposto ou, o que talvez seja mais acertado, a partir da dúvida surge a dádiva. O elemento de surpresa que existe nesse surgimento não existe apenas na semelhança fonética imensa entre as duas palavras, como se uma de fato surgisse da outra e representasse seu oposto, o U fechado e tônico de dúvida dando lugar ao A aberto de dádiva. Estamos falando de metáforas que parecem se encaixar de maneira natural na estrutura coesa e reveladora de um grande poema.