Manual pornodidático para homens.
A poesia didática da antiguidade greco-romana é talvez a sua zona mais inóspita. É realmente muito difícil pra gente apreciar um poema que te ensina por exemplo a cuidar do campo. Quando Horácio diz que a poesia deve instruir enquanto deleita, ele, claro, não estava pedindo ao leitor que se sentasse numa carteira escolar carcomida e ouvisse um poeta com pose professoral lhe ensinar a cuidar de abelhas.
A grande questão com a poesia didática é que nela a dificuldade da empreitada e a excelência da técnica contam muito. Por mais que o poeta adote a postura de um preceptor, mestre, perito no assunto, ele deve se mostrar, por óbvio, versado nos meandros da poesia. Nesses termos, penso que o elogio feito pelo Dryden a respeito das Geórgicas do Virgílio, de que seria o melhor poema do melhor poeta, por mais que hoje tenha redundado num tipo de elogio estranho e no mínimo intragável para o gosto médio do leitor, que, de resto, joga o pobre do Virgílio todo para o escanteio perpétuo das notas de rodapé à Divina Comédia, em certo sentido é razoável reconfigurarmos o elogio do grande poeta inglês e cogitarmos se não é verdade que quando um autor, no terreno árido e, sejamos francos, desinteressante da poesia didática, consegue alçar voo até os patamares da excelência, então é como se pudéssemos contemplar a essência e o sumo de seu estilo, já que nos encantamos com o poeta falando de algo que em absoluto não nos interessa. Poesia pura?
Uma maneira de ver a coisa. Quem sabe, quem sabe. Dentro da poesia didática, que para todos os efeitos nos legou um portento como o De rerum natura do Lucrécio, penso que a didática erótica, chamada pelos classicistas de erotodidáxis, talvez seja a parte mais próxima da gente. O exemplo mais curioso nesse âmbito é o da Ars amatoria de Ovídio, na qual ele ensina as técnicas da sedução mais avançadas da época, seguido dos Remediae amoris, em que ele ensina a se livrar daquele encosto, e o Medicamina faciei feminae, sobre como se maquiar.
A Ars amatoria é um livro muito vendido entre nós. Boa parte dos leitores acha bonito o título e sente o coração reconfortado quando descobre que seu autor não é um neurocientista que grassou em algum recanto obscuro dos Estados Unidos e sim um venerável poeta romano. Pondo de lado o problema óbvio de quando se deparam, logo no início, com o episódio do rapto das sabinas, é uma das principais obras de Ovídio e apresenta quase que a cada estrofe o melhor da sua técnica. A dinâmica básica da poesia didática é a de um preceptor ensinando um discípulo. A certa altura logo no começo do primeiro livro, Ovídio cria uma paranomásia maravilhosa para se referir a si: vati parete perito, poeta perito na prática. Por prática, e até mesmo por amor, é sempre bom lembrar que não estamos falando daquele sentimento etéreo que se pode encontrar (em termos) nas páginas mais (em termos) nobres da Bíblia; estamos falando basicamente de desejo, Eros, o sentimento devastador que Safo comparou ao de uma ventania que se abate no carvalho da montanha.
Conheço alguns contemporâneos que têm mantido viva essa tradição da poesia didática erótica. Ricardo Domeneck recupera a tradição da poesia homoerótica pederasta, certo modo distinta, na qual um amante mais velho acaba servindo de preceptor ou de guia para um efebo, e Lilian Sais, em seu manual pornodidático, nos fornece exemplos admiráveis nesse sentido:
pra homem tudo é uma questão de falo:
se a vara falha, a noite finda
eu a vida toda me queimando,
ávida, só com dois dedos em riste,
e o menino com dez não faz
nada, me deixa triste.
eu chego em casa frustrada
e mando o burro comer alpiste
- meu bem, de sexo ruim já estou passada,
foi a última vez que me despiste.
A persona do poema não está, propriamente, ensinando o homem a como fazer sexo. O aborrecimento de quando ela manda o parceiro comer alpiste indica que sua posição de preceptora não se aproxima tanto da de uma com maçãs vermelhas postas sobre a mesa e sim, na verdade, de alguém experiente no assunto lidando com um iniciante. Poderia sugerir, sendo assim, que se trata de uma didática que percorre necessariamente a via do corpo e não a do discurso, a da promessa. É por isso que no primeiro verso a palavra "falo", embora designe, é claro, o pênis, também pode ser tida como sinônimo de bazófia, de discurso vazio, de gabar-se pelo que não consegue cumprir. A conexão fônica admirável que a poeta estabelece, já no verso seguinte, com "falha" e "finda", me parece corroborar a leitura, bem como a ideia implícita na primeira estrofe de que o sexo nas mãos de camaradinhas assim acaba se acaso broxam, quando, muito pelo contrário, sabemos que sexo não é nem de longe sinônimo de penetração. E isso é o básico do básico a respeito de sexo.
O manual pornodidático de Lilian Sais é um que passa pela experiência, pela prática, e, justamente por isso, as vias em que se torna didático são oblíquas. Sua maneira tanto de ensinar quanto de aprender passa pela experiência. Nesse sentido é que Lilian Sais pode chamar a si de vati parete perito, mas sem o tom professoral ovidiano de discorrer sobre todo o beabá. Aqui, pelo contrário, a persona nos diz que consegue, sozinha, fazer melhor que homens trajando sapatênis e empunhando relógios com polegares de diâmetro. A menção aos dedos em riste é um bom exemplo: ela, claro, está nos dizendo de modo muito direto o que a persona fará quando o homem não lhe dá o prazer esperado, mas é também um modo de comparar o que ela com só dois dedos faz e o homem com dez não fez, bem como, pela menção aos dedos em riste, um modo de contrastar a rigidez sexual dos seus dedos com o falo que falha na hora do sexo.
O ritmo dos versos é bom e sua sonoridade, muito bem amarrada. Veja, no verso "ávida, só com dois dedos em riste", o contraste que é iniciar o verso com uma proparoxítona e despejar uma sequência de três monossílabos logo em seguida, ou então veja, na terceira estrofe, o ótimo suspense em "e o menino com dez não faz / nada". A par de tais procedimentos, aponto também a existência de alguns termos centrais e especialmente sensíveis ao longo do poema todo. É o caso, no verso três, do verbo "queimando", a partir do qual subentendemos que é queimar-se de desejo, por certo, e a partir do qual vislumbramos o espectro da poeta grega Safo a rondar o texto, ela, que parecia ter certa preferência por esse caráter chamuscante de Eros; e é o caso também de "passada" no penúltimo. O sentido aqui pode ser tanto coloquial, quase rasteiro, o que serve como um dos elementos responsáveis por criar uma tensão bem curiosa com a linguagem certo modo elegante de um poema que usa a segunda pessoa do singular, mas pode remeter mais uma vez à chave da experiência, da vati parete perito, uma constante na poesia didática amorosa e muito bem recriada por Lilian Sais em seu poema.
A grande questão com a poesia didática é que nela a dificuldade da empreitada e a excelência da técnica contam muito. Por mais que o poeta adote a postura de um preceptor, mestre, perito no assunto, ele deve se mostrar, por óbvio, versado nos meandros da poesia. Nesses termos, penso que o elogio feito pelo Dryden a respeito das Geórgicas do Virgílio, de que seria o melhor poema do melhor poeta, por mais que hoje tenha redundado num tipo de elogio estranho e no mínimo intragável para o gosto médio do leitor, que, de resto, joga o pobre do Virgílio todo para o escanteio perpétuo das notas de rodapé à Divina Comédia, em certo sentido é razoável reconfigurarmos o elogio do grande poeta inglês e cogitarmos se não é verdade que quando um autor, no terreno árido e, sejamos francos, desinteressante da poesia didática, consegue alçar voo até os patamares da excelência, então é como se pudéssemos contemplar a essência e o sumo de seu estilo, já que nos encantamos com o poeta falando de algo que em absoluto não nos interessa. Poesia pura?
Uma maneira de ver a coisa. Quem sabe, quem sabe. Dentro da poesia didática, que para todos os efeitos nos legou um portento como o De rerum natura do Lucrécio, penso que a didática erótica, chamada pelos classicistas de erotodidáxis, talvez seja a parte mais próxima da gente. O exemplo mais curioso nesse âmbito é o da Ars amatoria de Ovídio, na qual ele ensina as técnicas da sedução mais avançadas da época, seguido dos Remediae amoris, em que ele ensina a se livrar daquele encosto, e o Medicamina faciei feminae, sobre como se maquiar.
A Ars amatoria é um livro muito vendido entre nós. Boa parte dos leitores acha bonito o título e sente o coração reconfortado quando descobre que seu autor não é um neurocientista que grassou em algum recanto obscuro dos Estados Unidos e sim um venerável poeta romano. Pondo de lado o problema óbvio de quando se deparam, logo no início, com o episódio do rapto das sabinas, é uma das principais obras de Ovídio e apresenta quase que a cada estrofe o melhor da sua técnica. A dinâmica básica da poesia didática é a de um preceptor ensinando um discípulo. A certa altura logo no começo do primeiro livro, Ovídio cria uma paranomásia maravilhosa para se referir a si: vati parete perito, poeta perito na prática. Por prática, e até mesmo por amor, é sempre bom lembrar que não estamos falando daquele sentimento etéreo que se pode encontrar (em termos) nas páginas mais (em termos) nobres da Bíblia; estamos falando basicamente de desejo, Eros, o sentimento devastador que Safo comparou ao de uma ventania que se abate no carvalho da montanha.
Conheço alguns contemporâneos que têm mantido viva essa tradição da poesia didática erótica. Ricardo Domeneck recupera a tradição da poesia homoerótica pederasta, certo modo distinta, na qual um amante mais velho acaba servindo de preceptor ou de guia para um efebo, e Lilian Sais, em seu manual pornodidático, nos fornece exemplos admiráveis nesse sentido:
pra homem tudo é uma questão de falo:
se a vara falha, a noite finda
eu a vida toda me queimando,
ávida, só com dois dedos em riste,
e o menino com dez não faz
nada, me deixa triste.
eu chego em casa frustrada
e mando o burro comer alpiste
- meu bem, de sexo ruim já estou passada,
foi a última vez que me despiste.
A persona do poema não está, propriamente, ensinando o homem a como fazer sexo. O aborrecimento de quando ela manda o parceiro comer alpiste indica que sua posição de preceptora não se aproxima tanto da de uma com maçãs vermelhas postas sobre a mesa e sim, na verdade, de alguém experiente no assunto lidando com um iniciante. Poderia sugerir, sendo assim, que se trata de uma didática que percorre necessariamente a via do corpo e não a do discurso, a da promessa. É por isso que no primeiro verso a palavra "falo", embora designe, é claro, o pênis, também pode ser tida como sinônimo de bazófia, de discurso vazio, de gabar-se pelo que não consegue cumprir. A conexão fônica admirável que a poeta estabelece, já no verso seguinte, com "falha" e "finda", me parece corroborar a leitura, bem como a ideia implícita na primeira estrofe de que o sexo nas mãos de camaradinhas assim acaba se acaso broxam, quando, muito pelo contrário, sabemos que sexo não é nem de longe sinônimo de penetração. E isso é o básico do básico a respeito de sexo.
O manual pornodidático de Lilian Sais é um que passa pela experiência, pela prática, e, justamente por isso, as vias em que se torna didático são oblíquas. Sua maneira tanto de ensinar quanto de aprender passa pela experiência. Nesse sentido é que Lilian Sais pode chamar a si de vati parete perito, mas sem o tom professoral ovidiano de discorrer sobre todo o beabá. Aqui, pelo contrário, a persona nos diz que consegue, sozinha, fazer melhor que homens trajando sapatênis e empunhando relógios com polegares de diâmetro. A menção aos dedos em riste é um bom exemplo: ela, claro, está nos dizendo de modo muito direto o que a persona fará quando o homem não lhe dá o prazer esperado, mas é também um modo de comparar o que ela com só dois dedos faz e o homem com dez não fez, bem como, pela menção aos dedos em riste, um modo de contrastar a rigidez sexual dos seus dedos com o falo que falha na hora do sexo.
O ritmo dos versos é bom e sua sonoridade, muito bem amarrada. Veja, no verso "ávida, só com dois dedos em riste", o contraste que é iniciar o verso com uma proparoxítona e despejar uma sequência de três monossílabos logo em seguida, ou então veja, na terceira estrofe, o ótimo suspense em "e o menino com dez não faz / nada". A par de tais procedimentos, aponto também a existência de alguns termos centrais e especialmente sensíveis ao longo do poema todo. É o caso, no verso três, do verbo "queimando", a partir do qual subentendemos que é queimar-se de desejo, por certo, e a partir do qual vislumbramos o espectro da poeta grega Safo a rondar o texto, ela, que parecia ter certa preferência por esse caráter chamuscante de Eros; e é o caso também de "passada" no penúltimo. O sentido aqui pode ser tanto coloquial, quase rasteiro, o que serve como um dos elementos responsáveis por criar uma tensão bem curiosa com a linguagem certo modo elegante de um poema que usa a segunda pessoa do singular, mas pode remeter mais uma vez à chave da experiência, da vati parete perito, uma constante na poesia didática amorosa e muito bem recriada por Lilian Sais em seu poema.